quarta-feira, 1 de abril de 2020

A lição do SUS para o mundo, Elio Gaspari, FSP

Capotou o Brasil Paraíso dos grandes grupos de medicina privada

  • 20
Em agosto passado, numa entrevista à repórter Érica Fraga, o professor José Pastore avisou: “Nosso mercado de seguros e previdência ainda não despertou para o fato de que 50% da população economicamente ativa está na informalidade”. Com que proteção? “Nada, zero. Nem proteção trabalhista, nem CLT, nem previdência, nem seguro-saúde, nada.”
Ele foi adiante: “No novo mundo do trabalho, você tem três enfermeiras num mesmo hospital. Uma é fixa, outra é terceirizada e a outra, freelancer. Fazem a mesma coisa, mas têm remuneração e benefícios diferentes. Isso é um escândalo para o direito do trabalho convencional”.
Tristemente, esse Brasil Fantasia explodiu com a epidemia da Covid-19. Capotou a economia que estava a “um milímetro do paraíso” (palavras de Paulo Guedes) com 38 milhões de brasileiros na informalidade. Capotou também o Brasil Paraíso dos grandes grupos de medicina privada. A conta da Covid-19 está nas costas do SUS, o patinho feio da medicina nacional.
Alguém poderia supor que num país desigual a desigualdade seria desigualmente repartida. Ilusão.
Quando surgiu a necessidade dos testes para detecção do coronavírus foi necessário que a Agência Nacional de Saúde determinasse a obrigatoriedade da cobertura pelos planos de saúde. Feito isso, a Federação Nacional da Saúde Suplementar (Fenasaúde), guilda das 15 grandes operadoras de planos, informou as condições para que essa cobertura fosse honrada.
A pessoa precisava estar com febre acima de 37,8 graus, tosse ou dificuldade para respirar. Segundo a guilda, “o exame específico será feito apenas nos casos em que houver indicação médica para casos classificados como suspeitos ou prováveis de doença pela Covid-19”.
Essas exigências seriam razoáveis, sobretudo sabendo-se que não há testes suficientes à mão. A guilda informou também que “a cobertura do tratamento a pacientes diagnosticados com Covid-19 já é assegurada a beneficiários de planos de saúde, conforme a segmentação (ambulatorial, hospitalar ou referência) contratada. Em casos indicados, o beneficiário terá direito a internação caso tenha contratado cobertura para atendimento hospitalar e desde que tenha cumprido os períodos de carência, se houver previsão contratual”. Não contratou? Está fora. As operadoras sabem que a conta irá para o patinho feio do SUS. Jogo jogado.
O silêncio e o rigor da rede de medicina privada pressupõem que ela existe no país dos com-plano que se subdivide entre os que tiverem “contratado cobertura para atendimento hospitalar” e aqueles que, azarados, não a contrataram.
Nos Estados Unidos, onde não há SUS, mas há capitalismo de verdade, o jogo foi outro. Na semana passada a seguradora Aetna (22 milhões de segurados) anunciou que não cobraria alguns pagamentos laterais exigidos nos contratos. A iniciativa espalhou-se com a rapidez do vírus e 78 operadoras anunciaram diversas modalidades de ajuda. David Cordani, CEO da seguradora Cigna (12 milhões de segurados), informou: “Nossos clientes com Covid-19 devem se preocupar com a luta contra o vírus e em prevenir sua propagação. Enquanto eles estiverem focados na recuperação de suas saúdes, terão nossa proteção”.
As operadoras americanas não bancarão todos os custos dos tratamentos. Apenas mostram que estão acordadas e preocupadas com a saúde de seus clientes.
Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Necessidade moral, Antonio Delfim Netto, FSP

A crise talvez seja uma oportunidade civilizatória.

  • 11
Desde antes de sua posse, o presidente Bolsonaro é assessorado (ou melhor, "aceçorado"!) por um grupo ideológico que continua escondido nos porões do palácio.
A desastrada mensagem à nação (24/3), que destruiu parte importante do respeito que lhe tinha a sociedade, foi obra desse tumor maligno que trabalhou à socapa e surpreendeu até os palacianos.
Para verificar a sua inconsequência, basta mostrar o que ele mesmo disse, na terça-feira, 17/3, ao encaminhar a mensagem nº 93 ao Congresso para que este reconhecesse a "necessidade de um estado de calamidade pública" em decorrência da pandemia da Covid-19 declarada pela Organização Mundial da Saúde: "O desafio para as autoridades governamentais em todo o mundo, além das evidentes questões de saúde pública, reside em ajudar empresas e pessoas, especialmente aquelas mais vulneráveis à desaceleração do crescimento econômico, a atravessar este momento inicial".
Pronunciamento de Jair Bolsonaro em rede de rádio e TV - Reprodução TV Globo
A resposta do Congresso ao seu apelo foi pronta e segura. Na quinta-feira, 19/3, o Senado aprovou, por unanimidade, a proposta do projeto de decreto legislativo nº 88, da Câmara. Deu ao Executivo os graus de liberdade pedidos, submetendo-o ao necessário controle de uma comissão parlamentar para que a expansão dos gastos não contamine o Orçamento em vigor. Usando-o, o Executivo emitiu, no domingo, 22/3, a rápida e malfeita Medida Provisória 927. Uma barbeiragem gigantesca, que obrigou o presidente a revogar, no dia seguinte, o seu artigo 18, que previa a possibilidade de suspender contratos de trabalho sem nenhuma remuneração ao trabalhador. Um evidente disparate.
Qual será o custo do enfrentamento da pandemia no Brasil? Ninguém pode responder, diante das incertezas das ações humanas somadas aos caprichos da dinâmica da evolução epidemiológica. Isso é irrelevante diante da absoluta necessidade moral de reduzirmos ao mínimo, com estratégias empiricamente testadas, o número de óbitos. Quem vai pagá-lo? Não é o governo, mas todos nós, a sociedade organizada que criou o Estado (que não gera recursos, só pode transferi-los) exatamente com esse objetivo: coordenar ações de todos no enfrentamento de tragédias como a que estamos vivendo.
Ao final e ao cabo, como sempre, todos pagaremos pelo empobrecimento geral, proporcionalmente à nossa situação de vulnerabilidade, exatamente como numa guerra. O Brasil nunca mais será o mesmo.
Terá de repensar a volta do seu crescimento com maior aumento da igualdade de oportunidades e ênfase total na perspectiva de aumento do acesso geracional de seus cidadãos. A crise talvez seja uma oportunidade civilizatória.
Antonio Delfim Netto
Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.

Bolsonaro Jones, Ruy Castro, FSP


Em novembro de 1978, um americano, James Warren Jones, 47 anos, "reverendo" da seita Templo do Povo, fundada por ele mesmo, induziu seus 909 seguidores numa comunidade agrícola chamada Jonestown, na Guiana, a cometer suicídio em massa, tomando suco de frutas (sabor uva) misturado com cianeto. Os primeiros a morrer foram as 276 crianças do local, envenenadas pelos pais. Em seguida, estes se deitaram e tomaram a beberagem fatal. Ato contínuo, Jim Jones, como passou à história, se matou com uma bala na cabeça.
Seu argumento para convencer os fiéis a morrer foi uma ameaça de invasão da comunidade por um suposto inimigo, nunca devidamente definido, que os escravizaria e submeteria a lavagem cerebral. O conteúdo das pregações de Jones era confuso e envolvia marxismo, budismo e metodismo, tudo embrulhado em roupagem messiânica ao estilo de Stalin ou Hitler. Não por acaso, sua mãe, quando ele nasceu, em 1931, na rural e atrasada Indiana, dizia ter dado à luz um "messias". Jones também devia se ver assim, porque parecia acreditar no que dizia. O fato é que nenhum outro líder carismático levou tantos seguidores —quase mil, de uma só vez e a uma simples ordem— tão cegamente à morte. Até agora.
Jair (já de batismo Messias) Bolsonaro pode bater o recorde de Jim Jones. Sua audácia em contrariar a ciência, a OMS, as medidas mundiais e o bom senso, insistindo em levar seus apoiadores a expor-se ao coronavírus, não é muito diferente de propor um suicídio coletivo.
É verdade que ele é o primeiro a seguir o próprio conselho. Sai à rua, deixa-se tocar e circula entre possíveis infectados como se fosse à prova de contágio. Ao desfilar sua autoproclamada invulnerabilidade, parece querer provocar um holocausto particular, como o de Jim Jones.
Jones, pelo menos, foi até o fim. Bolsonaro, para ser coerente, também terá de ir. E não será por falta de bala.
Jim Jones com seguidores de sua seita na Guiana
Jim Jones com seguidores de sua seita na Guiana - Reprodução
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.