quarta-feira, 1 de abril de 2020

Cemitérios de São Paulo têm ao menos 30 enterros por dia de mortos com suspeita de Covid-19, FSP

Maioria desses casos não aparece na contabilidade oficial porque aguardam resultados de testes

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Yan Boechat
SÃO PAULO
Os cemitérios públicos da cidade de São Paulo estão recebendo diariamente de 30 a 40 corpos de pessoas que morreram com suspeita de estarem contaminadas pelo novo coronavírus, mas sem que a condição fosse avalizada pelo teste laboratorial.
Por causa do atraso do Instituto Adolfo Lutz em disponibilizar os resultados dos testes de comprovação da doença, a imensa maioria desses mortos não aparece na contabilização feita pelo Ministério da Saúde como óbitos decorrentes da Covid-19.
Em quase todos os casos, os médicos que assinam os boletins de óbito, fundamentais para a permissão do sepultamento, afirmam que aguardam os resultados de exames para comprovação da causa da morte e apenas apontam suspeita de Covid-19.
Das 201 mortes registradas oficialmente no país até esta terça (31) em decorrência da infecção pelo novo coronavírus, a cidade de São Paulo respondia por 121, sendo que 79 delas ocorreram na Rede de hospitais particulares Sancta Maggiore.
Contudo, quase todos os corpos que estão chegando nos cemitérios públicos estão vindo do sistema público de saúde, que, diferentemente da rede particular, depende exclusivamente do Instituto Adolfo Lutz para o processamento dos testes de Covid-19.
“Sem a confirmação do instituto não podemos colocar a causa da morte como sendo a infecção pelo coronavírus, o caso fica em aberto, não tem jeito”, diz a médica sanitarista e coordenadora do Serviço de Epidemiologia do Instituto Emílio Ribas, Ana Freitas Ribeiro. Ela reconhece que há atualmente espera de até 20 dias em alguns casos para retorno dos resultados de testes.
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A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, assim como o Serviço Funerário Municipal da capital, se recusam a informar o número total de pessoas que vieram a óbito e foram enterradas como casos suspeitos de Covid-19.
De acordo com os dois órgãos, os números são internos e não serão divulgados enquanto os casos não forem confirmados pelos exames. A cidade enterra em média 250 mortos por dia em seus 22 cemitérios municipais.
“A minha impressão é a de que as mortes que estão ocorrendo no sistema público de saúde ainda não estão entrando na contabilidade oficial por causa da sobrecarga do Adolpho Lutz, que está demorando em alguns casos até 20 dias para entregar os resultados”, diz Sérgio Cimerman , coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia e ex-presidente da Associação Panamericana de Infectologia.
Até o início dessa semana, o Instituto Adolfo Lutz tinha uma fila de 14 mil testes aguardando resultado e recebia diariamente 1.200 novas amostras para serem testadas.
Sua capacidade de processamento era de 400 testes por dia, que foi ampliado agora, de acordo com a Secretaria Estadual da Saúde, para 1.000 testes diários.
“O que estamos vendo nesse momento nesses números de óbitos é uma realidade de duas ou três semanas atrás”, diz Cimerman. “E isso me preocupa profundamente, exatamente porque teremos uma explosão de casos daqui a algumas semanas, bem no meio da quarentena, e isso servirá de argumento de que o isolamento não funcionou.”
Nos maiores cemitérios públicos de São Paulo —como os de Vila Nova Cachoeirinha, Tremembé, São Luiz, Quarta Parada e Vila Formosa —os sepultamentos de pessoas com suspeita de estarem contaminadas com o coronavírus se transformaram em rotina nas últimas semanas.
Em cada um deles, desde a semana de 21 a 27 de março, são realizados de quatro a seis enterros, a cada dia, de pessoas com suspeita da doença.
Em alguns dias, como no domingo (29) no cemitério da Vila Formosa, o maior da América Latina, os corpos de mais de dez pessoas com suspeita de terem morrido em decorrência da Covid-19 foram enterrados.
Por lá os funcionários da área administrativa estimam que cerca de 200 corpos foram enterrados com suspeita de estarem contaminados pelo novo coronavírus desde o início da crise em São Paulo.
“Nós não sabemos quantos estavam mesmo e quantos não estavam, mas aqui tratamos como se todos estivessem com Covid-19. É triste, mas precisa ser assim”, conta um dos assistentes da administração central do Vila Formosa, falando de como os corpos são embalados. Sem resultado do teste, nenhum cadáver entra na contabilidade oficial.
O Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo tem pressionado a prefeitura a divulgar os números, sem sucesso. “Nosso pessoal tem relatado um aumento enorme desses casos, mas gostaríamos que o governo divulgasse os números de suspeitos para que nós e a população pudéssemos saber exatamente como agir”, diz o diretor do Sindsep, João Batista.
“Só hoje de manhã eu fui buscar seis, sozinho”, dizia no sábado (28) um motorista da frota de carros funerários da prefeitura que omite o nome para não ter problemas.
Segundo ele, o volume cresce a cada dia. Ele relata transportar corpos que já saem do hospital embalados em sacos plásticos e são levados diretamente para as covas, sem passar por funerárias, sem passar por tratamento de conservação nem por velórios.
Foi o assim o enterro do corpo da aposentada Maria José dos Teles Santos, que tinha 77 anos. Ela começou a apresentar sintomas de gripe há mais ou menos uma semana. Piorou, teve febre, falta de ar e foi internada na quarta-feira (25) na Santa Casa. Morreu no sábado (28) por insuficiência respiratória.
Seu boletim de óbito trazia uma informação comum entre pacientes que faleceram com os mesmos sintomas que ela: morte a esclarecer, aguardando swab de naso e orofaringe.
“No hospital nos disseram que ela provavelmente morreu de Covid-19, mas que enquanto o exame não chegar não poderão determinar a causa”, diz Pedro Domingos, Leite, sobrinho de Maria José. “É uma situação complicada, não pudemos nos despedir dela, não sabemos se estamos de fato infectados, não sabemos com certeza do que ela morreu”, diz ele.
Acompanhado de quatro amigos, viu o corpo da tia ser enterrado em uma cova rasa do Cemitério Vila Formosa. Não pôde fazer a despedia. O caixão saiu do carro funerário diretamente para a sepultura.

terça-feira, 31 de março de 2020

Advertência de Jeca Tatu ao presidente da República, El Pais

A essa altura da carreata da ignorância, só resta ao Jeca Tatu emancipado ―representante da gente na sala de televisão da quarentena― chamar na chincha o bocó lá de Brasília. Direto da Refazenda gilbertiana, cabe ao nosso Jeca Total mostrar que até o amarelão (ancilostomose) ainda faz estrago no Vale do Ribeira e em outras freguesias desprotegidas. Só o Jeca Tatu, o guru do Almanaque Biotônico Fontoura, para contar ao espertalhão do Planalto que o brasileiro, ao contrário do que ele folcloriza, não resiste meia hora ao esgoto e à falta de saneamento.
A febre do rato (leptospirose) segue castigando nos mocambos e palafitas, adverte o Jeca, sorumbático e macambúzio, saindo de pés-descalços do “Urupês” (livro de 1918) de Monteiro Lobato. Quem tem que ser estudado, o capiau segue na prosa, é Vossa Excelência, com todo respeito deste caipira. O brasileiro pega de tudo, não me venha com seus arroubos de vilão Vaca-Brava, pois até a lepra (hanseníase), daquela mais primitiva, campeia solta no mato e nos arrabaldes.
A criatura corre do mosquito e não escapa do caramujo, foge da dengue e vem a zika, na mesma terra onde ainda persistem sarampo, caxumba e rubéola. O sujeito acha que é apenas mais uma ressaca existencialista e lá vem o diagnóstico: chikungunya na caveira. Na roça, para a tristeza do Jeca, resistem a doença de Chagas, a peste bubônica, a curuba... Agora dá licença que vou tomar meu elixir de salsa, caroba e cabacinha, ave!, tesconjuro.
Jeca Total deve ser Jeca Tatu, presente, passado, memória das enfermidades brasileiras, com sua garrafa de pinga para enxotar o saturno dos trópicos, xô melancolia, arreda tristeza, vade retro perdigotos do Belzebu, do Cramulhão, do Pé-de-Pato, do Coxo, do Temba, do Coisa Ruim, do Mafarro, do Tristonho, do Não-Sei-Que-Diga, do Que-Nunca-Se-Ri, do Pai-da-Mentira, do Capeta, do Tendeiro, do Mafarro, do Capiroto, do Diacho, do Gabinete-do-Ódio, do Rei-Diabo, do Demonião, do Satanazim, do Língua-Solta e da vasta assembleia lucrativa sem fim.
Jeca Tatu, que saiba Vossa Excelência, pode ser da roça, mas não é besta, em matéria de coronavírus rumina o seu capinzim metafísico guardado na sua choupana, pita o seu cigarrinho de palha ouvindo Cascatinha & Inhana, mais precisamente a faixa “Índia”, sou Jeca mas não sou imbecil de marcar touca, de que vale o milharal depois de bater as botas?
Preguiçoso uma disgrama, repara se fui eu e minha família que passamos uma vida toda de flozô no parlamento, com direito a esquema de “rachadinha” e quetais, mordendo um naco do contracheque dos barnabés das cercanias. Desculpa aí, presidente, não queria desafinar a viola, mas seu exército de tabaréus não toca outra moda, a não ser xingar a gente de indolente e vagaba. Nem o amigo Mazzaropi escapou dessa, foi barrado na cancela, virou comunista simplesmente por ter filmado “O Corintiano”, vê se pode! Imagina se os papa-capins tivessem visto A banda das Velhas Virgens, que fita de cinema.
No Brasil das amarelidões, Jeca Tatu pode ser a cor tingida na crônica de Renato Carneiro Campos que serviu de guia ao filme Amarelo manga, do diretor Claudio Assis: “Amarelo é a cor das mesas, dos bancos, dos tambores, dos cabos, das peixeiras, da enxada e da estrovenga. Do carro de boi, das cangas, dos chapéus envelhecidos. Da charque! Amarelo das doenças, das remelas, dos olhos dos meninos, das feridas purulentas, dos escarros, das verminoses, das hepatites, das diarreias, dos dentes apodrecidos... Tempo interior amarelo. Velho, desbotado, doente.”
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Big Jato” (editora Companhia das Letras), entre outros livros. Comentarista do programa “Redação Sportv”.

Moisés Naím - Sem precedentes, OESP

Uma pandemia exige também uma grande dose de coordenação internacional

Moisés Naím, O Estado de S.Paulo
31 de março de 2020 | 04h00
“Chegamos aos primeiros 100 mil casos de infecção pelo coronavírus em 67 dias. Onze dias depois, chegamos a mais 100 mil, e o terceiro grupo de 100 mil infectados foi produzido em 4 dias. Depois, em apenas dois dias, foram outros 100 mil.” Foram as palavras de Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor da Organização Mundial da Saúde, aos líderes que participaram de uma reunião de cúpula a respeito da covid-19. “Estamos em guerra”, disse. “E temos de fazer mais. Não é uma opção, e sim uma obrigação.”
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Uma pandemia exige também uma grande dose de coordenação internacionalFoto: Juan Arredondo/NYT
No dia seguinte, o Senado dos EUA, historicamente disfuncional e fraturado, aprovou por unanimidade o maior pacote de medidas de ajuda econômica da história da humanidade. Mais de US$ 2 trilhões serão entregues a pessoas, governos locais e empresas privadas com o objetivo de mitigar a devastação causada pelas medidas necessárias ao enfrentamento da pandemia.
Quanto são US$ 2 trilhões? A explicação de Antony Bugg-Levine é: “Se, durante 24 horas por dia, por sete dias, a cada segundo, somarmos uma nota de um dólar, em aproximadamente duas semanas teremos juntado US$ 1 milhão. Para se chegar a US$ 1 bilhão, levaríamos 40 anos. Para chegar a US$ 2 trilhões, levaríamos 80 mil anos”.
A magnitude dessa iniciativa econômica é surpreendente. Mas ainda mais surpreendente é o fato de nem mesmo essa inusitada injeção de dinheiro ser suficiente para evitar uma contração da economia americana. A maioria dos especialistas imagina que, neste ano, teremos uma recessão nos EUA. Essa recessão causará um número sem precedentes de demissões, despejos de estabelecimentos por falta de pagamento do aluguel e uma onda de empresas quebradas.
O pessimismo se deve, primordialmente, aos inevitáveis riscos e problemas na distribuição dos US$ 2 trilhões aprovados pelo governo, bem como à continuidade da catástrofe sanitária. Pode ser que, para muitos dos possíveis beneficiários, o socorro financeiro chegue tarde. Muitas pequenas e médias empresas que ficaram sem clientes podem se ver forçadas a fechar as portas antes que chegue o auxílio financeiro.
Esses consumidores que não compram mais estão agora fazendo fila para cobrar o seguro-desemprego. Três semanas atrás, os EUA receberam 200 mil pedidos de ajuda econômica por parte de pessoas que perderam o emprego. O número mais alto de solicitações ocorreu em 1982, quando 650 mil trabalhadores pediram seguro-desemprego. Na semana passada, esse número foi de 3,3 milhões de pessoas, dez vezes mais do que na semana anterior.
A economia americana não é a única que está com problemas. A da China, por exemplo, ia mal antes da covid-19. Agora, a pandemia e as eficazes (ainda que severas) reações do governo causaram a segunda contração econômica mais grave da história do país desde os anos 70. 
Lutar contra o coronavírus é muito caro e esse custo se traduz em aumento sem precedentes no gasto público e nos níveis de endividamento do governo. Esse impacto é ainda mais grave nos países com grandes populações, economias precárias e sistemas de saúde fracos. ÍndiaNigériaPaquistão, Brasil, África do Sul, Bangladesh e México são exemplos de países pobres e populosos que sofrerão fortes crises fiscais.
Uma pandemia que deve ser enfrentada com ações locais, como o isolamento dos indivíduos e a solidariedade social, exige também uma grande dose de coordenação internacional. Os países devem se ajudar e atuar conjuntamente em relação a suas políticas econômicas, sua coordenação financeira e monetária, as políticas de crédito e a eliminação de barreiras ao comércio de remédios, materiais e equipamento hospitalar, por exemplo.
A atuação local, no nível mais individual possível, faz tanta falta quanto a atuação global no nível mais multilateral possível. Isso é possível, e o mundo já o fez antes. Na grave crise econômica mundial de 2007 e 2009, foi reativado o G-20, uma organização formada em 1999 por duas dezenas de países, que até então tinha sido irrelevante. Os chefes de governo dos países integrantes se revezam na liderança do G-20 e, durante a crise financeira, coube ao então primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, atuar como líder do G-20.
Brown e outros de seus colegas decidiram converter o G-20 no centro de coordenação econômica do mundo. Ainda que erros tenham sido cometidos nas respostas à grande recessão, também é verdade que o G-20 reativado e ativista contribuiu para que o estrago do imenso crash de 2007 e 2009 não fosse ainda pior.
Na crise que estamos vivendo, o isolamento individual salva vidas. Mas, no nível dos países, o isolamento nacional só fará com que os custos da crise sejam ainda maiores. Nessa pandemia sem precedentes, há precedentes que podem ser muito úteis. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL