sábado, 3 de novembro de 2018

Sonhos e realidade, Fernando Gabeira, O Estado de S.Paulo

A vitória de Bolsonaro não é idêntica à de Trump. Mas antes e depois das duas eleições há pontos de contato. Não servem para explicar tudo, mas ajudam.
Um dos livros em que encontro as semelhanças é de Mark Lilla, uma crítica aos liberais com um subtítulo interessante: Depois das políticas de identidade. A julgar pelo livro de Lilla (The Once and Future Liberal: After Identity Politics), a vitória de Trump suscitou o mesmo movimento nos EUA e no Brasil: resistência. Lilla põe essa palavra entre aspas, pois significa uma oposição a tudo o que Trump representa, sem ainda uma visão clara de futuro.
A vitória de uma figura controvertida acabou despertando nos EUA uma grande solidariedade entre os derrotados, campanhas, marchas, abaixo-assinados. Mas ainda são raras aqui, no Brasil, onde Bolsonaro acaba de vencer, as visões críticas do período que abriu o caminho para que ele triunfasse.
Lilla fala no descaminho dos democratas por se terem fixado nas políticas identitárias: mulheres, homossexuais, indígenas e negros. Não que seja contra essas lutas.
Sua análise da campanha republicana mostra que na maior parte do tempo ela se fixava em temas nacionais, que interessam a todos. O exame do site democrata, no entanto, revela grande peso às lutas fragmentárias, que interessam a setores bem específicos do eleitorado.
Lilla considera um erro a fixação nas lutas identitárias porque elas afastam um pouco as pessoas dos temas mais amplos, que envolvem o bem comum. As pessoas mergulhadas nessas lutas têm tendência menor a defender temas nacionais, sair para uma conversa nas ruas sobre o que ele chama o bem comum.
Coincidência ou não, eu já tinha manifestado em artigos a mesma reserva quanto ao alcance das lutas identitárias na eleição brasileira. Também na minha crítica ressaltava a ausência da ênfase no bem comum, só que nos meus textos não usava essa expressão, mas a adesão a um projeto nacional.
Num artigo afirmava que as lutas que ainda chamam das minorias tendem a criar a necessária solidariedade de grupo, regras e objetivos próprios. Mas ela se dá em oposição a uma sociedade que ainda não reconhece esses direitos.
Torna-se muito difícil conversar com o homem comum, encontrar um assunto que mobilize todos, e não apenas alguns setores da sociedade. No caso brasileiro, os três grandes temas nacionais em jogo passaram um pouco ao largo das forças de esquerda. Um deles era a corrupção. A esquerda o subestima de modo geral e o escamoteia especificamente quando o PT é o maior acusado.
Um segundo grande tema nacional foi a segurança. A visão clássica e tradicional da esquerda é condicioná-la à melhoria das condições econômicas, da educação, da renda. Como a expectativa é de respostas em curto prazo, o discurso cai no vazio e é facilmente ironizado.
Um terceiro tema, mais intelectualizado, foi a discussão sobre o tamanho e o papel do Estado na economia. Também aí a perspectiva privatizante pareceu mais atraente. E não só pela teoria. As manifestações de 2013, em parte, revelaram a precariedade dos serviços públicos.
A corrupção também passou a ser uma chave para explicar o fracasso do governo. Tenho a impressão de que é a conversa na rua quando não se tem nada a dizer sobre aqueles temas.
Uma das características da luta identitária é a autoexpressão: sou gay, negro ou indígena e tenho orgulho de minha condição. Isso é irretocável na posição pessoal. No entanto, Lilla observa em seu livro que numa campanha eleitoral não é a autoexpressão que conta, mas a persuasão.
O exemplo que usa para definir o comportamento dos liberais nos EUA talvez seja aplicado também à esquerda brasileira. Lilla compara as eleições à pesca. É preciso acordar cedo e pescar até tarde, lá onde o peixe existe, e não onde você gostaria que estivesse. Se o peixe morde a isca e se debate, dê linha e espere que se acalme.
Mas, para o escritor, os liberais ficaram na praia discorrendo sobre os problemas do mar, sobre a necessidade de a vida aquática abrir mão de seus privilégios. Tudo na esperança de os peixes confessarem coletivamente seus pecados e nadarem mansamente para ser pescados. Se esse é o seu enfoque da pesca, lembra Lilla, o melhor é se tornar vegetariano.
Nesta altura, não se podem comparar totalmente as táticas. No caso brasileiro, se, de um lado, a luta identitária pode ter dificultado um pouco a conquista da maioria, o caminho eleitoral das minorias acabou comprometendo o seu futuro. Isso simplesmente porque no tema central, a corrupção, o PT, embora não seja o único, é o maior acusado. A associação entre o partido e as minorias acabou trazendo para elas também a desconfiança do homem comum.
Não sei ainda como as coisas se vão recompor. Se as lideranças minoritárias fizerem uma análise do que se passou, creio que um dos seus passos será libertar-se de governos. Para isso é preciso ter uma nova visão da importância dos recursos materiais na política. O período que se encerra foi marcado por campanhas milionárias. O PT venceu com uma em 2002 e não reaprendeu o caminho da austeridade.
A vitória de Bolsonaro, a julgar pela de Trump, deve suscitar um grande movimento, que até lembrou aos liberais americanos que eles têm mais energia do que suspeitavam.
Aqui, no Brasil, enquanto estiverem gravitando em torno de um partido acusado de corrupção, os simpatizantes da esquerda podem até descobrir uma energia insuspeitada. No entanto, a chance de essa energia se dissolver em vão é muito grande, sobretudo se as pessoas não pararem um segundo para pensar, achando que o momento é como a Quarta-Feira de Cinzas em Salvador, onde todos saem às ruas cantando e dançando as mesmas músicas do carnaval que passou.
Faria bem um tempo de reflexão, estudos e debates. Foi tudo tão rápido e, para alguns, tão surpreendente que, a rigor, nem o governo nem a oposição sabem precisamente o que fazer.
JORNALISTA

Que Semana, Marcelo Rubens Paiva, O Estado de S. Paulo



Que semana... A sociedade brasileira tem o direito de pedir serenidade ao futuro chefe de Estado






Marcelo Rubens Paiva, O Estado de S. Paulo
03 Novembro 2018 | 02h00
Que semana... A sociedade civil brasileira tem o direito de pedir serenidade ao futuro chefe de Estado. E suas entidades têm o dever de controlar abusos e incoerências dos eleitores. O candidato antissistema precisa repensar o que diz, afinal, ele é sistema agora.
Quatro alunos da Faculdade de Economia e Administração (USP) entraram com roupas militares, armas e as placas “a nova era está chegando” e “está com medo petista safada?” na faculdade e tiram fotos. A USP já identificou três e abriu sindicância.
Aluno da universidade de Bragança Paulista foi preso ao entrar com canivete, rifle de airsoft e bastão, e ameaçou colegas. A Guarda Civil o prendeu em flagrante. A universidade abriu uma sindicância para apurar. O aluno negou as ameaças, mas não explicou as armas.
Quatro apoiadores do presidente eleito invadiram assembleia do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, em Camboriú (SC). O empresário Emílio Dalçoquio, de Itajaí, exaltou-se e deu vivas ao ditador chileno Augusto Pinochet: “Matou quem tinha que matar”.
Segunda-feira, estudante do curso pré-vestibular Oficina do Estudante, de Campinas, levou uma arma de brinquedo e ameaçou os colegas. Disse que voltaria para matar estudantes homossexuais. Foi expulso.
Mãe jornalista de Natal (CE) fantasiou o filho de escravo para o Halloween da escola e postou fotos. Chegou a maquiar as costas do garoto com marcas de chicote. Queria abrasileirar a festa, contou: “Não leiam livros de história do Brasil. Eles dizem que existiu escravidão de negros no País, mas isso é mentira”. Pediu desculpas depois e apagou as fotos. O MP ainda não decidiu se instaura processo.
Deputada estadual recém-eleita, professora Ana Campagnolo, abriu um canal de denúncias na internet para fiscalizar “professores doutrinadores” que, em sala de aula, tivessem “manifestações político-ideológicas”. O juiz Giuliano Ziembowicz, da Vara da Infância e da Juventude de Florianópolis, determinou que a deputada retire a publicação, pois “fere o direito dos alunos de usufruírem da liberdade de expressão da atividade intelectual em aula, que deve ser exercida sem censura.”
O governador eleito do Rio, Wilson Witzel, pediu desculpas à família de Marielle Franco, depois de apoiar a quebra da placa de rua com o nome da vereadora do PSOL executada.
A Marcha do Chola Mais foi agendada pelo Facebook para “cantar e comemorar” a vitória de Bolsonaro pelas ruas da USP. Um dos organizadores, deputado estadual eleito (PSL-SP), Paulo Douglas Garcia, cofundador do movimento Direita São Paulo, não estuda na instituição. Rolou empurra-empurra.
Estudante da Faculdade de Direito do Mackenzie postou vídeos afirmando “estar armado com faca, pistola, o diabo, louco para ver um vagabundo com camiseta vermelha para matar logo”, e “essa negraiada vai morrer”. Pediu desculpas depois, disse que foi uma “bobagem”, um “impulso”, uma “fala completamente equivocada”: “Acabei externando nessas palavras completamente equivocadas, erradas, a pessoas que não tinham nada a ver com a minha indignação. Pelo contrário, não sou uma pessoa racista, muito menos violento”. O MP de São Paulo abriu inquérito.
Ele foi suspenso da faculdade e mandado embora da firma em que trabalhava, DDSA Advogados, que soltou: “Tomamos conhecimento, na tarde de hoje, de vídeo que circula nas redes sociais com declarações efetuadas por acadêmico de Direito que fazia estágio no escritório e imediatamente o desligou de seus quadros. O escritório repudia veementemente qualquer manifestação que viole direitos e garantias estabelecidos pela Constituição Federal”.
Jair Bolsonaro, por três décadas, criou um repertório grande de declarações misóginas, homofóbicas, racistas, somadas a ataques à imprensa e discurso de ódio, que avalizam o comportamento dos seus aliados.
Apoiadores de Bolsonaro entraram na Universidade de Brasília para comemorar a vitória do ex-capitão. Convidados a se retirar, quebraram o pau com estudantes do ICC (Instituto Central de Ciências). A segurança interveio.
Assessor parlamentar de imprensa do presidente eleito entrou num grupo no WhatsApp formado por jornalistas que cobriam a campanha e escreveu: “Vocês são o maior engodo do Jornalismo do Brasil!!!! LIXO”. Escreveu depois: “Gostaria de apresentar minhas sinceras desculpas junto aos jornalistas brasileiros, que por ventura se sentiram atingidos, no tocante ao meu excesso verbal. Agi de forma rude e equivocada para mostrar minha insatisfação na cobertura jornalística do cenário político nacional”.
O ministro Luís Roberto Barroso anunciou que STF se unirá em defesa de negros, gays, mulheres e da liberdade de expressão: “O Supremo pode ter estado dividido em relação ao enfrentamento da corrupção. Muitos laços históricos difíceis de se desfazerem, infelizmente. Mas em relação à proteção dos direitos fundamentais, ele sempre esteve unido”.
O grupo Ninguém Fica Pra Trás abriu conta no site de contribuição coletiva: “O ódio pode estar mais forte do que nunca, mas nossa resposta começa aqui, e agora. Vamos nos unir nesta enorme campanha de financiamento coletivo para apoiar iniciativas que acolhem pessoas vítimas de violência, intolerância, misoginia, homofobia e racismo... A eleição de Bolsonaro tem um efeito grave e imediato: o aumento dos crimes de ódio sobre grupos que foram hostilizados em seus discursos. Mulheres, negras e negros, população LBGTQI, povos tradicionais e refugiados sempre sentiram na pele os efeitos da intolerância – mas agora, com um presidente que incita o ódio publicamente, essas vidas estão ainda mais ameaçadas”.
A Associação Nacional de Jornais, OAB, ABI, Repórteres Sem Fronteiras, Federação Nacional dos Jornalistas, Comitê de Proteção aos Jornalistas e outras entidades repudiaram a entrevista ao Jornal Nacional em que o candidato eleito voltou a atacar a Folha de S. Paulo e afirmou que “por si só, esse jornal se acabou”.
Na quinta-feira, na sua primeira coletiva, foi vetada a presença de representantes dos jornais EstadoFolhaO Globo e agências internacionais. Que semana...

O presidenciável, João Domingos, OESP

Ao aceitar o Ministério da Justiça, o juiz Sérgio Moro se torna candidato ao Planalto

João Domingos, O Estado de S.Paulo
03 Novembro 2018 | 03h00
No momento em que aceitou o convite para assumir o Ministério da Justiça, o juiz Sérgio Moro credenciou-se para se candidatar à sucessão do próprio chefe, caso prospere a ideia de Jair Bolsonaro de acabar com a reeleição. Ou até para concorrer com Bolsonaro, se a reeleição for mantida e o capitão reformado do Exército se sentir tentado a buscar um outro mandato. 
Esse será o caminho de Moro. Por mais que ele e Bolsonaro digam que o cargo de ministro serve para que o governo central assuma o combate à corrupção e ao crime organizado, e que, depois, o juiz de Curitiba será nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) quando uma vaga surgir, o fato é que, hoje, Moro está credenciado a disputar a próxima eleição para a Presidência da República.
A nomeação de Sérgio Moro para um superministério da Justiça a ser criado é também o pagamento de uma promessa de campanha feita por Bolsonaro ao eleitor que o elegeu, um eleitor que parece dar mais importância ao combate à corrupção do que às questões econômicas. Não que o nome do juiz estivesse vinculado à promessa. Mas, ao nomeá-lo, a identificação de uma coisa com a outra foi imediata. O eleitor talvez não tenha votado em Bolsonaro porque ele gosta de Bolsonaro. Ele votou no capitão porque este assumiu um discurso anti-PT e anticorrupção, e se propôs a ser aquele que virá demolir tudo para que algo novo nasça. Essa é a visão que uma boa parte do eleitorado vencedor tem daquele a quem deu o voto.
Alguém pode discordar de tudo isso. E certamente muitos vão discordar. O fato é que Bolsonaro venceu a eleição ao se opor ao PT, ao sistema político, aos esqueminhas e esquemões que costumam capturar governos e os tornam reféns do fisiologismo. Tanto é que, ao nomear Moro, Bolsonaro foi criticado por aliados e opositores, pois ele pôs no jogo político um nome que tem tudo para construir uma carreira política a partir de agora. O eleitor vibrou, ao contrário do status quo político, que aguarda a hora de botar a faca no pescoço de Bolsonaro em nome da governabilidade.
Quanto a Moro, mesmo que ele venha a dizer que não quer se tornar um político, como disse em 2016, numa entrevista ao Estado, ao aceitar o convite para o Ministério da Justiça ele se tornou político. Porque o cargo é político. Porque Moro tem vocação política. Na entrevista ao Estado, Moro chegou a dizer que jamais seria político. Estava enganado. Sua carreira de êxito na magistratura foi pontuada por atos políticos. Quando, em 2016, atropelando o relógio, divulgou o conteúdo de conversas entre a então presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula, à véspera do impeachment, ele tomou uma decisão política. Por ela foi advertido. Se não tivesse divulgado o teor do grampo, que mostrava as manobras para dar foro privilegiado a Lula e livrá-lo de uma ordem de prisão, Dilma talvez não tivesse sofrido o processo de impeachment. Foi um gesto tão político que mudou a História.
Quando o juiz autorizou o acesso público a parte do conteúdo da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci, a uma semana do primeiro turno da eleição de 2018, Moro tomou uma decisão política, mesmo que no limite do que orienta a Lei Orgânica da Magistratura.
Moro sabe que, ao aceitar o convite para o Ministério da Justiça, ele deixa de ser o juiz de Curitiba reconhecido mundialmente pelo combate à corrupção e ao crime organizado. Passa a ser um superministro da Justiça com uma missão complexa. Se tudo der certo, e sua passagem pela Justiça resolver questões relacionadas à corrupção e ao crime organizado, será empurrado para o próximo passo, o de tentar ser o presidente da República do combate à corrupção e ao crime organizado.