sexta-feira, 4 de maio de 2018

Grande problema, grande cidade, FERNANDO GABEIRA*, O Estado de S.Paulo


Por que tragédias num lugar que pode ser um dos mais atraentes da metrópole?


04 Maio 2018 | 03h00
Passei uma semana no centro de São Paulo, antes da queda do prédio de 24 andares no Largo do Paiçandu. Meu foco era a Cracolândia, mas não deixei de registrar a grande presença de moradores de rua, cerca de 25 mil na cidade, e os prédios ocupados pelos movimentos de sem-teto.
Um deles me impressionou. Tinha 20 andares, a pintura encardida e cortinas rosa, vermelhas, verdes, algumas improvisadas com papelão. A imagem me levou a alguns minutos de contemplação.
Um funcionário da Secretaria de Habitação me informou que havia negociações em curso para comprá-lo e achar uma saída, antes que as coisas ficassem mais graves. Um prédio com as mesmas características pegou fogo e desabou. Havia negociações em curso.
Como entendo pouco do tema, procurei saber algo mais com os atores envolvidos. Supunha que divergências ideológicas estivessem travando soluções de consenso. Saí de São Paulo com uma sensação de que o problema é tão complexo que o ideal seria definir pontos de convergência e tentar algumas soluções, inclusive para a Cracolândia.
Não deixa de ser ingênuo desejar que as pessoas deixem a rigidez ideológica na porta e discutam de uma forma madura medidas pragmáticas. Os que se apoiam na ideologia e dependem do conflito para mobilizar precisam experimentar também pequenas realizações para descobrir que não se cresce só brigando, mas também fazendo acordos.
Existem setores que vão resistir. Na Cracolândia, por exemplo, o crime organizado está presente e quer manter as coisas como estão. Como explicar a invasão e o saque aos prédios populares que eram a vitrine do governo Alckmin naquela região?
Os moradores do prédio no Largo do Paiçandu pagavam entre R$ 200 e R$ 500 de aluguel. O movimento político que administrava a invasão tem interesses materiais no status quo. Pelo que pude observar, examinando propostas do governo e dos intelectuais de esquerda que fizeram o projeto de renovação dos Campos Elísios, algumas casas populares estavam nos planos de ambas as partes.
Apesar do grande desastre no Largo Paiçandu, o que senti nas ruas de São Paulo é que os moradores de rua estavam vivendo um momento favorável, se é possível dizer isso. Foram dias de sol e o verão abriu lugares menos hostis. Eu os vi na lateral da Prefeitura e do outro lado da rua. São muitas as ONGs e igrejas que procuram alimentá-los. No inverno as coisas ficam mais difíceis – 25 mil pessoas ao relento equivalem à população de muitas cidades do interior. Como agasalhá-los ou mesmo prevenir doenças e morte? A isso se soma o fato de que mais de 1 milhão de pessoas vivem em condições precárias de habitação.
Ao observar o que se passa na Cracolândia e no centro, outro ângulo me preocupou: a segurança biológica. Vivemos tempos difíceis e o próprio Bill Gates ao lado de um grupo de cientistas advertiu sobre o perigo das epidemias, que podem ser devastadoras. É preciso incluir essa dimensão no planejamento urbano, evitar a vulnerabilidade de parte da população porque, em tese, o destino de todos está em jogo.
Minha viagem a São Paulo foi uma introdução à gravidade do problema. Ele não acontece por acaso: milhares de pessoas deixam suas cidades em busca de uma chance na metrópole.
Mas São Paulo é maior que esse problema. Isso não significa que não se viva aqui um dos grandes dramas nacionais. O prédio desabado, por exemplo, era do governo federal.
Os candidatos a presidente poderiam fazer uma visita ao centro de São Paulo. Mesmo que isso não os motive, pelo menos conheceriam um importante aspecto do país que pretendem governar.
Mencionei a Cracolândia e o centro num artigo na semana passada, desejando aprender com as soluções e torcendo por elas. Concluí que se a sensação de urgência não prevalecer sobre a rigidez da visão ideológica, corremos o risco de tornar o Brasil ingovernável.
A queda de um edifício de 24 andares no centro da maior e mais rica cidade do Brasil é algo forte demais para ser um episódio perdido no tempo. Para mim, o lugar é uma espécie de marco zero. Não só o terror devasta, mas também anos de indecisão e descaminhos.
Soluções amplas para problemas dessa dimensão precisam de dinheiro. Se puder vir de todas as fontes, melhor. O governo federal tem uma secretaria de drogas. Não é possível que não tenha uma política para a Cracolândia, onde o drama se mostra sem máscara.
Uma renovação desse território é tão desafiadora que até o seu êxito pode criar novos problemas: uma política bem-sucedida com a população de rua, em tese, pode atrair mais gente para a metrópole.
Casas populares numa área economicamente forte podem originar o que os ingleses chamam de gentrificação. Elas se valorizam, os moradores as vendem para gente de mais poder aquisitivo. Mas é melhor tratar com eles do que com o fracasso. Na verdade, as coisas estão mudando na região, mas num ritmo ainda lento.
Um hospital será construído na Cracolândia, o Pérola Byington. A base policial montada no Largo Coração de Jesus é elogiada pelos moradores. Embora os soldados não cheguem até o chamado fluxo, a concentração de usuários de crack, eles garantem uma segurança no entorno.
Três postos do governo acolhem usuários e moradores de rua em espaços onde podem comer, tomar banho, dormir, obter documentos e até fazer terapia musical. Comparando imagens que fiz agora com as do passado, cheguei à conclusão de que houve uma redução, um progresso territorial que afastou de uma praça e alguns outros pontos a concentração de usuários.
Tomara que a queda do edifício ajude também a apressar os passos dados, desatar longas negociações. Por que tragédias num lugar que pode ser um dos mais atraentes da metrópole?
* FERNANDO GABEIRA É JORNALISTA

Vazio por anos, prédio é reformado por sem-teto e agora vira exemplo em SP, FSP

Políticas tendem a preferir construções novas; edifício tem síndicos linha dura

À esq., prédio vazio e pichado, em 2011; à dir. fachada do edifício agora, após reforma
À esq., prédio vazio e pichado, em 2011; à dir. fachada do edifício agora, após reforma - Adriano Vizoni - 26.mai.2011 e Marlene Bergamo - 03.mai.18/Folhapress
Angela Pinho
SÃO PAULO
Marli Baffini, 60, viu pela janela o início do incêndio no edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, na madrugada de terça-feira (1º). Ao seu lado, estava o amigo e vizinho Wemerson Silva, 32. “Foi o tempo de ele virar de costas, e desabou tudo”, lembra ela.
Agora sem o arranha-céu na paisagem, a vista da cidade é uma novidade para muitos no prédio de Marli e Wemerson, síndica e subsíndico do edifício Dandara, na avenida Ipiranga. Ela, por exemplo, pela primeira vez dorme em um quarto com janela após quase quatro décadas em São Paulo.
Seu apartamento é um dos 120 do imóvel, localizado a duas quadras da avenida São João. 
Construído nos anos 1970, o prédio abrigou a Justiça do Trabalho e ficou 16 anos vazio até receber as famílias sem-teto que se mudaram para lá no último mês de janeiro, após uma reforma completa.
Empreendimentos como esse não são regra na cidade. Apontada por urbanistas como um exemplo do que poderia ser feito em prédios abandonados no centro como o que desabou na terça-feira, a revitalização de edifícios ociosos para moradia social é uma exceção no país.
“O Brasil não tem uma cultura de reformas de prédios para habitação”, diz o urbanista Kazuo Nakano, professor da Unifesp. “Lisboa, por exemplo, teve e, por isso, tem um centro muito dinâmico”, afirma.
“Ligadas ao fomento da construção civil, as políticas habitacionais sempre estiveram obcecadas em construir casa”, completa Raquel Rolnik, docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Exemplo disso é o Minha Casa Minha Vida. O maior programa habitacional do país já financiou 126 empreendimentos em São Paulo, mas apenas três são “retrofits” —termo do jargão construtivo que designa a atualização de imóveis antigos, com aproveitamento de elementos mais antigos.
Um desses três “retrofits” é um empreendimento privado, também na avenida Ipiranga. Os outros dois são prédios reformados pelo movimento Unificação das Lutas de Cortiço (ULC) por meio do Minha Casa Minha Vida - Entidades. Por essa modalidade do programa, movimentos de moradia se responsabilizam pela entrega dos imóveis, com financiamento da Caixa.
São as entidades também que escolhem quem vai morar no imóvel, com base nos requisitos do Minha Casa e em critérios próprios, como participação em ocupações e atos.
Dos três “retrofits”, o Dandara é o único em que os moradores escolheram de detalhes do acabamento às regras de condomínio.
Pertencente à União, o prédio foi cedido à ULC após ser invadido em 2009. A construção começou cinco anos depois, com financiamento da Caixa Econômica Federal e do Governo de São Paulo. Até que as obras fossem entregues, moradores se revezaram dia e noite em uma vigília.
O medo, contam Wemerson e Marli, era que o prédio fosse ocupado por outros movimentos, como havia acontecido com outro reformado pela ULC na rua Conselheiro Crispiniano —os invasores acabaram deixando o imóvel, mas o incidente acabou por atrasar a entrega.
Para não deixar que isso ocorresse de novo, os futuros moradores do Dandara fizeram  um revezamento. Quem trabalhava à noite, ia para lá de dia, e vice-versa. Colchonetes e sacos de dormir se espalharam pelo salão de festas, que ainda mantém o piso de madeira e o janelão de vidro originais da construção.
Ao mesmo tempo, uma assistente social organizava uma espécie de curso de noções básicas sobre a vida em condomínio: que destino dar ao lixo e como passar de um andar para o outro, por exemplo. “Muita gente ainda tem medo de andar de elevador”, lembra Marli.
Uma vez que todos receberam as lições e as chaves foram entregues, ela e Wemerson se responsabilizaram pelo cumprimento das regras aprovadas por todos em assembleia.
Ela, ex-vendedora e metalúrgica, está há quase 40 anos em São Paulo após vir do Paraná. Ele, atualmente trabalhando no próprio condomínio, chegou de Alagoas com uma sacola de roupas, um travesseiro e um lençol.
Ambos garantem que não tem jeitinho para quem quiser sair da linha. Não pode, por exemplo, ficar conversando na escada, bater tapete na janela para tirar a poeira e muito menos estender roupa na janela. “Se alguém faz isso, eu interfono na hora. Não dá para bobear, estamos em um prédio muito lindo”, diz ela.

ENTRAVES

A Prefeitura de São Paulo afirma que adquiriu nove edifícios com “retrofit” para um programa piloto para moradores de rua em parceria com o governo federal. A administração cita também o Palacete dos Artistas, na São João, voltado a pessoas que já passaram pelo meio artísitico.
A Secretaria Estadual da Habitação diz que viabilizou dois empreendimentos por meio de “retrofit”, um em 2010 e outro em 2011, ambos na região central.
Para especialistas e empreendedores, esses números não são maiores por dois outros motivos, além da falta de tradição das políticas habitacionais. Um deles é o teto financeiro do Minha Casa Minha Vida: para lucrar mais, empreiteiras preferem construir em terrenos mais baratos e, portanto, na periferia.
Outro é a falta de uma legislação construtiva específica para o “retrofit”, afirma Claudio Bernardes, presidente do Conselho Consultivo do Secovi-SP (sindicato das construtoras de SP).
O urbanista Nakano afirma que parâmetros como a distância entre as saídas dos apartamentos e os elevadores são alguns dos entraves. “É possível pensar em critérios de segurança que não tornem inviável construir”, diz.