sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Estudos para uma cidade em movimento, Pesquisa Fapesp


Estudos mostram como a fotografia moldou a forma de ver o mundo
MAURICIO PULS | ED. 254 | ABRIL 2017

Revista Pesquisa FAPESP
Podcast: Lívia Aquino
00:00 / 12:18
Presentes nos documentos pessoais, nas publicações impressas e nas redes sociais, as fotos se tornaram imprescindíveis ao funcionamento da sociedade moderna. No livro Picture ahead – A Kodak e a construção do turista-fotógrafo, a fotógrafa e professora de artes visuais Lívia Aquino, coordenadora da Pós-graduação em Fotografia da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), de São Paulo, mostra que essa onipresença da imagem emergiu após um longo processo de popularização das câmeras, no qual a Kodak, fabricante norte-americana de máquinas fotográficas, desempenhou um papel decisivo.
Inventada na primeira metade do século XIX, a fotografia revolucionou a memória coletiva: graças às máquinas, surgiu a possibilidade de criar um suporte objetivo para as recordações. Os fotógrafos de estúdio se multiplicaram e começaram a abastecer as residências das famílias prósperas com retratos em poses solenes.
“A fotografia aos poucos se inseriu na vida cotidiana, construindo narrativas visuais, como os álbuns de família”, observa a historiadora Solange Ferraz de Lima, diretora do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (MP-USP). “Ao registrar os ritos familiares (batizados, casamentos e formaturas) e os momentos de ruptura (nascimentos, funerais e separações), tais narrativas reforçavam as identidades pessoais e os laços comunitários e davam aos indivíduos a consciência das mudanças trazidas pelo tempo.”
A difusão da fotografia entrou em nova fase a partir de 1888, quando o norte-americano George Eastman lançou um aparelho mais barato e de fácil manuseio: a câmera Kodak. Com ela, as pessoas podiam produzir suas próprias imagens sem recorrer a profissionais. Nessa mesma época, as viagens turísticas – anteriormente um privilégio de poucos – estavam se tornando acessíveis às demais classes sociais devido ao surgimento de novos meios de transporte (navios a vapor, trens, automóveis) e da concessão de férias remuneradas aos assalariados.
O fundador da Kodak percebeu que existia aí um grande mercado para as câmeras portáteis e investiu pesadamente em campanhas publicitárias para convencer o público de que férias não fotografadas eram férias desperdiçadas. Graças à fotografia, cada família podia agora ostentar seu status de turista.
Lívia Aquino mostra como a fotografia e o turismo se entrelaçaram como objetos de desejo. “A fotografia e o turismo nos disciplinaram”, opina a pesquisadora, cujo livro é resultado de sua tese de doutorado realizado na Unicamp. Para ela, planejar a viagem, fotografá-la à exaustão, levar as fotos ao laboratório, montar os álbuns ou os slides, reunir parentes e amigos para exibir as imagens eram práticas que compunham um ritual familiar. “São normas que não soam como normas”, diz, “porque as pessoas as aceitam de forma voluntária, movidas por seus anseios de reconhecimento social”.


A publicidade incitava todos a rodar o mundo carregando uma câmera, como nesses anúncios de 1919…
Converter-se num fotógrafo amador trazia benefícios para a autoimagem. Os anúncios da Kodak apresentavam o fotógrafo como um homem destemido, um “caçador” de imagens. “George Eastman era um caçador de animais selvagens, tinha muitos troféus. Dizia que a fotografia substituía a caça. Isso está na base da fotografia amadora. Seu primeiro slogan foi: ‘Você aperta o gatilho, e a gente faz o resto’.” As campanhas da Kodak dividiam o mundo entre as pessoas que viam e as que apenas eram vistas, como dizia o slogan “Metade do mundo agora sabe como vive a outra metade”. Ter uma câmera era um sinal de distinção social.
A identificação do fotógrafo como um caçador teve impacto no imaginário popular e esse profissional se converteu no protagonista de numerosas obras de ficção. Algumas delas foram estudadas por Gabriela Coppola em sua tese “Através do fotógrafo: Intercorrências do ser, agir e olhar em narrativas de personagens fotógrafos”, defendida em 2015 na Unicamp. À Pesquisa FAPESP, Gabriela disse que a fascinação suscitada pelo fotógrafo provém de seu poder de conservar “o tempo e a memória das pessoas e dos fatos”. Há também o outro lado: ele pode retratar uma pessoa da maneira como ela mais deseja, embora seja capaz igualmente de arruinar a sua imagem. Nas narrativas sobre os fotógrafos, os personagens (como os protagonistas dos filmes Blow up, de Michelangelo Antonioni, Palermo shooting, de Wim Wenders, e O homem aranha, de Sam Raimi), são ocidentais de pele clara, talvez porque “a própria história da fotografia é composta em sua maioria por homens com essas características”, afirma Gabriela. No Brasil o quadro é o mesmo: das 11 telenovelas da Rede Globo listadas, esses papéis eram desempenhados, na sua grande maioria, por homens brancos.
Fotos em museus
No Brasil da Primeira República (1889-1930), as câmeras ainda eram aparelhos relativamente caros, conta a historiadora Zita Possamai, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora da tese de doutorado “Cidade fotografada: Memória e esquecimento nos álbuns fotográficos de Porto Alegre, décadas de 1920 e 1930”, defendida na UFRGS em 2005, ela assinala que “a câmera fotográfica era um objeto de valor entre os pertences dos lares e, certamente, estava restrita às camadas mais abastadas da população”.
Essa ostentação se tornou mais sutil à medida que as câmeras fotográficas foram se massificando. “No século XIX as poses rígidas e com lugares bem determinados não eram resultado só de condições técnicas, mas pretendiam explicitar claramente os lugares sociais ocupados por cada personagem. Posteriormente, as fotos ‘espontâneas’ que entraram em voga no século XX tendiam a dissimular esses sinais de distinção, sem, contudo, eliminá-los”, explica Solange. Os retratos perderam a aura solene, inspirada nos quadros dos pintores acadêmicos do século XIX, e adquiriram uma entonação mais natural.
A democratização da imagem não afetou somente os retratos: o mundo passou a ser visto de modo menos simétrico e um tanto caótico. No livro Fotografia e cidade (Mercado das Letras, 1997), Solange e a também historiadora do MP-USP Vania Carneiro de Carvalho analisaram os álbuns de fotografias em dois momentos: nas duas primeiras décadas do século XX e nas comemorações do IV Centenário. Solange diz que, na Primeira República, as clássicas fotos do suíço Guilherme Gaensly valorizavam “a ordenação retilínea e a uniformidade dos lotes por meio de tomadas diagonais que promovem uma articulação dos planos fotográficos por meio da contiguidade espacial”, representada por árvores alinhadas, pelo meio-fio ou pelos trilhos dos bondes.
Já nas imagens da década de 1950, a cidade surge mais fragmentada: “Os planos fotográficos são articulados por sobreposições, e efeitos de contraste de luzes e escalas evidenciam as características da arquitetura moderna dos edifícios da região central de São Paulo”, analisam Solange e Vania no livro. Em resumo: “A verticalização, os transeuntes urbanos em movimento e a cidade em permanente construção são temas por excelência dos álbuns dos anos 1950, que dialogavam com o repertório formal da fotografia moderna em contraste com a cidade racionalmente arranjada que os álbuns da década de 1910 dão a conhecer”.


Foto de Guilherme Gaensly da avenida Paulista (1902) mostra uma cidade racionalmente arranjada
O novo olhar trazido pela fotografia, contudo, demorou a ser absorvido pelas instituições ligadas à arte. “A fotografia entrou nos museus de arte já em meados do século XIX, mas unicamente como uma ferramenta de reprodução e difusão das obras de arte”, esclarece a historiadora de arte Helouise Costa, do Museu de Arte Contemporânea da USP.
No fim do século XIX, os fotógrafos apontavam as qualidades do novo meio, mas não conseguiam sensibilizar as instituições, que viam no caráter mecânico das fotos e na sua reprodutibilidade atributos incompatíveis com a arte. Isso levou os modernistas a tentar dar uma aura estética às fotos limitando sua tiragem e destacando “a ideia de originalidade e autoria”, conta Helouise.
Foi preciso esperar décadas para que a fotografia entrasse nos museus. O primeiro foi o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York: começou a realizar exposições de fotos em 1932 e criou um departamento de fotografia em 1940. Segundo Helouise, na década de 1960 a fotografia foi incorporada pela arte contemporânea, seja nos desdobramentos da pop art, que fez da reprodutibilidade a base da sua poética, seja nas diferentes práticas da arte conceitual, que colocaram em xeque a autonomia da obra de arte. “No Brasil, o reconhecimento da fotografia pelo circuito artístico começa com o surgimento dos museus modernos no final da década de 1940 e a criação da Bienal de São Paulo no início dos anos 1950.”
Com a internet e os telefones celulares, os retratos das horas de lazer e as coleções de slides ganharam o mundo. “É importante entender”, diz Solange, “que esse presente saturado de imagens digitais compartilhadas nas redes sociais tem uma história, está assentado em práticas anteriores”. A Kodak desapareceu, mas o dispositivo que engendrou práticas sociais ligadas à fotografia sobreviveu. “O dispositivo sobreviveu, passou para outros meios”, ressalta Lívia. “Quando abrimos nossa timeline no Facebook, ela lembra o que temos de recordar como uma projeção de slides.”
Projeto
O imaginário do turista: Relações entre fotografia e memória (nº 10/07961-8); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável Iara Lis Franco Schiavinatto (Unicamp); Beneficiária Lívia Afonso de Aquino; Investimento R$ 127.003,87.
Artigos científicos
COSTA, H. e LIMA, S. F. Da fotografia como arte à arte como fotografia: A experiência do Museu de Arte Contemporânea da USP na década de 1970Anais do Museu Paulista. v. 16, n. 2. jul/dez. 2008.
POSSAMAI, Z. R. Narrativas fotográficas sobre a cidadeRevista Brasileira de História. v. 27, n. 53. jan/jun. 2007.
CARVALHO, V. C. et alFotografia no museu: O projeto de curadoria da coleção Militão Augusto de AzevedoAnais do Museu Paulista. On-line. 1997.
Livros
AQUINO, L. Picture ahead: A Kodak e a construção do turista-fotógrafo. Autopublicado com o apoio do Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia, 2016, 264 p. Disponível para ser baixado gratuitamente
LIMA, S. F. e CARVALHO, V. C. Fotografia e cidade: Da razão urbana à lógica do consumo. Álbuns de São Paulo (1887-1954). Campinas: Mercado das Letras, 1997, 272 p.

A onipresença da imagem, Pesquisa Fapesp


Estudos mostram como a fotografia moldou a forma de ver o mundo
MAURICIO PULS | ED. 254 | ABRIL 2017

Revista Pesquisa FAPESP
Podcast: Lívia Aquino
00:00 / 12:18
Presentes nos documentos pessoais, nas publicações impressas e nas redes sociais, as fotos se tornaram imprescindíveis ao funcionamento da sociedade moderna. No livro Picture ahead – A Kodak e a construção do turista-fotógrafo, a fotógrafa e professora de artes visuais Lívia Aquino, coordenadora da Pós-graduação em Fotografia da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), de São Paulo, mostra que essa onipresença da imagem emergiu após um longo processo de popularização das câmeras, no qual a Kodak, fabricante norte-americana de máquinas fotográficas, desempenhou um papel decisivo.
Inventada na primeira metade do século XIX, a fotografia revolucionou a memória coletiva: graças às máquinas, surgiu a possibilidade de criar um suporte objetivo para as recordações. Os fotógrafos de estúdio se multiplicaram e começaram a abastecer as residências das famílias prósperas com retratos em poses solenes.
“A fotografia aos poucos se inseriu na vida cotidiana, construindo narrativas visuais, como os álbuns de família”, observa a historiadora Solange Ferraz de Lima, diretora do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (MP-USP). “Ao registrar os ritos familiares (batizados, casamentos e formaturas) e os momentos de ruptura (nascimentos, funerais e separações), tais narrativas reforçavam as identidades pessoais e os laços comunitários e davam aos indivíduos a consciência das mudanças trazidas pelo tempo.”
A difusão da fotografia entrou em nova fase a partir de 1888, quando o norte-americano George Eastman lançou um aparelho mais barato e de fácil manuseio: a câmera Kodak. Com ela, as pessoas podiam produzir suas próprias imagens sem recorrer a profissionais. Nessa mesma época, as viagens turísticas – anteriormente um privilégio de poucos – estavam se tornando acessíveis às demais classes sociais devido ao surgimento de novos meios de transporte (navios a vapor, trens, automóveis) e da concessão de férias remuneradas aos assalariados.
O fundador da Kodak percebeu que existia aí um grande mercado para as câmeras portáteis e investiu pesadamente em campanhas publicitárias para convencer o público de que férias não fotografadas eram férias desperdiçadas. Graças à fotografia, cada família podia agora ostentar seu status de turista.
Lívia Aquino mostra como a fotografia e o turismo se entrelaçaram como objetos de desejo. “A fotografia e o turismo nos disciplinaram”, opina a pesquisadora, cujo livro é resultado de sua tese de doutorado realizado na Unicamp. Para ela, planejar a viagem, fotografá-la à exaustão, levar as fotos ao laboratório, montar os álbuns ou os slides, reunir parentes e amigos para exibir as imagens eram práticas que compunham um ritual familiar. “São normas que não soam como normas”, diz, “porque as pessoas as aceitam de forma voluntária, movidas por seus anseios de reconhecimento social”.


A publicidade incitava todos a rodar o mundo carregando uma câmera, como nesses anúncios de 1919…
Converter-se num fotógrafo amador trazia benefícios para a autoimagem. Os anúncios da Kodak apresentavam o fotógrafo como um homem destemido, um “caçador” de imagens. “George Eastman era um caçador de animais selvagens, tinha muitos troféus. Dizia que a fotografia substituía a caça. Isso está na base da fotografia amadora. Seu primeiro slogan foi: ‘Você aperta o gatilho, e a gente faz o resto’.” As campanhas da Kodak dividiam o mundo entre as pessoas que viam e as que apenas eram vistas, como dizia o slogan “Metade do mundo agora sabe como vive a outra metade”. Ter uma câmera era um sinal de distinção social.
A identificação do fotógrafo como um caçador teve impacto no imaginário popular e esse profissional se converteu no protagonista de numerosas obras de ficção. Algumas delas foram estudadas por Gabriela Coppola em sua tese “Através do fotógrafo: Intercorrências do ser, agir e olhar em narrativas de personagens fotógrafos”, defendida em 2015 na Unicamp. À Pesquisa FAPESP, Gabriela disse que a fascinação suscitada pelo fotógrafo provém de seu poder de conservar “o tempo e a memória das pessoas e dos fatos”. Há também o outro lado: ele pode retratar uma pessoa da maneira como ela mais deseja, embora seja capaz igualmente de arruinar a sua imagem. Nas narrativas sobre os fotógrafos, os personagens (como os protagonistas dos filmes Blow up, de Michelangelo Antonioni, Palermo shooting, de Wim Wenders, e O homem aranha, de Sam Raimi), são ocidentais de pele clara, talvez porque “a própria história da fotografia é composta em sua maioria por homens com essas características”, afirma Gabriela. No Brasil o quadro é o mesmo: das 11 telenovelas da Rede Globo listadas, esses papéis eram desempenhados, na sua grande maioria, por homens brancos.
Fotos em museus
No Brasil da Primeira República (1889-1930), as câmeras ainda eram aparelhos relativamente caros, conta a historiadora Zita Possamai, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora da tese de doutorado “Cidade fotografada: Memória e esquecimento nos álbuns fotográficos de Porto Alegre, décadas de 1920 e 1930”, defendida na UFRGS em 2005, ela assinala que “a câmera fotográfica era um objeto de valor entre os pertences dos lares e, certamente, estava restrita às camadas mais abastadas da população”.
Essa ostentação se tornou mais sutil à medida que as câmeras fotográficas foram se massificando. “No século XIX as poses rígidas e com lugares bem determinados não eram resultado só de condições técnicas, mas pretendiam explicitar claramente os lugares sociais ocupados por cada personagem. Posteriormente, as fotos ‘espontâneas’ que entraram em voga no século XX tendiam a dissimular esses sinais de distinção, sem, contudo, eliminá-los”, explica Solange. Os retratos perderam a aura solene, inspirada nos quadros dos pintores acadêmicos do século XIX, e adquiriram uma entonação mais natural.
A democratização da imagem não afetou somente os retratos: o mundo passou a ser visto de modo menos simétrico e um tanto caótico. No livro Fotografia e cidade (Mercado das Letras, 1997), Solange e a também historiadora do MP-USP Vania Carneiro de Carvalho analisaram os álbuns de fotografias em dois momentos: nas duas primeiras décadas do século XX e nas comemorações do IV Centenário. Solange diz que, na Primeira República, as clássicas fotos do suíço Guilherme Gaensly valorizavam “a ordenação retilínea e a uniformidade dos lotes por meio de tomadas diagonais que promovem uma articulação dos planos fotográficos por meio da contiguidade espacial”, representada por árvores alinhadas, pelo meio-fio ou pelos trilhos dos bondes.
Já nas imagens da década de 1950, a cidade surge mais fragmentada: “Os planos fotográficos são articulados por sobreposições, e efeitos de contraste de luzes e escalas evidenciam as características da arquitetura moderna dos edifícios da região central de São Paulo”, analisam Solange e Vania no livro. Em resumo: “A verticalização, os transeuntes urbanos em movimento e a cidade em permanente construção são temas por excelência dos álbuns dos anos 1950, que dialogavam com o repertório formal da fotografia moderna em contraste com a cidade racionalmente arranjada que os álbuns da década de 1910 dão a conhecer”.


Foto de Guilherme Gaensly da avenida Paulista (1902) mostra uma cidade racionalmente arranjada
O novo olhar trazido pela fotografia, contudo, demorou a ser absorvido pelas instituições ligadas à arte. “A fotografia entrou nos museus de arte já em meados do século XIX, mas unicamente como uma ferramenta de reprodução e difusão das obras de arte”, esclarece a historiadora de arte Helouise Costa, do Museu de Arte Contemporânea da USP.
No fim do século XIX, os fotógrafos apontavam as qualidades do novo meio, mas não conseguiam sensibilizar as instituições, que viam no caráter mecânico das fotos e na sua reprodutibilidade atributos incompatíveis com a arte. Isso levou os modernistas a tentar dar uma aura estética às fotos limitando sua tiragem e destacando “a ideia de originalidade e autoria”, conta Helouise.
Foi preciso esperar décadas para que a fotografia entrasse nos museus. O primeiro foi o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York: começou a realizar exposições de fotos em 1932 e criou um departamento de fotografia em 1940. Segundo Helouise, na década de 1960 a fotografia foi incorporada pela arte contemporânea, seja nos desdobramentos da pop art, que fez da reprodutibilidade a base da sua poética, seja nas diferentes práticas da arte conceitual, que colocaram em xeque a autonomia da obra de arte. “No Brasil, o reconhecimento da fotografia pelo circuito artístico começa com o surgimento dos museus modernos no final da década de 1940 e a criação da Bienal de São Paulo no início dos anos 1950.”
Com a internet e os telefones celulares, os retratos das horas de lazer e as coleções de slides ganharam o mundo. “É importante entender”, diz Solange, “que esse presente saturado de imagens digitais compartilhadas nas redes sociais tem uma história, está assentado em práticas anteriores”. A Kodak desapareceu, mas o dispositivo que engendrou práticas sociais ligadas à fotografia sobreviveu. “O dispositivo sobreviveu, passou para outros meios”, ressalta Lívia. “Quando abrimos nossa timeline no Facebook, ela lembra o que temos de recordar como uma projeção de slides.”
Projeto
O imaginário do turista: Relações entre fotografia e memória (nº 10/07961-8); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável Iara Lis Franco Schiavinatto (Unicamp); Beneficiária Lívia Afonso de Aquino; Investimento R$ 127.003,87.
Artigos científicos
COSTA, H. e LIMA, S. F. Da fotografia como arte à arte como fotografia: A experiência do Museu de Arte Contemporânea da USP na década de 1970Anais do Museu Paulista. v. 16, n. 2. jul/dez. 2008.
POSSAMAI, Z. R. Narrativas fotográficas sobre a cidadeRevista Brasileira de História. v. 27, n. 53. jan/jun. 2007.
CARVALHO, V. C. et alFotografia no museu: O projeto de curadoria da coleção Militão Augusto de AzevedoAnais do Museu Paulista. On-line. 1997.
Livros
AQUINO, L. Picture ahead: A Kodak e a construção do turista-fotógrafo. Autopublicado com o apoio do Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia, 2016, 264 p. Disponível para ser baixado gratuitamente
LIMA, S. F. e CARVALHO, V. C. Fotografia e cidade: Da razão urbana à lógica do consumo. Álbuns de São Paulo (1887-1954). Campinas: Mercado das Letras, 1997, 272 p.

A vida entre muros, Pesquisa Fapesp

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Condomínios fechados e shopping centers acentuam a separação socioespacial em cidades médias
CARLOS FIORAVANTI | ED. 254 | ABRIL 2017




Conjunto do programa Minha Casa Minha Vida para moradores de faixa intermediária de renda próximo ao centro de Presidente Prudente
Presidente Prudente – município com 230 mil habitantes a 558 quilômetros da capital paulista – parece estar se desagregando, à medida que os grupos de moradores com ganhos econômicos mais altos e os com renda mais baixa se fecham em seus espaços. Outras cidades de porte médio de São Paulo – com 100 mil a 600 mil habitantes, que exercem um papel de polo regional, com influência sobre dezenas de municípios próximos – vivem o mesmo fenômeno, de acordo com estudos realizados nos últimos anos por uma equipe de pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Quem sai do centro de Prudente rumo ao norte observa terrenos ocupados por propriedades rurais, como se a cidade estivesse terminando. Mas não. Mais adiante emergem dezenas de fileiras de casas geminadas. É um dos conjuntos habitacionais para moradores de baixa renda do programa Minha Casa Minha Vida, com 2.600 casas e cerca de 8 mil pessoas, inaugurado em 2015. Lançado em 2009, o Minha Casa, como é conhecido, tornou-se o maior programa habitacional do país dos últimos 30 anos, com quase R$ 300 bilhões investidos e 10,5 milhões de pessoas beneficiadas até outubro de 2016.
078-083_Cidades médias_254-info1Vistas de perto, as casas exibem diferenças: programas complementares de crédito para a compra de materiais de construção permitem a construção de muros altos e portões que as fecham inteiramente, enquanto outras permanecem abertas. Anúncios de mercados, bares e salões de beleza ocupam as fachadas das casas, mesmo sem permissão legal para abrigarem atividades comerciais. Na paisagem sem árvores destaca-se a torre amarela da escola, cercada por muros e cerca elétrica.
Ao sul, a 9 quilômetros dali, estendem-se os condomínios de luxo, cercados por muros com 4 metros de altura encimados pelos fios das cercas elétricas. “Nas entrevistas que fizemos, os moradores diziam que a maior preocupação era a segurança, mas reconheceram que buscam a distinção social por meio do lugar onde moram, comenta o geógrafo Arthur Whitacker, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Unesp em Presidente Prudente. Não se veem casas nem pessoas nas ruas, apenas os longos muros. Muros altos com arames farpados fecham também os blocos de prédios dos moradores da categoria intermediária de renda do programa Minha Casa Minha Vida, mais próximos ao centro da cidade.
078-083_Cidades médias_254-info2Os condomínios contribuem para o alargamento da área urbana. Em um artigo publicado neste ano na revista Mercator, da Universidade Federal do Ceará (UFC), o geógrafo francês Hervé Théry, professor visitante da Universidade de São Paulo (USP), observou que o Minha Casa induziu a formação de bairros que se tornaram os maiores em cidades como Ponta Porã (MS) e Sobral (CE).
“Os condomínios fechados de faixas de renda distintas estão se configurando como se fossem várias cidades em uma só, já que seus moradores raramente se encontram”, sintetiza a geógrafa Maria Encarnação Sposito, professora da Unesp, coordenadora de uma equipe multidisciplinar que tem pesquisado as transformações das cidades médias. Ela explica que a separação socioespacial – examinada pelo geógrafo Milton Santos (1926-2001) na década de 1980, com base em seus estudos sobre metrópoles – agora se intensifica, em decorrência da escassez de espaços de convivência entre as diferentes classes sociais, como as ruas dos centros das cidades, hoje ocupadas predominantemente pelas pessoas de menor renda.


Escola (torre amarela) e vista geral de casas da população de baixa renda, ao norte de Presidente Prudente
Para mostrar o alcance desse fenômeno, Maria Encarnação abre os mapas das seis cidades estudadas por seu grupo desde 2012: Presidente Prudente, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, Marília e São Carlos, em São Paulo, e Londrina, no Paraná, examinadas por causa de sua proximidade histórica e econômica, já que as seis resultaram da cafeicultura, principalmente no início do século XX. Os mapas elaborados com base no Censo de 2010 e em levantamentos de campo evidenciam a concentração dos condomínios populares e as áreas mais densamente povoadas ao norte e as áreas mais ricas ao sul em cinco cidades: Prudente, Ribeirão Preto, Rio Preto, Marília e Londrina. Em São Carlos ocorre o inverso, os ricos estão ao norte e os pobres ao sul, e a divisão não é tão clara, “mas já se desenha uma setorização, com a construção de novos condomínios de luxo”, diz a geógrafa.
Reforçando essa conclusão, três arquitetos – Bárbara Siqueira, professora da Universidade do Extremo Sul Catarinense, Sandra Silva e Ricardo Silva, professores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – examinaram a ocupação urbana em São Carlos e São José do Rio Preto de 1970 a 2010 e concluíram que os condomínios fechados reforçam “os processos de fragmentação social e espacial das bordas urbanas, seja pela produção de grandes espaços murados, seja pelo espraiamento horizontal e descontínuo das cidades”, de acordo com um artigo de 2016 publicado na Revista Políticas Públicas & Cidades.


Residências com muros e portões …
Insegurança urbana
Os estudos do grupo da Unesp indicaram uma forte atuação das empresas imobiliárias na definição das áreas a serem ocupadas pelos novos loteamentos. Os moradores, por sua vez, sentem-se protegidos da violência urbana nos condomínios fechados e felizes por terem a possibilidade de comprar a casa própria. “Os moradores de todos os grupos sociais que entrevistamos relataram uma sensação de insegurança difusa, como se a violência urbana estivesse por toda parte e não em áreas ou momentos específicos”, diz a historiadora Eda Góes, professora da Unesp que coordenou as entrevistas. “E a ideia de insegurança urbana sustenta o ideal de morar em condomínios fechados.” Segundo ela, a crescente separação socioespacial representa “uma negação da cidade como espaço comum coletivo, a essência do urbano”.
Maria Encarnação, Eda e os outros pesquisadores do grupo identificam as prováveis consequências da segregação socioespacial: a valorização dos espaços privados e a desvalorização dos espaços públicos, como o centro da cidade e as praças; o esvaziamento das ruas, que se tornam espaços de circulação e não de encontros; o crescimento de estereótipos sociais sobre os grupos mais ricos e os mais pobres; e o fortalecimento de novos mecanismos de produção do espaço urbano. Antes, lembra a coordenadora da equipe, a formação de uma área comercial ou residencial era o resultado da iniciativa conjunta de pequenos empresários, do poder público e dos moradores.


…e comércio: preocupação com a segurança é comum a todas as classes
“Hoje quem produz o espaço urbano e rege a expansão das cidades são essencialmente as empresas imobiliárias, que, com o aval do poder público, definem onde construir os condomínios e os shoppings centers, que rapidamente estabelecem novos centros comerciais”, afirma Maria Encarnação. O economista Everaldo Melazzo, professor da Unesp que analisou a atuação das empresas imobiliárias, acrescenta: “As imobiliárias escolhem as áreas a serem ocupadas e o público que as ocupará de acordo com os preços dos terrenos”. Melazzo alerta sobre os limites desse mecanismo de expansão e ocupação das cidades, que não é mais questionado: “Somente o capital privado não consegue organizar e dar vida social para as cidades. Políticas públicas são fundamentais para organizar e qualificar a produção do espaço urbano”.
Identificação ou desconforto
Em expansão no Brasil a partir da década de 1960, os shopping centers reforçam a separação social ao criar espaços privados de lazer e consumo voltados a públicos específicos. Em um artigo publicado na revista portuguesa Finisterra, Eda Góes argumentou que os shoppings deixam os visitantes mais ou menos à vontade, desse modo, selecionando-os, por meio de propagandas que podem gerar identificação ou desconforto, da quantidade e da prontidão dos vigias e das câmeras de segurança. Eda encontrou 50 câmeras no Prudenshopping e 16 no Parque Shopping, criado em 1989, próximo ao centro da cidade para atingir um público de menor poder aquisitivo. Segundo ela, o sistema de vigilância expressa uma prática de controle social que é até mesmo desejada pelos frequentadores, destacando “uma suposta eficiência do mercado para dar resposta a problemas que o Estado não se tem mostrado capaz, como é o caso da insegurança”.


Vista externa de um dos condomínios de luxo…
De modo geral, os shopping centers transformaram rapidamente o centro das cidades, ao atrair as lojas interessadas em públicos mais endinheirados, ou induzir a adequação dos estabelecimentos de rua a uma clientela de menor poder de compra. “O comércio varejista procura seus próprios nichos de mercado”, conta o geógrafo e professor da Unesp Eliseu Sposito, que estudou as consequências da chegada de grandes redes de lojas de eletrodomésticos nas cidades médias. Ele observou também as mudanças no comércio varejista de Chapecó, em Santa Catarina, uma das 18 cidades estudadas pelos 43 pesquisadores da Rede de Cidades Médias (ReCiMe), formada por 17 universidades do Brasil, duas do Chile e uma da Argentina. Os trabalhos do Grupo de Pesquisa Produção do Espaço e Redefinições Regionais (GAsPERR) da Unesp e de outros da ReCiMe ajudam a entender os processos e ritmos de transformação próprios das cidades médias.
Formado por 18 pesquisadores e mais de 50 estudantes, o grupo da Unesp que estuda as cidades médias entrevistou, entre 2012 e 2016, moradores dos seis municípios para entender as mudanças nos hábitos de consumo e o impacto da chegada das grandes redes de varejo, que criam novos centros comerciais. Em consequência da ação de novas empresas varejistas, “os centros das cidades médias perdem prestígio social e estão cada vez mais populares, mas não morreram”, diz Whitacker. Com várias lojas tocando músicas ao mesmo tempo, as ruas centrais permitem uma expressividade e uma espontaneidade raramente consentidas em shoppings. “As passeatas e os protestos da população ocorrem aqui”, diz Melazzo, caminhando rumo ao camelódromo, autodenominado shopping popular.


…e casas de famílias de alta renda, ambos ao sul de Presidente Prudente
Às seis da tarde, porém, as lojas fecham e as ruas silenciam. Os cinemas de rua, entre eles o Cine Presidente, acabaram na década de 1990. “O centro da cidade é apenas o centro comercial, não mais o centro da vida social dos moradores”, conclui o geógrafo Nécio Turra Neto, professor da Unesp que estudou as transformações do lazer noturno na cidade, constituído pelos bares, boates e danceterias, hoje concentrados nas avenidas próximas ao Prudenshopping.
Projeto
Lógicas econômicas e práticas espaciais contemporâneas: Cidades médias e consumo (nº 11/20155-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Maria Encarnação Beltrão Sposito (Unesp); Investimento R$ 3.646.985,87.
Artigos científicos
GÓES, E. Shopping center: Consumo, simulação e controle socialFinisterra. v. 51, n. 102, p. 65-80. 2016.
SIQUEIRA, B. V. et alNovas configurações em periferias de cidades médias paulistas: A proliferação dos empreendimentos habitacionais com controle de acessoRevista Políticas Públicas & Cidades. v. 4, n. 1, p. 69-92. 2016.
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