segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Breves linhas sobre a reforma trabalhista - ALMIR PAZZIANOTTO PINTO


O ESTADÃO  - 10/08

O que sobrará da estrutura legada pela era Vargas, que resiste no artigo 8.º da Carta?



“Ninguém põe vinho novo em odres velhos”
Mateus 16:17

A reforma da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) dá os primeiros passos com as Leis 13.429 e 13.467, ambas deste ano. A primeira confere legitimidade à terceirização. A segunda passará a vigorar em 120 dias. Trata-se de norma legal ambiciosa, complexa, destinada a modernizar a CLT. Somente, porém, após a incorporação gráfica à Consolidação conheceremos os resultados do casamento da nova com a velha lei, obra jurídica erguida sobre os princípios do contrato realidade, da hipossuficiência do trabalhador, da presença tutelar do Estado.

Dar-se-ão bem ou explodirão conflitos conjugais?

Ministros, desembargadores, juízes, procuradores, advogados, sindicalistas, gestores de recursos humanos deverão debruçar-se sobre o polêmico diploma legal para conhecê-lo nas entrelinhas. Multiplicar-se-ão artigos, seminários, palestras, debates com a missão de decifrar um texto repleto de interrogações e carente de simplicidade.

Sete eixos orientam a Lei 13.467: 1) Deter os excessos do Poder Judiciário trabalhista; 2) reduzir o brutal volume de ações; 3) recuperar, para o cidadão empregado, a plena capacidade de exercer direitos e assumir responsabilidades; 4) valorizar as negociações coletivas e protegê-las contra ataques do Ministério Público do Trabalho; 5) incentivar o diálogo entre patrões e empregados; 6) democratizar a estrutura sindical; e 7) acelerar o processo do trabalho.

Para conter a impetuosidade do Judiciário trabalhista a lei ordena que “súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei”. O que temos aqui é a ênfase do óbvio, pois o artigo 5.º, II, da Constituição federal já prescreve: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. A jurisprudência sumulada do Tribunal Superior do Trabalho (TST) convertera-se em ameaça a empregadores, incapazes de se defender de enunciados conflitantes com normas legais ou editados sem julgados precedentes.

Para reduzir o número de reclamações individuais a lei altera as normas da CLT que regem o pagamento de custas e institui a regra da sucumbência. Com idêntico objetivo havia sido aprovada a Lei n.º 10.537/2002. Admitem as justificativas do projeto que “um dos problemas relacionados ao excesso de demandas na Justiça do Trabalho é a falta de onerosidade para se ingressar com uma ação, com a ausência de sucumbência e o grande número de pedidos de justiça gratuita. Essa litigância sem riscos acaba por estimular o ajuizamento da ação trabalhista”. Reconhece, todavia, estar no artigo 5.º, LXXIV, da Constituição federal a raiz do problema, porque assegura o benefício da justiça integral e gratuita “aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

As observações são reais. Pergunta-se, no entanto, se a nova legislação terá sucesso em seara onde fracassou a anterior. Ao desempregado não faltarão razões para dizer que lhe falta dinheiro. O mesmo ocorrerá com o pai de família cujo salário gira em torno de 2 ou 3 mil reais. Melhor teria sido texto curto e direto para cobrança de custas e honorários. Como sempre, diante de pedido de justiça gratuita o juiz decidirá.

A nova lei autoriza o trabalhador a negociar com o empregador, sem intermediário sindical, o banco de horas. A ele caberá, também, decidir se aceita a jornada de 12 horas por 36 de descanso e ajustar, se for o caso, prestação de serviços em regime de teletrabalho. Merece destaque a supressão da assistência e homologação na extinção do contrato. Se houver dispensa coletiva, a recente legislação deixa expressa a desnecessidade de concordância do sindicato. São providências simples que visam a afastar do trabalhador a imagem do hipossuficiente incapaz.

O reconhecimento das convenções e dos acordos coletivos integra o rol de garantias fundamentais dos trabalhadores urbanos e rurais. É o que prescreve o artigo 7.º, XXVI, da Constituição. Equivoca-se o legislador ao distinguir o que pode do que não pode ser coletivamente negociado. A norma constitucional é autoaplicável. Independe de regulamento. Por outro lado, a Convenção n.º 154 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada e incorporada à legislação trabalhista pelo presidente Itamar Franco em 1994, afirma aos sindicatos o direito de decidir e negociar a pauta de reivindicações em liberdade, sem indesejável interferência do governo,

Incorre a lei, mais uma vez, em erro ao disciplinar a representação dos empregados nas empresas. O artigo 11 da Constituição abre espaço ao diálogo. Permite, nos estabelecimentos com mais de 200 empregados, “a eleição de um representante destes com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores”. A matéria pertence à esfera das negociações. Nesse aspecto o texto contradiz o relatório que alerta sobre “a necessidade de trazer as leis trabalhistas para o mundo real” e denuncia “o excesso de normas trabalhistas rígidas”.

No que toca ao pagamento da contribuição sindical, o assunto pertence às dúvidas sobre o futuro de decadente sindicalismo. Indaga-se o que sobrará, nos próximos anos, da estrutura legada pela era Vargas, resistente no artigo 8.º da Constituição. Sobreviverão as categorias econômicas e profissionais estanques, o monopólio de representação na base territorial, o registro no Ministério do Trabalho e Emprego, ou os sindicatos serão incluídos no Código Civil entre as pessoas jurídicas de direito privado? São perguntas que o legislador deixa no ar.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho

É de Primeiro Mundo - CELSO MING, OESP


ESTADÃO - 10/08

A inflação de 2017 tende a ficar ao redor dos 3,0%, bem abaixo da meta, que é de 4,5%



A principal característica da inflação de julho é a de que alguns dos principais itens que puxaram os preços nesse mês deixarão de produzir efeitos nos próximos. Vêm de uma vez por todas, digamos assim.

Essa característica é importante na medida em que não se espera retomada da inflação. O repique de julho fica por aí. Os aumentos de preços concentrados na energia elétrica (mudança para bandeira vermelha) e nos combustíveis (alta de impostos sobre gasolina e óleo diesel) não deverão ter impacto significativo nos próximos meses.

É preciso notar, também, mudança relevante nos preços administrados (apenas para quem não está habituado com essa terminologia, estes são os preços determinados não propriamente pelo princípio da oferta e da procura, mas por força de lei, regulamento ou imposição das autoridades). Nesse segmento estavam as tarifas de energia elétrica e de combustíveis. Na medida em que a Petrobrás introduziu na formação de seus preços o conceito de paridade externa, até mesmo em periodicidade diária; e na medida em que a adoção de bandeiras nas tarifas de energia, que se baseiam na utilização ou não de energia mais cara produzida pelas usinas térmicas, esses preços deixaram de se reajustar pelo critério anterior. A principal consequência é a de que não mais se acumulam reajustes taludos que um dia são descarregados de uma vez sobre os preços, como no passado recente. Ou seja, além de eliminar forte fator de incerteza, o novo critério de preços deixou de ter impacto mais expressivo sobre a inflação.

Algumas análises se apressaram em concluir que, desta vez, os preços administrados voltaram a ter força na formação da inflação. É uma conclusão incorreta ou, no mínimo questionável, porque a composição do segmento dos preços administrados está mudando. Não se pode medi-lo como se mantivesse composição uniforme, como antes.

A inflação no período de 12 meses terminado em julho ficou nos 2,71%, a mais baixa desde 1999 e já mais próximo do padrão dos países industrializados. Apesar da esticada de julho, de 0,24%, bem mais alta do que o -0,23% de junho; e apesar da provável aceleração no quarto trimestre – a inflação de 2017 tende a ficar ao redor dos 3,0%, bem abaixo da meta, que é de 4,5%. Reforça essa tendência o rápido, e também persistente, declínio da inflação no segmento dos serviços.

Uma das consequências práticas dessa inflação persistentemente mais baixa do que a de alguns anos é a de que os juros básicos (Selic), hoje nos 9,25% ao ano, devem continuar deslizando, no momento à proporção de 1,0 ponto porcentual por vez. Fica cada vez mais provável que termine o ano ao redor dos 7%. E esse tombo dos juros tem tudo para se transformar em novo fator de retomada da atividade econômica e do emprego.

Outra consequência prática é a queda do chamado fator de erosão da renda. Uma coisa é uma vida apertada com perda de valor do salário de 10% ao ano, como a que existia há um ano e meio e outra, bem diferente, é aquela que se dá com uma inflação de 3%. Quando os preços e a renda se tornam bem mais estáveis, como agora, a atividade econômica fica mais previsível. As vantagens dessa situação nova poderão ser mais bem avaliadas dentro de mais alguns meses.

CONFIRA:

 Aumenta o emprego formal
O Ministério do Trabalho informou nesta quarta-feira que, em julho, aumentaram em 35,9 mil as contratações formais (com carteira de trabalho assinada). É um resultado superior à mediana das expectativas manifestadas pelos analistas. O aumento das vagas aconteceu de maneira mais ou menos generalizada. Se esta ainda não é garantia firme de retomada do emprego é, pelo menos, bom indício disso, ainda que a ocupação esteja aumentando mais fortemente no segmento informal.

O que acontece com os europeus, que não toleram as hordas de refugiados? - CONTARDO CALLIGARIS

O que acontece com os europeus, que não toleram as hordas de refugiados? - CONTARDO CALLIGARIS

FOLHA DE SP - 10/08

Passei o mês de julho na Europa, visitando lugares do meu passado.

Cheguei no aeroporto de Veneza e de lá fui direto para Pádua. Fiquei no hotel Donatello, cujos quartos da frente têm uma vista impagável para a basílica de Santo Antônio.

Deixei o carro e fui caminhando pela via del Santo. Não passei de cem metros, e um homem de 50 anos me importunou (eu estava a fim de ficar na minha, só pensando): "Io sono di Aleppo" (eu sou de Aleppo), ele disse em italiano, numa entonação quase perfeita.

Antes que ele formulasse o previsível pedido de ajuda, passaram pela minha cabeça ideias e visões, que vou tentar enumerar, embora não sejam todas lisonjeiras para mim. Talvez o exercício me ajude a compreender o que acontece hoje com parentes, amigos e conhecidos europeus, que são generosos por princípio, mas não aguentam mais as "hordas" dos refugiados.

Conheço mal Aleppo, mas não esqueci o charme do hotel Baron, famoso por ser o lugar onde Agatha Christie escreveu "Crime no Expresso do Oriente". Para desmascarar um eventual impostor, disse que conhecia Aleppo e comecei a descrever a esquina da Baron com a Zaki al-Arsuzi, como era 50 anos atrás.

O sujeito ou era um impostor mesmo e fugiu ou então era um aleppino que me achou bizarro demais para continuar a conversa.

Antes que meus bons sentimentos tomassem conta de mim, tive tempo para pensar: se for um aleppino, por que esse cara presume que a gente lhe deva assistência e ajuda?

Lembrei-me de conversas com meus sobrinhos milaneses: o desastre da Síria, por exemplo, será que é consequência hodierna da colonização? Então os problemas da Itália do Norte são consequência da ocupação austríaca? Ou da espanhola, que foi antes?

De qualquer forma, por que ele foi embora de Aleppo? É um refugiado econômico ou político? Ou seja, está tentando se dar bem ou lutou contra o desastre de seu país? E subentende-se que o refugiado econômico seria um aproveitador sem moral e sem caráter.

Engraçado, pensei mais tarde, nas grandes migrações do fim do século 19 e começo do 20, os italianos, alemães, escandinavos, irlandeses etc. que emigravam para os EUA, o Canadá ou a Austrália eram imigrantes econômicos, que iam "fazer América". Ninguém queria barrar os "imigrantes econômicos"; ao contrário: ao enriquecerem-se a si mesmos, eles enriqueceriam ao país que os acolhia.

A distinção entre econômicos e políticos parece também supor que os imigrantes econômicos não tenham nenhuma simpatia cultural pelo país ocidental que os acolhe e só estejam atrás de uma vida mais confortável. Ouvido em Turim: "Eles não querem renunciar à cultura deles, só querem uma grana".

A distância cultural é um preconceito dos europeus? Ou é um preconceito dos imigrantes, que desprezariam a cultura à qual pedem assistência?

Nas praças de Bassano, Milão, Turim e Munique, em italiano e em alemão, fui interpelado por refugiados que, para introduzir seu pedido, me chamaram quase sempre de "irmão" ou de "chefe".

"Irmão", aprendido, imagino, nas igrejas que assistem refugiados, me irritava pela chantagem: você acredita em fraternidade, e não vai me ajudar? "Chefe" me irritava porque supunha que eu seria seduzido por eles reconhecerem minha "superioridade" hierárquica.

Participei de intermináveis conversas com conhecidos incomodados pelo valor dos subsídios alocados aos refugiados (junto com celular para chamadas internacionais, comida etc).

Mas, para mim, se não para todos, a dificuldade maior talvez seja a aparição (nova na Europa) de um exército de pedintes e a consequente impossibilidade de ser deixado em paz.

Feliz de estar sozinho, sentei num restaurante de via Lagrange, em Turim. O terceiro refugiado do dia se aproximou, e eu antecipei a sua fala de um jeito que me envergonha um pouco: "Per favore, non mi rompere", por favor, não me encha É impossível dizer qual será o destino e o efeito desse cansaço.

Neste mês, Matteo Renzi, o antigo primeiro-ministro italiano, escreveu que temos, sim, o dever moral de ajudar os refugiados, mas na casa deles.

Nota. Vários leitores estranharam uma frase quase final da coluna da semana passada: "Numa cultura e numa época tão oposta ao prazer quanto a nossa". Como assim? Não somos monstros de hedonismo, todos em busca de prazeres imediatos?

Faz tempo que penso e constato o contrário. Uma coluna do ano passado: folha.com/no1813289.