domingo, 16 de novembro de 2014

Tem remédio?, Alias

Um dos aspectos mais chocantes das notícias recentes sobre estupros em festas da Medicina da USP é que elas não são inéditas. Com dolorosa regularidade, os jornais têm trazido relatos semelhantes de atos de crueldade absoluta perpetrados em condições que variam apenas em seus detalhes. Mas a rotinização da violência não é tudo. A condição de seus autores - jovens inteligentes e preparados o suficiente para conquistar uma vaga em alguns dos cursos mais concorridos do País - escancara a inépcia das explicações simplistas que estabelecem uma relação direta entre miséria e violência. Os autores de tais crimes não são miseráveis, não são ignorantes, não são loucos. De fato, as tentativas de explicação de seus atos reforçam a noção de que eles não sejam substancialmente diferentes da maioria dos jovens. Seus atos tendem a ser explicados como um lapso momentâneo, efeito da bebida, da droga ou da pressão do grupo, um passo em falso que não revela quem de fato são. Excetuado o episódio trágico e isolado do crime, sustenta-se, eles são aquilo que muitos chamariam de “rapazes absolutamente normais”, cujas ações ocorreram em uma dinâmica de festa que “é rotina para gente dessa idade”. 
É perturbador considerar que possa existir verdade em tais explicações, que elas possam ser mais que disparates produzidos por aqueles que buscam atenuar a própria responsabilidade. Pois, se elas fizerem algum sentido, isto é, se em linhas gerais for possível dizer que tais jovens se ajustam às normas de comportamento social rotineiramente praticadas entre nós, o problema se expandirá para além dos limites dos episódios de violência em questão para vir parar em nossa porta. E isso tornará inevitável perguntar: o que os casos de estupro na USP dizem sobre nossa sociedade?
A prática abjeta do estupro é de uma violência tão extrema que a capacidade de perpetrá-la só se torna possível após um gradual processo de apagamento da capacidade de perceber o outro e, de modo muito particular, a mulher, como um igual. Ela habitualmente se constrói a partir de um crescendo de desrespeito que avança insidiosamente, partindo dos comentários supostamente elogiosos que saúdam o corpo feminino como mercadoria a ser consumida, passando pela violência verbal, pela intimidação e desqualificação das mulheres que não acham graça nesse jogo até chegar finalmente à violência física contra esse “objeto” que se obstina em resistir ao desejo de quem quer controlá-lo. 
Esse terrível processo de embrutecimento individual, entretanto, não se constrói a partir de elementos externos ou alheios a nossa cultura. E o tipo de transgressão que ele gera diz, como toda transgressão, não apenas sobre os agentes, mas também sobre a sociedade em que vivem. Essa transgressão se alimenta, distorcendo e hiperdimensionando, de traços que compõem nossas trocas diárias. Entre eles, destaca-se a extensão da lógica de mercado a todas as dimensões da vida, como apontou o filósofo Karl Polanyi em A Grande Transformação. Sua consequência é uma série de cisões que facilitam a comercialização dos elementos assim individualizados e uma redução da responsabilidade relativa de cada um: a compra da mão de obra eventual e avulsa do “prestador de serviço” substitui o emprego permanente, desvinculando ainda mais as noções de trabalhador e de trabalho, atenuando a responsabilidades dos atores nessa troca; a terceirização separa os grandes grupos da responsabilidade direta pelos bens e serviços que oferecem; a prioridade dos lucros de curto prazo cinde os interesses e compartimentaliza a responsabilidade de investidores, empresários, etc. 
Esse processo de fragmentação e fragilização de responsabilidades afeta também nossa relação com a sexualidade. A comoditização do corpo (não apenas) da mulher, por exemplo, em programas e produtos dirigidos ao público jovem já se estabeleceu com tal grau de naturalidade que eventuais críticas que a apontem como potencialmente empobrecedora de nossa capacidade de realização são automaticamente taxadas de retrógradas ou obscurantistas, numa censura que deplora igualmente a religião tradicional e o feminismo pós-moderno. Das propagandas de cerveja às candidatas a musas da torcida competindo de biquíni pela aprovação dos torcedores, dos programas de humor à multiplicação dos sites pornográficos, tudo é apresentado como brincadeira ou entretenimento sem consequências que é preciso entender como tal. Essas práticas são apontadas como um sinal inquestionavelmente positivo de avanço civilizatório, como índice de superação de antigos preconceitos. É possível que haja mesmo avanço aqui, mas é possível também que essa não seja toda a historia. 
Talvez não seja supérfluo perguntar se tais práticas em relação ao corpo, aparentemente positivas ou anódinas, não trazem em si também um quantum de violência simbólica e de objetivação que, ligando lógica de mercado, individualismo absoluto (o único sentido das ações e dos outros é o sentido que têm para mim) e a instrumentalização de tudo (do meio ambiente ao corpo), dialoga de algum modo com as ações que tão enfaticamente se repudia no campo do discurso. Talvez seja necessário, fugindo às simplificações gêmeas de concentrar toda a culpa nas idiossincrasias de indivíduos isolados e de atribuí-las genericamente “aos (eternos) descalabros da sociedade que está aí”, admitir como hipótese que podemos estar produzindo um macrodiscurso social em que esse tipo específico de violência se torne repetitivo. Os suicídios recentes de duas adolescentes que não suportaram a divulgação de imagens de sua intimidade na internet associados aos estupros na USP reforçam a ideia de que haja algo de problemático aqui, de que precisamos rediscutir urgentemente a forma como significamos socialmente o sexo e sua articulação com o tipo de realização humana e de dinâmica social que desejamos perseguir.
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José Garcez Ghirardi é advogado e professor da FGV Direito SP

Legado ambivalente, Aliás


LILIA MORITZ SCHWARCZ - O ESTADO DE S. PAULO
15 Novembro 2014 | 16h 00

Fim da monarquia trouxe a urbanização, mas também repressão e falcatruas políticas

GUILHERME GAENSLY
Novos atores. A Hospedaria dos Imigrantes em São Paulo, em imagem de 1898
Enquanto a cidade dormia o Largo do Paço foi teatro de cena triste (...) Às três horas da madrugada o carro parou e o Sr. D. Pedro apeou-se para pisar pela última vez a terra pátria
No dia 15 de novembro de 1889, no calor da hora, Raul Pompeia publicou o trecho acima. Melancólico, o escritor que havia encabeçado duras críticas ao imperador, agora entrava no coro dos que denunciavam o que ficou conhecido como “o golpe da República”. A sensação era dúbia e combinava esperança com um sentimento difuso de culpa e receio.
O fato é que, enquanto o imperador partia para o exílio, no Brasil alteravam-se nomes e símbolos. O Largo do Paço passou a se chamar 15 de novembro; a Estrada de Ferro Pedro II, Central do Brasil; o Colégio Pedro II, Colégio Nacional, e assim por diante. Os motivos impressos no papel-moeda também foram alterados: sai D. Pedro II e a monarquia, entra a imagem da República dos Estados Unidos do Brasil. 
Uma nova lista de festas nacionais substituiu antigas datas: vieram o 13 de maio, “a fraternidade dos brasileiros”; o 15 de Novembro, a República; o 21 de abril, “os precursores”. Nesse último caso, ressuscitava-se a figura de Tiradentes, líder da Conjuração Mineira de 1789, agora transformado em republicano. Porém, como se desconheciam retratos do herói, ele foi associado de forma crescente à figura de Cristo: olhar cândido, vestes brancas, crucifixo ao peito, cabelo soltos batendo nos ombros. Suprimiram-se ainda os títulos de nobreza, conservando-se, no entanto, os nomes. José Maria da Silva Paranhos, o Barão de Rio Branco, herdara o título do pai. Já em tempos de República, abandonou o termo de nobiliarquia, mas incorporou o Rio Branco ao sobrenome e ao registro civil.
Mas mudanças existiam e vinham para ficar. A partir da Constituição de 1891 a Igreja estava separada do Estado. Introduziu-se o registro civil de nascimentos, casamentos e mortes e se estabeleceu o regime federativo que deu às províncias (então transformadas em Estados) mais autonomia e controle fiscal. 
No entanto, como história não é conta de somar, certos elementos herdados da monarquia persistiam. Um deles era o perfil oligárquico da nação: novas leis eleitorais reduziram o número de eleitores e elegíveis. Em 1910, numa população de 22 milhões apenas 627 mil tinham direito a voto. No novo regime, o Exército teria papel fundamental, mas não vida fácil. A República, que começava violenta, não impediu a eclosão de movimentos dentro das casernas. No governo civil, sofisticou-se um procedimento interno conhecido como “política dos governadores”. Tal engenharia política incluía a aliança do “café com leite” - que fazia oscilar um presidente paulista e outro mineiro - e a montagem de um processo eleitoral fraudulento, de cabresto, para sustentar tal arquitetura. 
É também nesse contexto que toma forma o modelo da “república dos coronéis”. Contando com uma estrutura político-partidária frágil e instituições ainda pouco consolidadas, a saída foi recorrer ao mandonismo local: estrutura oligárquica baseada em poderes personalizados e nucleados nos latifúndios. Essas práticas de favoritismo, construídas no interior de relações de parentesco, minaram o estatuto da lei e da esfera pública. Visto sob esse ângulo, e como diziam os jornais, o País parecia uma grande fazenda. Mas uma fazenda com muita agitação e heterogeneidade. 
Até os anos 1930, europeus, africanos e asiáticos entraram no País, introduzindo e misturando práticas de moradia e alimentação, tradições religiosas, costumes sanitários e formas de sociabilidade. Também o crescimento impressionante das cidades deu feição urbana ao Brasil. De um lado, edifícios elegantes, ruas calçadas. De outro, a expulsão das populações pobres demolia casas e disseminava cortiços: “caixotins humanos”, na definição de Lima Barreto.
O resultado foi uma profunda incompreensão que gerou mais revoltas. Em 1904, eclode no Rio de Janeiro rebelião popular contra medidas para erradicar a febre amarela. Em novembro de 1910, o baixo escalão da Marinha se levanta. Para conter a marujada, formada por negros e mestiços, a ordem era mantida na base da aplicação de castigos físicos. A Revolta da Chibata reagia a tratamentos que vinham do tempo da escravidão. A partir dos anos 1910 ainda outro setor urbano se agitaria: operários do novo parque industrial. A classe operária virava protagonista. Em 1900 havia cerca de 80 mil operários; em 1930, 275 mil. Em distintas regiões do País estouram movimentos sociais que combinavam a questão agrária com traços fortemente religiosos, como Contestado, Juazeiro e Canudos - resultado do processo de modernização e desatenção diante desse contingente populacional.
Como se vê, a República, que nasceu encabulada em 15 de novembro de 1889, deixou um legado ambivalente. De um lado, ela lembra, até os dias de hoje, o momento do boom da urbanização, da industrialização e da entrada de imigrantes. De outro, ficou na memória como um período de repressão, de falcatruas políticas, da aplicação de medidas racistas e da expulsão da pobreza. 
Um título incômodo se colou ao período: “República Velha”. Entretanto, se os primeiros anos da República foram mesmo violentos, também permitiram a abertura de um processo sem volta. É nesse contexto que se desenham os primeiros passos na constituição de uma sociedade cidadã e participativa. Talvez por isso o nome tenha emplacado só a posteriori. Foram os governantes e intelectuais da Era Vargas que chamaram seu próprio momento de “Estado Novo”. Em movimento contínuo, jogaram para o período anterior a pecha de ultrapassado, velho. Disse o crítico Roberto Schwarz que no Brasil tudo parece “recomeçar do zero”, e por aqui o nacional se constrói por subtração. 
15 de Novembro de 1889 acabou por vingar no imaginário nacional. Talvez por isso é melhor insistir no epíteto de Primeira República. Primeira, pois teve a coragem dos inícios e porque ensejou múltiplas formas de sonhar e exercitar a cidadania.
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Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do Departamento de Antropologia da USP e autora, entre outros, de As Barbas do Imperador (Companhia das Letras)

República como déficit


RENATO JANINE RIBEIRO - O ESTADO DE S. PAULO
15 Novembro 2014 | 16h 00

Falta-nos apreço pela ‘coisa pública’, pelo bem comum. Mas não é só o combate à corrupção que vai nos fortalecer. É a radicalização da democracia pelo processo de inclusão

SERGIO CASTRO/ESTADÃO
Lava Jato. Desta vez, a Justiça também mandou prender presidentes de empreiteiras
Até o fim da ditadura militar, a história digamos oficial se esmerava numa autocongratulação do Brasil. A Independência e a Proclamação da República eram algumas das datas marcantes. Tanto que, um dia em 1972, o ditador Médici convocou uma cadeia de televisão para uma declaração importante - e muitos esperaram, ansiosamente, que fosse uma anistia ou o fim de pelo menos parte das sanções odiosas que o governo impunha à sociedade. Não. A solenidade era para informar que Portugal aceitara dar ao Brasil o corpo de Dom Pedro I, até então sepultado no Porto. 
Datas, solenidades, desfiles, são vazios se não tiverem um conteúdo forte a preenche-los. 
Um pouco depois, quando fui bolsista na França, lembro de ter contado a um amigo estrangeiro como era a ditadura no Brasil. Ele, candidamente, me perguntou: “Mas seu País é uma república?”. Eu me escandalizei, “claro que sim!”, e só depois percebi que república não é só uma palavra, é um conjunto de significados. De fato, há vários anos que opero uma distinção entre democracia e república, que aqui resumo. 
República é uma expressão romana (res publica, coisa pública) que designa a finalidade, o propósito de uma organização política. Seu cerne não é como o poder é atribuído no Estado, mas sim para o que ele - ele Estado, ele poder - existe. Já democracia é uma palavra grega que se traduz como “poder do povo” e se refere, sim, ao modo como o poder é atribuído. Só pode ser pelo voto de todos, o que implica que haja sempre uma maioria de pobres. Daí que toda democracia tenha um forte componente social. Não existe, ao contrário do que quis Hannah Arendt, política democrática sem o fator social. Toda democracia conhece a forte demanda dos pobres, da multidão, por uma distribuição melhor da riqueza. Por isso, democracia é mais radical, ou de esquerda, que república. Essa última pode até ser aristocrática. Na verdade, em linhas gerais, a república se aproxima do que chamamos Estado de Direito, enquanto a democracia exige hoje o Estado Democrático de Direito.
São dois conceitos diferentes, mas indispensáveis para o que chamo a boa política de nosso tempo. Ela exige a separação do público e do privado. Por isso, seu inimigo não é a monarquia (uma forma de atribuição do poder, apenas), mas a corrupção e seu sobrinho latino-americano, o patrimonialismo. O governante republicano deve ser austero, honesto, incorruptível. A república também exige a valorização da dimensão pública, e por isso mesmo não cabe numa privatização generalizada, thatcheriana, do âmbito político. 
A democracia atual é fecunda. Ela se expande o tempo todo. Constantemente a ONU gera declarações de novos direitos. Aos direitos humanos habituais se somaram outros, específicos para um gênero (mulheres), faixas etárias (jovens e idosos), condições de vida (habitação, saúde) - e isso continua. Em nosso tempo, pela primeira vez na História, a miséria se tornou algo a abolir, e a pobreza também, ainda que numa etapa posterior. Raros são os que defendem, de público, que existam pobres. Mesmo quem aceita a desigualdade social quer que a base da pirâmide tenha um nível de vida acima da pobreza.
Fiquemos na República, que ora se comemora. O regime introduzido em 1889 pode ser chamado de republicano? Representou ele um avanço sobre o Segundo Reinado? No Império, na verdade com Pedro II, tivemos um regime parlamentarista, com partidos nacionais e uma certa liberdade de imprensa. Já a Primeira República, entre 1891 e 1930, foi o reinado incontido das oligarquias estaduais. Provavelmente nunca tivemos regime mais podre no Brasil, tanto pela corrupção dos dinheiros públicos quanto, sobretudo, a corrupção dos costumes. Não havia limites aos desmandos dos oligarcas, federais, estaduais, locais. Talvez esse fato tenha desmoralizado por muito tempo a ideia de república em nosso país. Busca do bem público? Moralidade dos governantes? Um espaço comum acima dos partidos? Não. 
Na comparação com o Segundo Reinado, a Primeira República parece até pior. E olhem que as eleições parlamentares do Império eram fraudadas. A monarquia conviveu com a escravatura e acabou junto com ela. Então, quando começa o espirito republicano no Brasil? Terá sido com as conspirações da década de 1920, culminando na Revolução de 1930? Mas os “tenentes” da época, se defendiam a honestidade e, além disso, o voto secreto, eram autoritários. E o governo instituído em 1930 foi ditatorial.
Para resumir, temos pouca experiência histórica tanto de república (a busca do bem comum) quanto de democracia (o povo, os pobres, tomando a palavra). Nossa sociedade não tem tanto respeito pelo direito (o mundo da república) ou pelos direitos sociais (o mundo da democracia). Não é fortuito que, das três grandes profissões tradicionais - advocacia, medicina e engenharia - estejamos vivendo, nestes anos, uma grande decepção com as duas primeiras. Um dia um juiz consegue condenar uma agente de trânsito porque ela lhe disse “o senhor não é Deus”, outro dia um médico, por sinal crítico acerbo do programa Mais Médicos, só assina o ponto na repartição e vai embora em seguida. A grande maioria dessas profissões é honesta, mas qual é a crítica exata a esses profissionais? Qual crítica está sempre presente na indignação com juízes e médicos? É que não visam à coisa pública. É que se apropriam do bem público para uso privado - a carteirada num caso, o dinheiro sem trabalho no outro. 
Vamos aqui discutir o que nos falta de república, em seu sentido preciso, o de um Estado que tenha por fim a coisa pública, o bem comum. Seu maior inimigo é a corrupção, mas essa palavra perdeu alcance desde os romanos. Para eles, a corrupção era a dos costumes, em especial, a autocomplacência, a busca dos prazeres, a preferência dada a interesses ou desejos privados. Mulheres, seres dos sentimentos, não seriam capazes de autocontenção, portanto seus gostos - por exemplo, pelo luxo - eram incompatíveis com a austeridade republicana. Isso mudou. O que eles chamavam de corrupção dos costumes, coisa péssima, para nós é liberdade individual (próxima à “liberdade dos modernos”, de que fala Benjamin Constant), coisa ótima. Descartar as mulheres virou preconceito ridículo. Uma peça publicitária, anos atrás, tratou disso com humor: víamos uma mulher enfrentando as dores do parto enquanto uma voz masculina dizia que elas são fracas, não suportam dor, outras bobagens. A república deixou de ser viril. E com isso mudou a coisa pública: não é mais algo transcendente, uma pátria acima de seus componentes, à qual eles se sacrificam, mas o tesouro público, o dinheiro do Estado. Vemos hoje o Estado não como um valor, um ideal, mas só como a caixa do condomínio. Por isso fica difícil, desde meados do século 20, o ideal de morrer pela pátria. Praticamente não faz mais sentido, tanto que os exércitos dos países ricos, os que realmente entram em guerra, são compostos em boa parte de soldados pagos, mercenários. Também por isso, para nós corrupção é só furto. O corrupto é um ladrão. Insisto há anos, com vários outros, que o furto do dinheiro público é mais do que o furto do dinheiro privado, porque mata gente por falta de hospitais, escolas e tudo o mais. Mas essa tese persuade poucos. Talvez por isso a corrupção acabe sendo impossível de extirpar. Existe aqui, mas também nos Estados Unidos, França, Reino Unido, as três pátrias da democracia moderna. 
Mas pode ser que o conceito de coisa pública esteja se ampliando numa nova direção - que seria a república se democratizar. Estão se introduzindo na coisa pública, ao longo dos últimos séculos, valores como liberdade, igualdade, fraternidade. Muitos dos que estudaram a República Romana pensam que ela desabou porque não conseguiu resolver a questão social, isto é, a exclusão dos pobres. Quando os senadores assassinaram os irmãos Graco, defensores da reforma agrária, prepararam o caminho para décadas de guerra civil, finalmente levando ao advento do império populista, com Júlio César e Otávio Augusto. As repúblicas modernas passaram ou passam por esse desafio. Estados Unidos e França talvez tenham sofrido mais dores no processo de inclusão social dos deserdados do que no advento de uma república inicialmente patrícia. É a inclusão social que dá sustentabilidade à república. Sem isso, ela pertence só a uma pequena minoria. O Brasil passa hoje por essa crise. Há quem queira manter a república em mãos de poucos, e há os que a querem ampliar. Se a inclusão prosperar, teremos um país desenvolvido, sem miseráveis e mesmo pobres; se não, nada disso. 
Há uma série de demandas inicialmente democráticas, como saúde, educação, transporte e segurança, mal atendidas pelo setor público. Quem tem dinheiro paga esses serviços no mercado privado. Quem não tem depende de um Estado que não os fornece em qualidade suficiente. A exigência de qualidade é popular. Nós da classe média e os mais ricos não precisamos do Estado para tanto, mesmo que reclamemos de pagar impostos e ter pouco em troca. Mas essa demanda do povo, dos pobres, do demos grego, se torna condição para a república não morrer. Deixa de ser uma exigência só democrática para se tornar necessidade republicana. É nesse sentido que a corrupção deixa de ser mero furto para se tornar assassinato, à medida que faltam escolas, hospitais, etc. A república falha em sua meta, a coisa pública, porque essa não é apenas o erário, é aquilo para que serve o erário. 
A ampliação da coisa pública vem com um fato pouco notado. Até alguns anos atrás, a assistência aos mais pobres era caridade, palavra essa que perdeu valor, ficando associada a uma condescendência de cima para baixo, a algo não sustentável. Os programas de inclusão social iniciados com Itamar Franco, desenvolvidos por FHC e fortemente incrementados nas gestões petistas acabaram com a cesta básica, dada aos mais pobres como uma esmola, que servia aos caciques políticos, sendo substituídos por informação trabalhada em redes. O Bolsa Família é atribuído pelo cruzamento de várias informações, de modo a ser mais justo e, sobretudo, atender a todo o público visado. Narro uma história. Na República Velha, Humberto de Campos, senador e escritor, se impressiona com um leprosário no Maranhão e procura o presidente para pedir-lhe cem contos. Washington Luiz nega: “Nem cinco! Se der para um, todos os Estados hão de querer igual”. Pano rápido. Nas décadas seguintes os governos porão, sim, dinheiro em hospitais e todo o resto, mas muitas vezes a escolha é de sofia: financia-se um ou outro, até por pressões políticas, mas o cobertor não dá para todos. Ora, desde que temos um sistema fortemente informatizado, a meta passa a ser a de atender a todos. Por um lado, há uma focalização da ajuda nos mais necessitados, mas, por outro, nenhum desses deve ficar fora. Essa é a novidade. É o fator técnico que permite que atender a necessidades dos mais carentes, tema tipicamente democrático, se torne um tema republicano. Uma sociedade sem pobres se torna um novo e decisivo conteúdo da res publica. 
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Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política da USP, é autor de A Sociedade Contra o Social: o Alto Custo da Vida Pública no Brasil (Companhia das Letras)