RENATO JANINE RIBEIRO - O ESTADO DE S. PAULO
15 Novembro 2014 | 16h 00
Falta-nos apreço pela ‘coisa pública’, pelo bem comum. Mas não é só o combate à corrupção que vai nos fortalecer. É a radicalização da democracia pelo processo de inclusão
Até o fim da ditadura militar, a história digamos oficial se esmerava numa autocongratulação do Brasil. A Independência e a Proclamação da República eram algumas das datas marcantes. Tanto que, um dia em 1972, o ditador Médici convocou uma cadeia de televisão para uma declaração importante - e muitos esperaram, ansiosamente, que fosse uma anistia ou o fim de pelo menos parte das sanções odiosas que o governo impunha à sociedade. Não. A solenidade era para informar que Portugal aceitara dar ao Brasil o corpo de Dom Pedro I, até então sepultado no Porto.
Datas, solenidades, desfiles, são vazios se não tiverem um conteúdo forte a preenche-los.
Um pouco depois, quando fui bolsista na França, lembro de ter contado a um amigo estrangeiro como era a ditadura no Brasil. Ele, candidamente, me perguntou: “Mas seu País é uma república?”. Eu me escandalizei, “claro que sim!”, e só depois percebi que república não é só uma palavra, é um conjunto de significados. De fato, há vários anos que opero uma distinção entre democracia e república, que aqui resumo.
República é uma expressão romana (res publica, coisa pública) que designa a finalidade, o propósito de uma organização política. Seu cerne não é como o poder é atribuído no Estado, mas sim para o que ele - ele Estado, ele poder - existe. Já democracia é uma palavra grega que se traduz como “poder do povo” e se refere, sim, ao modo como o poder é atribuído. Só pode ser pelo voto de todos, o que implica que haja sempre uma maioria de pobres. Daí que toda democracia tenha um forte componente social. Não existe, ao contrário do que quis Hannah Arendt, política democrática sem o fator social. Toda democracia conhece a forte demanda dos pobres, da multidão, por uma distribuição melhor da riqueza. Por isso, democracia é mais radical, ou de esquerda, que república. Essa última pode até ser aristocrática. Na verdade, em linhas gerais, a república se aproxima do que chamamos Estado de Direito, enquanto a democracia exige hoje o Estado Democrático de Direito.
São dois conceitos diferentes, mas indispensáveis para o que chamo a boa política de nosso tempo. Ela exige a separação do público e do privado. Por isso, seu inimigo não é a monarquia (uma forma de atribuição do poder, apenas), mas a corrupção e seu sobrinho latino-americano, o patrimonialismo. O governante republicano deve ser austero, honesto, incorruptível. A república também exige a valorização da dimensão pública, e por isso mesmo não cabe numa privatização generalizada, thatcheriana, do âmbito político.
A democracia atual é fecunda. Ela se expande o tempo todo. Constantemente a ONU gera declarações de novos direitos. Aos direitos humanos habituais se somaram outros, específicos para um gênero (mulheres), faixas etárias (jovens e idosos), condições de vida (habitação, saúde) - e isso continua. Em nosso tempo, pela primeira vez na História, a miséria se tornou algo a abolir, e a pobreza também, ainda que numa etapa posterior. Raros são os que defendem, de público, que existam pobres. Mesmo quem aceita a desigualdade social quer que a base da pirâmide tenha um nível de vida acima da pobreza.
Fiquemos na República, que ora se comemora. O regime introduzido em 1889 pode ser chamado de republicano? Representou ele um avanço sobre o Segundo Reinado? No Império, na verdade com Pedro II, tivemos um regime parlamentarista, com partidos nacionais e uma certa liberdade de imprensa. Já a Primeira República, entre 1891 e 1930, foi o reinado incontido das oligarquias estaduais. Provavelmente nunca tivemos regime mais podre no Brasil, tanto pela corrupção dos dinheiros públicos quanto, sobretudo, a corrupção dos costumes. Não havia limites aos desmandos dos oligarcas, federais, estaduais, locais. Talvez esse fato tenha desmoralizado por muito tempo a ideia de república em nosso país. Busca do bem público? Moralidade dos governantes? Um espaço comum acima dos partidos? Não.
Na comparação com o Segundo Reinado, a Primeira República parece até pior. E olhem que as eleições parlamentares do Império eram fraudadas. A monarquia conviveu com a escravatura e acabou junto com ela. Então, quando começa o espirito republicano no Brasil? Terá sido com as conspirações da década de 1920, culminando na Revolução de 1930? Mas os “tenentes” da época, se defendiam a honestidade e, além disso, o voto secreto, eram autoritários. E o governo instituído em 1930 foi ditatorial.
Para resumir, temos pouca experiência histórica tanto de república (a busca do bem comum) quanto de democracia (o povo, os pobres, tomando a palavra). Nossa sociedade não tem tanto respeito pelo direito (o mundo da república) ou pelos direitos sociais (o mundo da democracia). Não é fortuito que, das três grandes profissões tradicionais - advocacia, medicina e engenharia - estejamos vivendo, nestes anos, uma grande decepção com as duas primeiras. Um dia um juiz consegue condenar uma agente de trânsito porque ela lhe disse “o senhor não é Deus”, outro dia um médico, por sinal crítico acerbo do programa Mais Médicos, só assina o ponto na repartição e vai embora em seguida. A grande maioria dessas profissões é honesta, mas qual é a crítica exata a esses profissionais? Qual crítica está sempre presente na indignação com juízes e médicos? É que não visam à coisa pública. É que se apropriam do bem público para uso privado - a carteirada num caso, o dinheiro sem trabalho no outro.
Vamos aqui discutir o que nos falta de república, em seu sentido preciso, o de um Estado que tenha por fim a coisa pública, o bem comum. Seu maior inimigo é a corrupção, mas essa palavra perdeu alcance desde os romanos. Para eles, a corrupção era a dos costumes, em especial, a autocomplacência, a busca dos prazeres, a preferência dada a interesses ou desejos privados. Mulheres, seres dos sentimentos, não seriam capazes de autocontenção, portanto seus gostos - por exemplo, pelo luxo - eram incompatíveis com a austeridade republicana. Isso mudou. O que eles chamavam de corrupção dos costumes, coisa péssima, para nós é liberdade individual (próxima à “liberdade dos modernos”, de que fala Benjamin Constant), coisa ótima. Descartar as mulheres virou preconceito ridículo. Uma peça publicitária, anos atrás, tratou disso com humor: víamos uma mulher enfrentando as dores do parto enquanto uma voz masculina dizia que elas são fracas, não suportam dor, outras bobagens. A república deixou de ser viril. E com isso mudou a coisa pública: não é mais algo transcendente, uma pátria acima de seus componentes, à qual eles se sacrificam, mas o tesouro público, o dinheiro do Estado. Vemos hoje o Estado não como um valor, um ideal, mas só como a caixa do condomínio. Por isso fica difícil, desde meados do século 20, o ideal de morrer pela pátria. Praticamente não faz mais sentido, tanto que os exércitos dos países ricos, os que realmente entram em guerra, são compostos em boa parte de soldados pagos, mercenários. Também por isso, para nós corrupção é só furto. O corrupto é um ladrão. Insisto há anos, com vários outros, que o furto do dinheiro público é mais do que o furto do dinheiro privado, porque mata gente por falta de hospitais, escolas e tudo o mais. Mas essa tese persuade poucos. Talvez por isso a corrupção acabe sendo impossível de extirpar. Existe aqui, mas também nos Estados Unidos, França, Reino Unido, as três pátrias da democracia moderna.
Mas pode ser que o conceito de coisa pública esteja se ampliando numa nova direção - que seria a república se democratizar. Estão se introduzindo na coisa pública, ao longo dos últimos séculos, valores como liberdade, igualdade, fraternidade. Muitos dos que estudaram a República Romana pensam que ela desabou porque não conseguiu resolver a questão social, isto é, a exclusão dos pobres. Quando os senadores assassinaram os irmãos Graco, defensores da reforma agrária, prepararam o caminho para décadas de guerra civil, finalmente levando ao advento do império populista, com Júlio César e Otávio Augusto. As repúblicas modernas passaram ou passam por esse desafio. Estados Unidos e França talvez tenham sofrido mais dores no processo de inclusão social dos deserdados do que no advento de uma república inicialmente patrícia. É a inclusão social que dá sustentabilidade à república. Sem isso, ela pertence só a uma pequena minoria. O Brasil passa hoje por essa crise. Há quem queira manter a república em mãos de poucos, e há os que a querem ampliar. Se a inclusão prosperar, teremos um país desenvolvido, sem miseráveis e mesmo pobres; se não, nada disso.
Há uma série de demandas inicialmente democráticas, como saúde, educação, transporte e segurança, mal atendidas pelo setor público. Quem tem dinheiro paga esses serviços no mercado privado. Quem não tem depende de um Estado que não os fornece em qualidade suficiente. A exigência de qualidade é popular. Nós da classe média e os mais ricos não precisamos do Estado para tanto, mesmo que reclamemos de pagar impostos e ter pouco em troca. Mas essa demanda do povo, dos pobres, do demos grego, se torna condição para a república não morrer. Deixa de ser uma exigência só democrática para se tornar necessidade republicana. É nesse sentido que a corrupção deixa de ser mero furto para se tornar assassinato, à medida que faltam escolas, hospitais, etc. A república falha em sua meta, a coisa pública, porque essa não é apenas o erário, é aquilo para que serve o erário.
A ampliação da coisa pública vem com um fato pouco notado. Até alguns anos atrás, a assistência aos mais pobres era caridade, palavra essa que perdeu valor, ficando associada a uma condescendência de cima para baixo, a algo não sustentável. Os programas de inclusão social iniciados com Itamar Franco, desenvolvidos por FHC e fortemente incrementados nas gestões petistas acabaram com a cesta básica, dada aos mais pobres como uma esmola, que servia aos caciques políticos, sendo substituídos por informação trabalhada em redes. O Bolsa Família é atribuído pelo cruzamento de várias informações, de modo a ser mais justo e, sobretudo, atender a todo o público visado. Narro uma história. Na República Velha, Humberto de Campos, senador e escritor, se impressiona com um leprosário no Maranhão e procura o presidente para pedir-lhe cem contos. Washington Luiz nega: “Nem cinco! Se der para um, todos os Estados hão de querer igual”. Pano rápido. Nas décadas seguintes os governos porão, sim, dinheiro em hospitais e todo o resto, mas muitas vezes a escolha é de sofia: financia-se um ou outro, até por pressões políticas, mas o cobertor não dá para todos. Ora, desde que temos um sistema fortemente informatizado, a meta passa a ser a de atender a todos. Por um lado, há uma focalização da ajuda nos mais necessitados, mas, por outro, nenhum desses deve ficar fora. Essa é a novidade. É o fator técnico que permite que atender a necessidades dos mais carentes, tema tipicamente democrático, se torne um tema republicano. Uma sociedade sem pobres se torna um novo e decisivo conteúdo da res publica.
*
Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política da USP, é autor de A Sociedade Contra o Social: o Alto Custo da Vida Pública no Brasil (Companhia das Letras)
Nenhum comentário:
Postar um comentário