segunda-feira, 21 de abril de 2014

Crimes de opinião - PAULO GUEDES


O GLOBO - 21/04
Se cultivasse um pomar, eu não seria repreendido. Mas, pelo pastoreio da alma, pelo cultivo da mente e do intelecto, sou devorado
A Páscoa celebra a ressurreição do Crucificado. O mestre da Boa Nova morreu como viveu e como ensinara. Sua prática foi o que ele deixou à humanidade. Sua conduta perante os acusadores, perante os juízes, perante os carrascos e perante toda espécie de calúnia e ultraje. Também seu comportamento na cruz. O reino de Deus não é algo que se espere; não tem um ontem nem um amanhã; não virá dentro de mil anos; é uma experiência do coração e está em toda parte , reconhece mesmo um autodeclarado anticristo.
Pois bem, o cristianismo foi muito além da moral de escravos, ressentidos e decadentes denunciada por Nietzsche. Transfigurou-se em manto sagrado, acolhendo um atávico e universal sentimento de solidariedade. Lançou também as sementes de um futuro de igualdade entre os homens. Fincou as raízes da civilização ocidental, frondosa árvore milenar que lança aos céus o humanismo e as ciências, a democracia e os direitos humanos, a liberdade religiosa e a educação laica, entre muitos outros galhos da modernidade.

Distância oceânica entre as lições de Cristo e a prática da Igreja. Às 5 horas e 30 minutos da manhã de sua execução, em 19 de fevereiro de 1600, Giordano Bruno foi levado acorrentado, vestindo uma túnica branca até o tornozelo. Dia de festa em Roma, o caminho apinhado de curiosos. Conforme avançava a procissão, Bruno reagia à multidão zombeteira com citações de seus livros e ditos dos antigos. Um longo espeto de metal foi então enfiado na bochecha esquerda, prendendo sua língua, saindo pela bochecha direita. Outro espeto foi enfiado verticalmente, furando seus lábios. Juntos, os espetos formavam uma cruz. Hereges eram queimados com madeira seca e pouca fumaça, para não sufocarem. As chamas queimando-os e cauterizando as feridas, até envolvê-los, causando a morte pelo choque. Na última tentativa de salvar sua alma, um padre inclinou-se sobre o fogo com um crucifixo, mas Bruno virou a cabeça , registra Michael White, em O papa e o herege (2002).

Por também imaginar outras possibilidades - um Brasil livre e republicano, como a América do Norte -, no dia 21 de abril de 1792 foi enforcado, decapitado e esquartejado Tiradentes. Se cultivasse um pomar, eu não seria repreendido. Mas, por cultivar a mente e o intelecto, sou devorado , reconhecia Bruno ante a Inquisição.

Telhados de vidro - LÚCIA GUIMARÃES


O Estado de S.Paulo - 21/04

NOVA YORK "Eu me contradigo? Pois muito bem, eu me contradigo. Sou amplo, contenho multidões." (Folhas de Relva, de Walt Whitman)

O vídeo granulado de uma câmera de segurança foi reprisado aqui uma semana inteira. Um homem alto apaga a luz de um escritório e, antes de sair, se atraca num beijo passional com uma mulher mais baixa e loura. O homem era o deputado calouro da Luisiana Vance McAllister, uma figura opaca e medíocre que se elegeu em novembro passado numa vaga plataforma de direita cristã e valores de família. A louraça, o leitor já adivinhou, não era a Mrs. McCallister, mãe dos cinco filhos do deputado. Escândalo. Inúmeros monólogos dos comediantes de fim de noite. A mulher, assessora do deputado, perdeu o emprego e o marido. Chegaram a pedir para McAllister renunciar. Ele regurgitou piedades e deve manter o cargo e o salário, ainda que politicamente castrado no futuro próximo.

Ah, a ridícula santimônia americana, dirão. Se fosse na França, não seria manchete. Sim, a sensação causada pela foto de François Hollande de moto indo passar a noite num apartamento com a atriz Julie Gayet não provocou o terremoto que teria sacudido Washington. Mas a cena inspirou outra acusação. Afinal, o contribuinte francês pagava para manter Valérie Trierweiller como primeira-dama no Eliseu e Hollande já tinha arrumado outra desde a época da eleição.

O deputado beijoqueiro e o presidente francês têm algo em comum. Ambos são acusados de hipocrisia. Quanto mais as figuras públicas empacotam suas palavras e seu comportamento no papel celofane do marketing, maiores as chances de se tornarem alvo da acusação. A era digital multiplicou as oportunidades de embaraço, na medida em que quase tudo o que se faz e se diz em público pode ser googlado para aferir a coerência.

Na conhecida passagem do Novo Testamento, Jesus salva uma mulher adúltera da morte por apedrejamento e acusa os fariseus de hipocrisia por não estarem livres de pecado: "Atirem a primeira pedra".

Um filósofo canadense tem argumentado que a hipocrisia não é exclusiva dos moralistas nem dos que têm poder para julgar ou decidir o destino dos outros. Somos todos hipócritas, diz o professor de filosofia e romancista Clancy Martin, sem a indignação que costuma acompanhar o adjetivo, que equivale a chamar alguém de fraudulento.

Uma das mais comuns reivindicações morais que fazemos para nós mesmos é a ideia de que o hipócrita é sempre o outro. "Nada necessita de mais reforma do que os hábitos dos outros", dizia Mark Twain, como lembrou Martin num ensaio recente. A hipocrisia causa mais furor quando descobrimos que fomos enganados com as armas do santarrão.

Quando Lula instrui Dilma a defender a Petrobrás contra uma inexistente conspiração privatista e sabemos que a companhia foi dilapidada para benefício privado por seus guardiões estatistas, o sangue ferve. A pilhagem da Petrobrás parece doer mais sob a piedade petista.

A hipocrisia é condenada desde a Antiguidade, mas, lembra Martin, que o mais celebrado texto literário sobre o tema é a peça Tartufo, ou o Impostor que Molière escreveu no século 17. O poder de Tartufo foi logo confirmado pela censura ao texto imposta por Luís XIV. Na peça, o personagem Cléante é o contraponto sincero ao impostor piedoso do título. Cléante diz que a verdadeira natureza da maioria dos homens nunca é exposta.

Parte integral da nossa admiração por figuras públicas é a convicção de que elas praticam o que pregam. Imagine, propõe Clancy Martin, se alguém um dia revelar que o pacifista Mahatma Gandhi saía à noite pelas ruas de Nova Délhi esbofeteando policiais britânicos.

O fato é que nosso cérebro é programado para o autoengano, o mecanismo analisado no belo livro homônimo de Eduardo Giannetti da Fonseca, em 1997. A hipocrisia é um fenômeno evolucionário. Para sobreviver, precisamos nos contradizer. Em termos crus, o que motiva alguém a sobreviver à competição brutal no trabalho não é o que motiva a mãe a aconchegar um bebê, mas os dois impulsos são necessários.

Vladimir Putin pode invadir a Ucrânia e ser ótimo pai porque em cada um dos dois papéis está usando convicções incompatíveis.

A hipocrisia requer mais do que o autoengano, ela precisa de um outro. "Todo homem é sincero a sós", dizia Emerson no século 19. Somos mais tolerantes com a nossa inconsistência do que a dos outros. Psicólogos e neurocientistas hoje acreditam que a hipocrisia é parte integral da sobrevivência social porque ela serve de couraça para conquistar obstáculos.

Clancy Martin não defende a hipocrisia e sim o cuidado em acenar com a acusação. Subir no cavalo branco e localizar o hipócrita apenas no outro é uma forma de hipocrisia, seja na Grécia antiga ou na Brasília de 2014. "Atire a primeira pedra" continua a ser um bom argumento cautelar. Mas não na defesa dos saqueadores da Petrobrás.

Por uma direita festiva - LUIZ FELIPE PONDÉ


FOLHA DE SP - 21/04
O maior desafio para um jovem estudante liberal no Brasil é pegar mulher no meio universitário e afins

Ser jovem e liberal é péssimo para pegar mulher. Este é o desafio maior para jovens que não são de esquerda.

Um dos maiores desafios dos jovens que não são de esquerda não é a falta de acesso a bibliografia que seus professores boicotam (o que é verdade), nem a falta de empregos quando formados porque as escolas os boicotam (o que também é verdade), mas sim a falta de mulheres jovens, estudantes, que simpatizem com a posição liberal (como se fala no Brasil) ou de direita (quase um xingamento).

Os cursos em que você encontra jovens liberais (economia, administração de empresas, engenharia e afins) têm muito poucas mulheres e as que têm não têm muito interesse em papo cabeça e política. O celeiro de meninas que curtem papo cabeça e política são cursos como psicologia, letras, ciências sociais, pedagogia e afins, todos de esquerda.

E aí se recoloca o problema: quando liberais se reúnem há uma forte escassez de mulheres, o que é sempre um drama. E quando junta muito homem falando papo cabeça sem mulher por perto, todos ficam com cara de Sheldon. Sem mulheres, tudo fica chato em algum momento. Como resolver um problema sério como esse?

Vou repetir, porque eu sei que questões altamente filosóficas são difíceis de se entender: o maior desafio para um jovem estudante liberal no Brasil é pegar mulher (no meio universitário e afins), sendo liberal. Claro, charme pessoal, simpatia, inteligência, grana, repertório cultural, sempre são fatores importantes, mas a esquerda tem um ponto a favor dela que é indiscutível: se você é de esquerda, pegar mulher é a coisa mais fácil do mundo. Qual o segredo da esquerda? É ser festiva.

Outro dia, conversando com um amigo e colega que é bastante conhecido (por isso vou preservar sua privacidade), chegamos à conclusão de que a direita (liberal, claro, não estou falando de gente que gosta de tortura, tá?) precisa desesperadamente encontrar sua face festiva.

A esquerda festiva (que é quase toda ela) reproduziu porque teve muitas mulheres à mão. Imagine papos como: "Meu amor, se liberte da opressão sobre o corpo da mulher!". Agora, imagine que você esteja num diretório de ciências sociais no final da noite ou num apê sem pai nem mãe (dela) por perto. Um pouco de vinho barato, quem sabe, um baseado? Um som legal, uma foto grande do Che (aquele assassino chique) na parede.

Ou imagine você dizendo para uma menina bonitinha algo assim: "O capital mata crianças de fome na África!". Mesmo sendo ela uma jovem endurecida pela batalha contra a opressão da mulher (por isso tenta desesperadamente ser feia), seu coração jorrará ternura.

Imagine a energia de uma manifestação! Braços dados ou não, mas caminhando e cantando. Imagine a fuga, correndo juntos da polícia. Os corações batendo juntos!

E claro, imagine vocês no bar da faculdade (matando a aula, porque quem assiste aula não pega mulher): muita cerveja, muitas juras de revolta contra as injustiças sociais, muitas citações de Marx e Foucault.

Ou, mais sofisticado ainda: um festival de documentários em Cuba! Meu Deus, pode haver paraíso melhor para se conhecer meninas "donas do seu corpo"?

Desde as primeiras populações na pré-história sabe-se que sem álcool e conversa (por isso aprendemos a falar, do contrário só as meninas falariam) a humanidade teria desaparecido porque mais da metade das meninas não iam querer transar --principalmente quando descobriram a dor do parto.

O canal para uma direita festiva é: fale de liberdade, do sofrimento humano, de corpo, discuta documentários, diga que a vida não tem sentido, mas que a beleza existe, não se vista como o Sheldon, viaje para a Islândia, e (pelo amor de Deus!) não fale de economia. As meninas destetam economia, essa "ciência triste", porque atrapalha a alegria da vida.

Ou rezem para o Brasil virar a Venezuela e aí os meninos liberais vão pegar todas.

Eu sei: vão dizer que estou afirmando que discutimos papo cabeça para pegar mulher, mas, lamento, é isso mesmo que estou dizendo, pelo menos em parte. Acordei hoje numa "vibe" darwinista. Sorry.