sábado, 5 de outubro de 2013

Não foi o mordomo


Caso da família morta com 'bolo envenenado', ou 'pelo namorado da mãe', confirma que no trabalho policial a especulação é inimiga da investigação

28 de setembro de 2013 | 15h 10

Guaracy Mingardi
Alívio. Boliviano agradeceu ao apresentador Datena, que falou em gás antes da polícia - Edison Temoteo/Futura Press
Edison Temoteo/Futura Press
Alívio. Boliviano agradeceu ao apresentador Datena, que falou em gás antes da polícia
As histórias policiais nunca são simples. Na ficção, qualquer investigação de homicídio sempre tem reviravoltas inesperadas para manter o interesse do leitor até o final. Nos livros de Agatha Christie, a cada página a suspeita se volta contra um personagem diferente. E só no último minuto que a trama é revelada.

No mundo real as coisas são um pouco mais simples. A maioria dos casos tem motivos claros e não existem inúmeros suspeitos. Ou a polícia sabe exatamente quem matou ou não tem a mínima ideia. Outra diferença básica é que o assassino não confessa espontaneamente no último capítulo. A polícia e o Ministério Público têm de construir uma boa cadeia de provas para convencer os jurados. A não ser quando é um caso midiático. Aí vira uma novela, em que aparecem inúmeras versões do fato, ou certezas absolutas. Todas supostamente baseadas na versão oficial. E o jurado já chega com a certeza da culpa, mesmo sem ter sido apresentada às provas.

Ainda bem que a perícia foi rápida no caso de Dina Vieira da Silva. A primeira versão é que teria se matado com os filhos. Seria o terceiro caso seguido de alguém que mata a família e em seguida se suicida. Depois, o culpado era Alex Pedraza, o namorado boliviano de Dina, que ficou preso uma semana por suspeita de envenenamento. E já começavam a aparecer histórias sobre seu caráter ou comportamento. Um ex-namorado de Diná, pai de uma das meninas, disse que suspeitava do preso, sem explicar os motivos. E a polícia já havia levantado três queixas da morta contra ele por ameaça. 

Eis que a situação reverte. O bolo com o qual ele teria provocado a morte das cinco vítimas não continha veneno. Agora o principal suspeito é um vazamento de gás. Além de não encontrar sinais de veneno no bolo, a perícia descobriu indícios de vazamento de monóxido de carbono no aquecimento do chuveiro, o que, aliado ao fato de que o apartamento estava todo fechado, sugere que um acidente teria provocado a morte das cinco pessoas.

Notem que no parágrafo anterior eu disse “teria”. Mesmo que fique comprovada a tese do envenenamento por gás como causa mortis, o acidente é somente a última versão, nada está comprovado. Ainda pode ter sido resultado de uma ação da mãe, do namorado boliviano ou mesmo de terceiros. Em suma, o caso não está fechado. Apesar disso as especulações vão continuar pipocando, alimentadas por informações vazadas pela polícia. E, no meio da bagunça, Pedraza, culpado ou inocente, foi para a cadeia e teve a vida posta em risco sem a menor necessidade. Aliás isso aconteceu recentemente num inquérito de outro tipo que alvoroçou a imprensa. Um delegado foi preso por suposto vazamento de informações. Dias depois o promotor responsável pela investigação pediu a soltura e admitiu que o delegado não tinha culpa. Aí não adianta mais, a carreira dele já foi pelo ralo. Em ambos os casos houve muita pressa em prender e aparecer na mídia.

É nessa pressa que mora o problema. Numa investigação em aberto os responsáveis deveriam guardar algum sigilo, tanto para não apresentar hipóteses não comprovadas quanto para não alertar os possíveis suspeitos. Aliás, essa foi uma regra que aprendi na Academia de Polícia há quase 30 anos. Lembro de um professor dizendo que a melhor coisa quando não se quer chegar a lugar algum é contar cada passo da investigação, cada hipótese, à imprensa. Ele deu como exemplo a investigação do caso Baumgarten, empresário morto com suspeita de participação dos órgãos de repressão da ditadura. Para não chegar a nenhum resultado comprometedor e mostrar serviço, o delegado teria montado um circo, exibindo a única testemunha a todo mundo. Não sei se o professor estava certo sobre as motivações do delegado, mas o fato é que ninguém foi condenado pelo crime.

Os maiores problemas ocorrem quando a fonte do vazamento não é a equipe que investiga o caso. Alguns órgãos de imprensa se especializaram em puxar pela língua qualquer policial, civil ou militar, mesmo que não participe da investigação. Aí a informação, ou palpite, fica quase oficial. Aparece nos programas sensacionalistas como certeza absoluta, provocando uma montanha de testemunhos adulterados e/ou falsos, de pessoas que só querem aparecer. Na prática isso atrapalha uma investigação séria e acaba por canalizar esforços na direção errada. Se os responsáveis pelo inquérito devem manter sigilo até ter certeza dos fatos, imagine então outro policial qualquer.

É dever tanto do repórter quanto do policial buscar os fatos, é isso que se espera deles. O procedimento de ambos, porém, tem de ser diferente. Enquanto o primeiro deve dar a notícia o mais rápido possível, furar a concorrência, o outro só pode se manifestar quando tiver certeza jurídica do fato. Falar só com plena convicção e provas. Não adianta dizer que foi o Zezinho da Rua B que cometeu o crime se não tiver a qualificação do Zezinho, o endereço e provas contra ele. Falar antes da hora só ajuda a espantar a lebre.

* Guaracy Mingardi é doutor em Ciência Política pela USP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Tiro n'àgua


Lei que proíbe armas de brinquedo não acerta no alvo correto: a questão da agressividade e da desvalorização do outro em nossa sociedade

28 de setembro de 2013 | 14h 57

Ana Mercês Bahia Bock
 - Estadão
Estadão
Quando nascemos, nascemos candidatos à humanidade, e é o contato com objetos da cultura, mediado pelos adultos que nos oferecem as significações, que nos humaniza.

Assim, quando nos preocupamos com as armas de brinquedo, devemos lembrar que a questão da socialização/humanização não está somente nos objetos, mas também na mediação produzida pelo adulto, ou seja, nas significações que são transmitidas nas relações sociais. Não é o simples contato material com um livro que nos faz leitores ou inteligentes, mas sim a convivência com eles, tratados de modo positivo e valorizado, sendo objeto de conversa e troca, enfim, livros que circulam e convivem conosco material e simbolicamente. Da mesma forma, não é o mero contato com armas de brinquedo que vai gerar agressividade ou violência.

As coisas não se passam assim tão direta e cruamente. Relacionamo-nos, ao mesmo tempo, com muitos objetos e com muitos adultos. Significações, valores, uso dos objetos, situações, cenários, vivências, sentidos subjetivos constituídos, tudo isso se relaciona no processo de humanização/socialização de cada um. Com isso, estamos querendo defender a ideia de que não se pode tomar a questão do uso das armas de brinquedo de forma simplificada, ou seja, tomá-las como o aspecto fundamental e único para compreender a agressividade para com o outro. Seria naturalizar a questão, absolutizando apenas um aspecto do problema. 

O ponto crucial nessa discussão parece ser a agressividade que vemos acontecer nas relações. O outro é nosso parceiro social, mas não tem sido visto assim. Tem sido desvalorizado, podendo mesmo receber um tiro de brincadeira ou não. É com essa visão do outro que deveríamos nos preocupar.

Mas e as armas de brinquedo que se pareçam com as armas de verdade? Deve-se permitir ou não sua venda? A questão é boa, pois pode nos colocar frente ao problema da violência e da desvalorização do outro, em curso em nossa sociedade.

O que é mais nocivo na desvalorização do outro: ter uma arma de brinquedo ou ter uma boneca loira em um país em que mais de 50% das pessoas são negras? Brincar apenas com objetos fúteis da cultura ou ter carrinhos e monstros  que batem e destroem? Jogar games violentos e assistir a filmes de heróis que, em defesa de uma causa justa, destroem e matam ou assistir aos nossos telejornais no seu empreendimento bem-sucedido de banalizar a violência, desrespeitando os direitos das pessoas envolvidas?

Ou seja, a questão da agressividade e da desvalorização do outro é que tem de ser pensada. Devemos enfrentar o debate sobre a agressividade em nosso meio, sem tomá-la como um aspecto natural do humano. Devemos nos perguntar, cotidianamente: onde a temos construído?

Em muitas ocasiões e lugares. No trânsito, por exemplo: carros dirigidos por pessoas que não vemos, dados os vidros escuros; estacionamentos onde disputamos uma vaga; raiva dos ônibus que cruzam em nossa frente sem nos darmos conta que somos apenas uma pessoa e ali há um coletivo; na forma ostensiva da polícia, impondo poder pelo medo; na humilhação de parte de nossa população, parte essa que, muitas vezes, está em nossas casas trabalhando; nas relações de trabalho onde impera a ideia do ganhar ou morrer; nos corredores dos hospitais, onde pessoas morrem sem socorro. Vidas que valem mais que outras.

Cabe ainda em nossa reflexão pensar que as pessoas que cometem atos violentos também são humanizadas nesse mesmo espaço social. Nós, muitas vezes, preferimos vê-los como alguém que não é humano. Jogamos para baixo do tapete a discussão essencial: quem é o outro para nós? 

Tudo isso acompanha o uso da arma de brinquedo, assim como o uso das inocentes panelinhas nas quais se brinca de fazer papinha para as bonecas. Todos esses elementos convivem na subjetividade de nossas crianças, que estão se humanizando.

A arma de brinquedo pode ser um bom instrumento para ensinar, a nossas crianças, o valor da existência do outro. Muitas vezes, pode ser com uma arma que a criança aprende que não se pode matar, ou mesmo aprende o efeito do uso da arma. Mas, se não vamos ensinar as significações das coisas (da importância e valor do outro, nosso parceiro social), é melhor proibirmos as armas. É sempre bom lembrar que não foram as armas que produziram humanos violentos, mas ao contrário: primeiro planejamos destruir o outro e aí inventamos as armas. Isso é importante porque, ao retirarmos as armas e não relacionarmos a ação a um conjunto de preocupações e estratégias, inventaremos outras armas.

As crianças farão seus revólveres com madeira e sucata se eles não estiverem nas lojas – talvez um bom começo, que propicia uma relação com o objeto mais reflexiva. Temos, como sociedade, nos empenhado tanto na defesa das árvores, da água, do urso panda, do mico-leão-dourado e das baleias. O que acontece? Desistimos das criaturas de nosso tempo? Mãos ao alto: um alerta para todos. 

*Ana Mercês Bahia Bock é psicóloga social e educacional, professora na PUC-SP e diretora do Instituto Silvia Lane de Psicologia e Compromisso Social

A nova fronteira do agronegócio


Soja e milho chegam com força ao nordeste de Mato Grosso

15 de setembro de 2013 | 2h 15

MAURO ZANATTA / TEXTOS, FOTOS, ENVIADO ESPECIAL, CONFRESA, QUERÊNCIA (MT) - O Estado de S.Paulo
Estrada perdida, vila fantasma, vale dos esquecidos. Os adjetivos usados por três décadas para resumir a incômoda realidade do Vale do Araguaia, no nordeste de Mato Grosso, já não cabem mais na rotina da última fronteira agrícola do Brasil. A área cortada pela BR-158 vive um boom econômico sem precedentes. A conversão em larga escala de áreas de pastagem degradadas em exuberantes lavouras de soja e milho estimula uma corrida de grandes grupos privados multinacionais e brasileiros para a região da tríplice divisa com o Pará e o Tocantins.
Mesmo com logística deficiente e serviços públicos ainda precários, a microrregião de 25 municípios ajudou a sustentar o inesperado crescimento do PIB do 2.º trimestre deste ano. O agronegócio respondeu por um terço do surpreendente avanço de 1,5% apurado pelo IBGE.
Pioneiros e recém-chegados, produtores consolidam áreas de tecnologia e maquinários ultramodernos movidos pelos altos preços das commodities das últimas cinco safras.
A região acelera em ritmo empresarial na soja e no milho sem expulsar as centenas de milhares de cabeças de gado. Ao contrário, passou a adotar a integração lavoura-pecuária para ocupar o solo todo o ano e "colher" a "terceira safra" de proteína animal - 2,3 milhões de hectares de pastos devem virar áreas de grãos. Há bolsões com problemas ambientais, fundiários e disputa por terras com índios do Xingu.
A região cresce bem acima da média nacional em demanda por crédito, máquinas, insumos e ampliação da área plantada. Em Confresa, principal polo regional no eixo norte da inacabada rodovia, por exemplo, o Banco do Brasil elevou em 2.000% seus negócios rurais nos últimos cinco anos. Na vizinha Porto Alegre do Norte, onde há vários gigantes do agronegócio, foram 2.500% adicionais. Em alguns anos, Querência deve alcançar o município "campeão mundial", Sorriso, encostando em 500 mil hectares de área plantada com soja. "Tudo está mudando muito rapidamente. E os grupos consolidados estão atrás de oportunidades", diz o paranaense Edio Brunetta, sócio da Itaquerê, dona de 50 mil hectares de soja e milho e de 20 mil bois.
Disputa. As maiores tradings e indústrias de insumos agrícolas já chegaram e ampliam de forma acelerada sua presença nas principais áreas. ADM, Bunge, Cargill, Louis Dreyfus, Los Grobo e Glencore disputam espaço com Amaggi, Caramuru, Bom Futuro e Sinagro. A Fertilizantes Tocantins concluiu neste mês um investimento de R$ 25 milhões num complexo fabril em Querência.
A concessionária regional da americana Case já tem o quarto maior faturamento do Brasil, acima de R$ 200 milhões anuais. A canadense Mbac investirá US$ 385 milhões até 2015 em uma jazida de fosfato para suprir a demanda de Mato Grosso e Pará. A SLC Agrícola fez uma joint venture com a Agropecuária Roncador, maior fazenda da região, com 150 mil hectares, ligada ao Grupo Serveng.
Há uma corrida pela construção de armazéns e silos gigantescos para guardar as safras, driblando momentos ruins do dólar ou dos preços externos. "A chegada do linhão de energia mudou tudo", diz o secretário de Planejamento de Confresa, o veterinário paraibano José Pereira. Em quatro anos, o município, que ostenta título de maior assentamento rural do País, saiu de 4 mil para 70 mil hectares de lavouras. "E nosso potencial é 260 mil."
O dinamismo do campo tem impulsionado as pacatas cidades da região. Não há mão de obra suficiente para erguer casas, prédios e comércios. Hotéis e agências bancárias estão sempre lotadas.
Restaurantes, postos de combustível, farmácias, supermercados e lanchonetes brotam por toda parte. Caminhonetes de todos os modelos lotam as ruas empoeiradas e ainda sem semáforos das cidades. O frenesi também é intenso na vida noturna. "As cidades estão em plena transformação", atesta Maurício Tonhá, dono da Estância Bahia, cujo leilão de gado, considerado o maior do gênero no mundo, comercializou 33 mil bois em Água Boa.
Grandes fazendas próximas da área urbana viram loteamentos. E a especulação chegou com força. Em Querência, dois empreendimentos oferecem lotes a R$ 30 mil a unidade. Em área nobre, pode valer até R$ 300 mil. Uma casa de alto padrão passa de R$ 1 milhão. Ainda assim, o cartório de registro de imóveis aponta crescimento de 20% ao ano na emissão de escrituras.
Os preços da terra e de terrenos decuplicaram em três ou quatro anos. Na área rural, um hectare em produção custa R$ 40 mil a R$ 50 mil. No início dos anos 2000, valia menos de US$ 200. E há quem peça R$ 80 mil à vista.
Apagões. As dores do crescimento já são visíveis. Com tanta agroindústria em instalação, a energia chegada há cinco anos dá sinais de exaustão. Apagões são comuns, até nas telecomunicações. "Ficamos horas sem internet. Sem isso, não emito nota e o pátio fica com 50 caminhões na fila", diz o gerente regional da Tocantins, Gleyson Ferreira. Para resolver, um ramal de fibra óptica custará R$ 240 mil à empresa.
As novas levas de migrantes também enfrentam o drama da saúde pública. Hospitais não têm especialistas, só clínicos gerais, mesmo com oferta salarial de R$ 30 mil mensais.
Casos graves têm de ir a Cuiabá, a 1,4 mil km. Nenhum inscrito no Mais Médicos optou por vir à região. Querência pediu três profissionais. Na segurança, algumas ocorrências policiais ligadas a tráfico de drogas passaram a preocupar os moradores. Mas o apagão de mão de obra talvez seja o principal entrave fora da infraestrutura. Todos reclamam. Indústria, comércio, serviços e, claro, também o agronegócio. O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) intensificou a formação e treinamento, chegando a 20,5 mil capacitados desde 2010 em 126 cursos. "Sem treinar, o investimento em máquinas modernas, por exemplo, pode ser neutralizado. Sem saber operar, não tira o máximo proveito", diz o presidente do sistema Famato/Senar, Rui Prado.
Em 2013, foram treinados 150 desses operadores, diz o supervisor regional Kleber Muller. Ainda assim, falta pessoal qualificado, no campo e nas cidades. "É nosso pior problema", diz o presidente da Associação Comercial de Confresa, Malaquias Danieli. A Tocantins oferece R$ 2,5 mil e mais cinco salários de bônus para um vendedor. "Mas não achamos gente com perfil", diz Gleyson Ferreira.