quinta-feira, 18 de abril de 2013

Curando a malária com açúcar



18 de abril de 2013 | 2h 02
Fernando Reinach - O Estado de S.Paulo
Semana que vem vai ter festa em São Francisco. O primeiro lote de artemisinina, produzida com base no açúcar, ficou pronto. Em 2013 serão produzidas 35 toneladas, o suficiente para 100 milhões de doses. A cada ano, 200 milhões de pessoas contraem malária e 650 mil morrem por causa da doença. A artemisinina produzida por esse método tem grande chance de contribuir para erradicar a malária. Como é produzida por microrganismos, usando como matéria-prima o açúcar, e os inventores abriram mão de remuneração sobre a propriedade intelectual, ela é muito barata. Mas não é o único motivo para festejar. O trabalho científico descrevendo em detalhes esse feito tecnológico acabou de ser publicado.

Tudo começou em 2003. Quatro cientistas que trabalhavam na Universidade da Califórnia em Berkeley escolheram um problema socialmente relevante para demonstrar o poder das novas técnicas de biologia sintética que desenvolviam. Escolheram a artemisinina, um dos mais potentes antimaláricos conhecidos. 

Ela foi descoberta em uma planta originária da China, a Artemisia anura, mas nunca foi utilizada em larga escala. Sua síntese por métodos químicos é difícil. Até hoje, a pouca quantidade de artemisinina disponível é extraída da árvore, cultivada em diversos países. O resultado é que a produção é incerta e o custo, alto. O objetivo era transplantar todos os genes necessários para a síntese desse composto para um organismo simples, que produzisse muita artemisinina, usando como alimento um composto muito barato. 

O escolhido foi o Saccharomyces cerevisiae, o fungo usado para produzir a cerveja e o etanol. Esse fungo transforma o açúcar do caldo de cana em etanol. O trabalho consistia em produzir uma variedade desse fungo capaz de tornar açúcar em artemisinina.

Para levar adiante o projeto foi feito um acordo inovador com a Bill e Melinda Gates Foundation. A fundação financiaria o desenvolvimento do projeto, com uma condição: a empresa abriria mão de todos os direitos sobre a propriedade intelectual do produto final, de modo a garantir que o ele chegaria aos pacientes com o menor custo. Em troca, a Bill e Melinda Gates Foundation permitiu que a tecnologia gerada pelo projeto fosse propriedade exclusiva da empresa, que poderia usar o conhecimento para desenvolver produtos comerciais.

Entre 2004 e 2008, a empresa descobriu como a árvore produzia artemisinina, isolou os genes que produziam a molécula e colocou esses genes em uma cepa do fungo. Foram mais de 17 genes isolados, modificados e combinados no novo hospedeiro. Dessa maneira, toda a linha de montagem da molécula de artemisinina foi transferida para o fungo, e ele começou a produzir o ácido artemísico. Em seguida, essa "fábrica" de ácido artemísico, montada no interior de um ser vivo, teve de ser otimizada, garantindo que grande parte do açúcar utilizado fosse convertido em ácido artemísico. 

Por volta de 2008 a cepa estava pronta. Mais de 50 cientistas trabalharam no projeto durante cinco anos, gastaram mais de US$ 30 milhões e o projeto ainda não havia terminado. Um método de produção em escala industrial foi desenvolvido, a purificação do ácido artemísico foi padronizada e uma maneira barata de converter o ácido artemísico em artemisinina acabou descoberta. Esses últimos passos foram feitos em colaboração com uma indústria farmacêutica. No final de 2012 estava tudo terminado. A primeira batelada foi produzida e o trabalho científico descrevendo a tecnologia, publicado. 

Mas a história não acaba aqui. Talvez você já tenha visto diversos ônibus circulando em São Paulo com os seguintes dizeres: EcoFrota - Movido a Diesel de Cana. O diesel que move esses ônibus é produzido em Brotas, no interior de São Paulo.

A fábrica, recém-inaugurada, é capaz de transformar a garapa de 1 milhão de toneladas de cana em diesel e outros produtos químicos.

Funcionando desde janeiro, esta fábrica produz diesel utilizando uma cepa de Saccharomyces construída usando a tecnologia desenvolvida para produzir artemisinina. 
* Fernando Reinach é biólogo.

MAIS INFORMAÇÕES: 'HIGH-LEVEL SEMI-SYNTHETIC PRODUCTION OF THE POTENT ANIMALARIAL ARTEMISININ. NATURE,  DOI:10.1038/NATURE120551,  2013.

Desaceleração do aquecimento global intriga cientistas



Alister Doyle e Gerard Wynn
Em Oslo e Londres
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Mitos e verdades das mudanças climáticas8 fotos

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A Terra está ficando mais quente nos últimos séculos? Verdade
A média da temperatura global em 2012 foi a nona maior desde que os dados começaram a ser computados, no fim do século 19. O ano passado registrou média de 14,6 graus, ou seja, 0,8 grau a mais do que o registrado em 1880, segundo relatório da Nasa (Agência Espacial Norte-Americana) - 1998, 2005 e 2010 foram os três mais quentes desse arquivo histórico. "Com o aumento dos gases do efeito estufa, os cientistas esperam que cada década sucessiva tende a ser mais quente que a anterior", explica a Nasa Leia mais NASA Goddard's Scientific Visualization Studio
Cientistas estão com dificuldade para explicar uma desaceleração do aquecimento global que expôs lacunas no seu conhecimento, e eles buscam entender as causas para determinar se esse alívio será breve ou se o fenômeno é duradouro.
A maioria dos modelos climáticos, geralmente focados em tendências que duram séculos, foi incapaz de prever que a elevação das temperaturas iria se desacelerar a partir do ano 2000 aproximadamente.
Isso é crucial para o planejamento em curto e médio prazo de governos e empresas em setores tão díspares quanto energia, construção, agricultura e seguros. Muitos cientistas preveem um novo aumento do aquecimento nos próximos anos.
Uma das teorias para explicar essa pausa diz que os oceanos teriam absorvido mais calor pelo fato de sua superfície ficar mais fria do que se esperava. Outras especulam que a poluição industrial da Ásia - ou até nuvens - estariam bloqueando o calor do Sol, ou, então, que os gases do efeito estufa retêm menos calor do que se acreditava.
A mudança pode também decorrer de um declínio já observado na presença de vapor de água (que absorve calor) na alta atmosfera, por razões desconhecidas. Os cientistas dizem que pode estar ocorrendo uma combinação de vários fatores ou de variações naturais ainda desconhecidas.
O fraco crescimento econômico mundial e a redução na tendência de aquecimento global estão afetando a disposição dos governos para fazerem uma rápida transição dos combustíveis fósseis para as energias renováveis, o que exige bilhões de dólares. Quase 200 governos já concordaram em definir até 2015 um plano para combater o aquecimento global.
"O sistema climático não é tão simples quanto as pessoas acham", disse o estatístico dinamarquês Bjon Lomborg, autor do livro "O Ambientalista Cético". Ele estima que um aquecimento moderado seria benéfico para as lavouras e para a saúde humana.
O químico sueco Svante Arrhenius mostrou pela primeira vez na década de 1890 como as emissões de dióxido de carbono a partir do carvão, por exemplo, prendem o calor na atmosfera. Muitos dos efeitos exatos ainda são desconhecidos.
As emissões de gases do efeito estufa atingiram níveis recordes repetidamente com um crescimento anual de cerca de 3% na maior parte da década até 2010, em parte alimentada por aumentos na China e na Índia. Emissões mundiais foram 75% maiores em 2010 do que em 1970, segundo dados da ONU (Organização das Nações Unidas).
Um rápido aumento das temperaturas globais nos anos 1980 e 1990 - quando as leis de ar limpo em países desenvolvidos reduziram a poluição e deixaram o Sol mais forte na superfície da Terra - serviu como um argumento convincente de que as emissões de gases do efeito estufa eram culpadas pelo aquecimento.
O IPCC, painel de especialistas sobre clima da ONU, vai procurar explicar a atual pausa no aquecimento em um relatório que será divulgado em três partes a partir de final de 2013, com o objetivo de servir como um roteiro científico principal para os governos na mudança de combustíveis fósseis para as energias renováveis, como a energia solar ou eólica.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Todo ano é Haiti, por RUBENS RICUPERO


A PASSIVIDADE com que nos resignamos a tragédias anunciadas e evitáveis tem a mesma regularidade e previsibilidade das chuvas de verão. Uma de minhas mais antigas lembranças é da nossa casa do Brás arruinada pelo Tamanduateí nas enchentes que já devastavam a zona 70 anos atrás.
As cidades, berço da civilização (a palavra vem de "civitas", cidade), tornaram-se no Brasil o cenário da tragédia das periferias. Nossa urbanização (acima de 80%) supera a de vários países europeus. Temos 115 cidades de mais de 100 mil habitantes e 18 acima de 1 milhão. No entanto, o tema urbano está ausente do repetitivo debate sobre o país.
Nas três últimas décadas do século passado, 90 milhões de novos citadinos explodiram o sistema urbano brasileiro. Essa expansão não foi antecipada pelos governos com medidas que se adiantassem aos problemas. George Martine, um dos melhores estudiosos do fenômeno, observa que jamais houve prioridade para a oferta pública de terrenos e moradias aos mais pobres.
Abandonados e sem alternativa, esses são obrigados a morar nas áreas de risco: no município de São Paulo, quase 30% dos 2,8 milhões de baixa renda vivem em várzeas inundáveis ou encostas ameaçadas de deslizamentos, ante apenas 9% dos de alta renda. Metade das favelas paulistas se situa em várzeas sujeitas a inundações crônicas. O problema tende a se agravar porque, enquanto os bairros ricos apresentam crescimento negativo, as únicas regiões que crescem nas metrópoles são as pobres (3,6%) e, dentro delas, as de risco (4,8%).
Comenta Martine que, apesar de sua constante expansão, as invasões e as ocupações ilegais têm sido tratadas como situações transitórias que se espera venham milagrosamente a desaparecer graças ao desenvolvimento. A ninguém ocorre que "é muito mais barato e efetivo preparar-se para o crescimento inevitável do que tentar corrigir o fato consumado". Cita exemplo de estudo sobre Curitiba, onde a remoção de 11 mil casas irregulares, menos de 3% do total, custaria o dobro da renda do imposto imobiliário do município.
Ao contrário do que se crê, os pobres não moram de graça. Em termos relativos, pagam mais pelos terrenos do que os abastados. Longe de serem espontâneas, as ocupações e os loteamentos clandestinos são objeto de lucrativa atividade de loteadores piratas.
A solução passa por duas medidas: 1ª) regulamentar e fiscalizar o mercado de terrenos das periferias a fim de proteger os pobres da espoliação; 2ª) mediante recursos de taxas sobre a valorização de imóveis, adquirir e dotar de infraestrutura glebas para vivendas populares ao longo de eixos de transporte rápido, como se fez no passado em Curitiba.
Não só faltam propostas de solução mas existe pouca consciência do problema. Nas eleições, nem se discutem os Planos Diretores das cidades e, de cada dez desses planos elaborados nos anos 70, sete foram engavetados. As tragédias que se repetem em São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, um pouco por toda a parte, deveriam nos obrigar a cobrar neste ano dos candidatos a presidente e governador ideias claras sobre como tencionam enfrentar os problemas oriundos de uma urbanização selvagem e distorcida. Mais que a herança do passado rural, o desafio e a promessa do Brasil futuro se encontram nas cidades.

RUBENS RICUPERO, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.