segunda-feira, 16 de abril de 2012

Sem pompa nem circunstância


Timidez da agenda de Dilma nos EUA deve-se à inadaptação dos dois países ao novo contexto global, diz analista

15 de abril de 2012 | 3h 09
Ivan Marsiglia - O Estado de S.Paulo
O site da residência oficial americana (www.whitehouse.gov) destacou, na data anunciada, a importância do evento: "Na segunda-feira, 9 de abril de 2012, a Primeira Família vai receber o 134º Egg Roll da Páscoa na Casa Branca. O tema deste ano é 'Vamos lá, vamos jogar, vamos em frente'. Mais de 35 mil pessoas estarão conosco no Gramado Sul para jogos, histórias e, é claro, a tradicional brincadeira do ovo".
Esse pitoresco acontecimento teve mais visibilidade na mídia americana do que o encontro, no mesmo dia 9, da presidente da sexta maior economia do mundo com Barack Obama. É o que conta o professor americano Peter Hakim, presidente emérito do Inter-American Dialogue (Diálogo Interamericano), principal centro de análise política e cooperação entre países do Hemisfério Ocidental, com sede nos EUA. "Ou a visita de Dilma Rousseff foi mal planejada ou Brasil e EUA não tinham nada de muito importante a discutir", admite Hakim, sem meias palavras, nesta entrevista.
Ainda que a presidente tenha voltado a criticar, diante do anfitrião Obama, o "tsunami monetário" promovido pelos EUA para aliviar os sintomas domésticos da crise econômica ou tenha firmado convênios com centros de ensino de excelência como a Universidade Harvard e o Massachusetts Institute of Technology (MIT) - onde Hakim lecionou por anos -, ficou difícil disfarçar a timidez da agenda da visita dessa semana. Puro descaso do presidente americano, na interpretação do jornal britânico The Guardian, que estampou um artigo com o malicioso título Todos Querem Falar com a Presidente Dilma, menos Obama. Ou, antes, na opinião de Hakim, uma questão de inadaptação dos dois países ao novo contexto internacional de crise no mundo desenvolvido e ascensão dos emergentes.
"Os EUA parecem ter certa nostalgia de um Brasil de 'perfil baixo' e com menos contundência internacional", admite o analista. "O Brasil, por sua vez, é ainda cauteloso em se movimentar nessa nova estratégia, que combina independência e cooperação."
Apesar das críticas, o presidente do Inter-American Dialogue elogia os acordos firmados por Dilma - "a educação superior é a maior força dos EUA" -, mas alerta, ao comentar a malfadada cooperação entre o Ministério da Educação do Brasil e a United States Agency for International Development (Mec-Usaid), nos anos da ditadura militar, que esse tipo de programa deve ser seletivo e rigoroso para que os estudantes e o País tirem vantagem da experiência.
A visita da presidente Dilma aos EUA cumpriu seus objetivos?
Depois de refletir um pouco sobre a visita, não estou muito seguro de que objetivos eram esses. A mim me pareceu mais um encontro de cortesia, que não pode ser descartado como desimportante, mas com uma agenda tímida demais. As declarações públicas dos dois presidentes foram polidas e respeitosas, mas não passaram de retórica vazia - à parte a crítica feita por Dilma à política monetária americana. Mas talvez eu tenha perdido alguma coisa.
Um artigo no The Guardian criticou a forma como a presidente foi recebida. Disse que Obama lhe deu apenas duas horas, ao contrário da 'pompa e circunstância dedicadas aos líderes de Índia, China e Rússia'. O sr. concorda com essa análise?
Em termos gerais, sim. É fato que quase não houve pompa e circunstância. A data da visita foi mal escolhida, com o Congresso em recesso. Os líderes de Índia, Rússia e China certamente tiveram recepções mais elaboradas. Mas não é que os EUA tenham sido deliberadamente desatentos ou indiferentes. É que simplesmente não havia questões de grande importância ou urgência a serem discutidas. A mídia ficou procurando uma história e não encontrou. Os dois presidentes não tinham uma agenda clara a cumprir. Ou a visita foi mal planejada e organizada ou Brasil e EUA não tinham nada de muito importante a discutir. Possivelmente, houve uma mistura das duas coisas. Havia dois grandes eventos na Casa Branca no dia 9 de abril. A visita de Dilma e o Easter Egg Roll para crianças (tradicional brincadeira com ovos nos jardins da residência presidencial na Páscoa). O segundo teve mais destaque no noticiário televisivo.
Como entender o fato de que, apesar das significativas mudanças no panorama econômico internacional, as relações entre os EUA e o Brasil continuem em segundo plano?
A agenda americana com o Brasil ou com a América Latina não tem questões terrivelmente urgentes ou de vital importância para os EUA. Cuba, na realidade, não interessa para os EUA, exceto como problema político doméstico. O tráfico de drogas e suas consequências tampouco incomodam muito o país. Imigração é tema importante, mas não assunto a ser debatido com a América Latina; é outro problema doméstico ao qual os EUA se dedicam quando e como lhes convém. A presença da China na América Latina também não é vista com grande preocupação. A América Latina não é uma ameaça aos EUA de nenhuma maneira. Nem mesmo é alvo ou fonte de violência terrorista. O que faria, então, a América Latina sair desse segundo plano?
Para o Guardian, a ideia de que um país latino-americano possa servir de modelo 'está além da compreensão' americana.
O fato é que EUA e Brasil ainda não se adaptaram ao novo contexto global. O Brasil emergiu como polo de poder rival nas Américas, tem maior estatura internacional e uma economia mais forte e estável do que nunca. Os EUA parecem ter certa nostalgia de um Brasil de 'perfil baixo' e com menos contundência - internacional e regional. Ainda não encontraram um jeito de lidar com esse país assertivo, independente, que diz não aos interesses americanos. Por sua vez, o Brasil conquistou grande parte de sua nova influência afirmando sua independência em relação aos EUA, fazendo-lhe oposição nos fóruns internacionais, posicionando-se em questões como a Área de Livre Comércio das Américas, o Irã, bases militares na Colômbia, Estado Palestino, etc. E parece ainda cauteloso em se movimentar nessa nova estratégia, que combina independência e cooperação, assertividade e respeito.
Um dos destaques da visita foi a parceria firmada entre o governo brasileiro e instituições como a Universidade Harvard e o MIT. O que esperar dessa iniciativa?
É uma grande ideia que pode significar um grande negócio para o Brasil, se houver um número suficiente de estudantes brasileiros preparados para aproveitar esse treinamento de alto nível. Países como a China e a Índia mantêm um número enorme de estudantes nas universidades americanas - e têm há anos tirado vantagem dessa que é a maior força dos EUA, a educação superior. A América Latina, mesmo o México, nosso vizinho, está muito aquém no número de estudantes se aperfeiçoando nos EUA.
A nova cooperação anunciada apaga a triste memória dos acordos Mec-Usaid, feitos com os EUA durante a ditadura militar, que reduziram os anos letivos, cortaram disciplinas e sucatearam a escola pública no País?
Não sou um especialista nos acordos Mec-Usaid. Mas os EUA cometeram muitos erros trabalhando com regimes militares e ditadores personalistas. Além disso, levando-se em conta os recentes índices educacionais americanos, não estou certo de que sejamos o melhor lugar para se buscar conselhos para uma reforma educacional. Se o Brasil busca ajuda nos EUA, deveria fazê-lo com grande cautela - e clareza sobre o que o país realmente necessita. Pelo que sei, o Brasil já tem feito progressos importantes no redesenho de seu sistema educacional, particularmente em São Paulo.
Falando em cooperação, como ela anda entre os países do Hemisfério Ocidental, objetivo principal do Diálogo Interamericano?
Vivemos um período em que a cooperação se tornou mais difícil. A América Latina corretamente se percebe mais capaz do que nunca de agir com independência em relação aos EUA, de diversificar suas relações internacionais e mais apta a lidar com seus problemas por conta própria. Os EUA, por outro lado, enfrentam uma série de problemas que tornam difícil priorizar a cooperação com os países latino-americanos. Sua economia continua fragilizada e insegura, os recursos à disposição são parcos e o cenário político interno está polarizado e crescentemente disfuncional, tornando mais difícil o estabelecimento de um terreno comum para a formulação de políticas. Após engajar-se em duas guerras inconclusivas em menos de dez anos, os americanos têm os olhos voltados, cada vez mais, para si mesmos. Não querem se envolver com os problemas dos outros.
Recentemente, um microfone aberto flagrou uma conversa entre Obama e o então presidente da Rússia, Dmitri Medvedev, em que o mandatário americano prometia ser mais flexível às demandas russas após livrar-se 'do problema da reeleição'. Pode-se esperar comportamento distinto também em relação ao Brasil e à América Latina?
Talvez sim. Há alguns pontos na agenda americana com a América Latina que podem ser mais facilmente tratados após o fim do ano eleitoral. A reforma da imigração pode ser amenizada a partir de um acordo entre democratas e republicanos e a administração Obama deve dar mais alguns passos na agenda com Cuba. E há sempre a possibilidade de que o governo reveja seu approach com o Brasil - livre do risco de que uma concessão maior feita ao País lhe renda a acusação de tolerância com uma nação "amiga do Irã".
A esse respeito, o sr. escreveu que o Brasil sempre foi visto como um player que prefere se abster em certas questões, como a defesa da democracia e dos direitos humanos. Tal percepção se alterou após a mudança de tom de Dilma em relação ao Irã, por exemplo?
Dilma claramente mudou a forma com que o País lida com questões de democracia e direitos humanos, mas não de maneira tão dramática assim. Há mais continuidade do que mudança em relação ao seu predecessor. O lado positivo é que o Brasil está enfrentando a questão do balanço necessário entre dois princípios - o da não intervenção, por um lado, e o da promoção da democracia, de outro. A escolha certa nem sempre é óbvia. O Brasil sabe que essa decisão não é meramente ética, ela afeta as relações que tem com outros países e não é de se surpreender que se mova de maneira cautelosa. Mas tanto os EUA como a Europa veriam com bons olhos se o País assumisse um posicionamento mais forte na defesa dos direitos humanos, seja nos fóruns internacionais, seja em suas conversações bilaterais com países como Cuba, Irã e outros. China e Rússia é que ficariam menos contentes com isso.
Na sexta-feira, Dilma e Obama tinham outro compromisso, na 6ª Cúpula das Américas, em Cartagena. O que o sr. espera?
Não estou otimista quanto à possibilidade de resultados importantes. Os encontros recentes têm produzido poucos avanços efetivos. A verdade é que nem os EUA nem o Brasil se esforçaram muito nos preparativos para a Cúpula de Cartagena. O engajamento americano neste ano tem sido menor do que em todos os anteriores e as autoridades brasileiras têm sugerido que a Cúpula perdeu relevância em relação a outros fóruns de países latino-americanos e caribenhos. Apesar disso, nos últimos meses a cúpula foi energizada por acontecimentos inesperados em dois dos temas mais polêmicos desde sempre: Cuba e a política de drogas. Os americanos - que provavelmente estarão em posição minoritária e sob fogo cerrado em ambas as questões - serão duramente testados, assim como o grau de civilidade dos 33 países participantes da discussão. O resultado da Cúpula pode acabar sendo relevante ou apenas revelar apenas as animosidades de sempre.

Direitos humanos face à dramaticidade da vida


Maria Garcia - O Estado de S.Paulo

O valor universal dos direitos humanos vem juridicamente reconhecido desde a Carta da ONU de 1945, em cujo Preâmbulo os "Povos das Nações Unidas" reafirmam sua "fé nos direitos fundamentais do homem...", e na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Na Constituição brasileira de1988, duas disposições destacam-se no tema: o art. 5º, caput, pelo qual se garante a inviolabilidade do direito à vida, e o art. 227, pelo qual "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito á vida...", além de colocá-la "a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Esse, o mandamento constitucional dirigido a todos (família, sociedade e Estado). Então, qual é o problema, afinal, dos direitos humanos?
Um longo processo de desconstrução inicia-se na modernidade. "Ser moderno", diz Marshall Berman, "é ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador. Pode acontecer então que voltar atrás seja uma maneira de seguir adiante: levar o modernismo de volta a suas raízes, para que ele possa nutrir-se e renovar-se".
Evidentemente, o equilíbrio está em responder: o que deve ser mantido? O que deve ser mudado? E aí está toda a diferença. Charles Taylor escreve sobre "a doença da modernidade" (1994): a primeira causa de mal-estar é o individualismo, uma conquista da liberdade que apresenta traços de uma "sociedade permissiva", do comportamento da "me generation", ou da generalização do "narcisismo". A segunda causa prende-se a um outro fenômeno inquietante da época moderna que se pode chamar "a primazia da razão instrumental, ou seja, essa racionalidade que utilizamos quando avaliamos os meios mais simples de chegar a uma dada finalidade". Pensamos em termos de custo/beneficio, os quais atribuem um valor monetário à vida humana. A primazia da razão instrumental aparece também no prestígio que cerca a tecnologia e nos faz buscar soluções tecnológicas mesmo quando o objetivo é de outra ordem. A terceira causa do mal-estar nos leva ao nível político e às consequências resultantes, precisamente, do individualismo e da razão instrumental. Uma delas é que as estruturas da sociedade tecnoindustrial restringem nossas escolhas, decidem por nós o que nos é necessário, daí podendo atingir um nível de destruição como o que ocorre com o meio ambiente, e nas ameaças ecológicas que pesam sobre nossas vidas. Tais são, conclui Taylor, as três doenças da modernidade: a 1ª, uma perda de sentido, o desaparecimento dos horizontes morais. A 2ª, ao eclipse dos fins, em face de uma razão instrumental desenfreada. A 3ª refere-se à perda da liberdade.
Qual a receita? Segundo Taylor, desenvolver uma cultura política que valorize a participação do cidadão, seja nos níveis governamentais, seja nas associações livres, e para tanto, certamente, a educação se mostra um instrumento poderoso e é o que nos falta estimular.
Sobre o aborto, especificamente, a lei brasileira aponta a sua possibilidade em certos casos, ressaltando-se que a vida é um processo que se inicia com a concepção (José Afonso da Silva) e o direito a viver está assegurado pela Constituição. Direito significa possibilidade do seu exercício. Fora disso, não existe "direito a". Então, há certos pressupostos para o exame dessas questões: 1) a Constituição erigiu a vida em bem jurídico; 2) juridicamente, a vida é um processo que se inicia com o óvulo fecundado e termina com a morte; e 3) a divisão desse processo (pré-embrião, embrião, etc.) cabe às ciências naturais, para fins didáticos, medicinais e outros dessa área. No caso das crianças anencéfalas, portanto, todos esses pressupostos têm de estar presentes: existe um ser humano, vivo e, por consequência, sob a proteção constitucional.
"A tese da chamada ADPF 54", diz o médico e professor Rodolfo A. Nunes (Folha de S. Paulo, 10/4/12), "é de que na anencefalia não se trataria de aborto", pois inexistiria a possibilidade de vida extrauterina e, por isso, se situaria à margem da legislação atual. "Na realidade, essa tese não tem respaldo na literatura médica. A anencefalia não é equivalente à morte encefálica: as crianças podem ter uma parte do encéfalo posterior, médio e resíduos do anterior. Isso faz com que um pequeno porcentual delas, em função do grau de comprometimento, possa ter alta hospitalar, chorando, movimentando-se, respirando espontaneamente e viver semanas, meses ou, excepcionalmente, mais de um ano." E conclui: "Tentar abreviar o sofrimento trazido por uma doença grave eliminando alguém porque não se pôde curá-lo é cultura estranha ao nosso povo". Com efeito, se formos eliminar as causas de nosso sofrimento, faríamos como O Estado publicou em 3/4/12: "Professor mata por causa de barulho". O mesmo em outras circunstâncias, mais ou menos dolorosas e dramáticas. E, sem dúvida, Eliana Zagui, escritora, até hoje (36 anos) vivendo num leito de UTI no Hospital das Clínicas de São Paulo, paralisada desde o pescoço aos 3 anos, poderia ter sido sacrificada por causar sofrimento aos pais, que, aliás, "raramente a visitam" (Folha de S. Paulo, 10/4/12).
Conforme se destaca dos corajosos e fundamentados votos contrários, na recente decisão do STF: "Uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos portadores de anencefalia, ao arrepio da legislação penal vigente, além de discutível do ponto de vista ético, jurídico e cientifico, diante dos distintos aspectos que essa patologia pode apresentar na vida real, abriria as portas para a interrupção da gestação de inúmeros outros embriões que sofrem ou venham a sofrer outras doenças, genéticas ou adquiridas, as quais, de algum modo, levem ao encurtamento de sua vida intra ou extrauterina" (ministro Lewandowski). Assim, "o anencéfalo morre, e ele só pode morrer porque está vivo". A questão dos anencéfalos tem de ser tratada "com cautela redobrada diante da imprecisão do conceito, das dificuldades do diagnóstico e dos dissensos em torno da matéria".
Para que o aborto possa ser considerado crime, basta a eliminação da vida, "abstraída toda especulação quanto a sua viabilidade futura ou extrauterina". Nesse sentido, o aborto do feto anencéfalo é "conduta vedada de forma frontal pela ordem jurídica". Os apelos para a liberdade e autonomia pessoais são "de todo inócuos" e "atentam contra a própria ideia de um mundo diverso e plural". A discriminação que reduz o feto "à condição de lixo em nada difere do racismo, do sexismo, e do especismo". Todos esses casos retratam "a absurda defesa e absolvição da superioridade de alguns sobre outros" (ministro Peluso).
Eis a questão do valor universal dos direitos humanos neste limiar do século 21, quando enfocadas as condições e a dramaticidade da própria vida, onde quer que se encontre, desde as pequenas criaturas que não têm voz, às centenas de seres humanos sacrificados no Holocausto.  
MARIA GARCIA É PROFESSORA DE DIREITO, CONSTITUCIONAL, DIREITO EDUCACIONAL, BIODIREITO CONSTITUCIONAL NA PUC-SP

A realidade fora do tribunal


Para médico, mulheres devem receber as informações do diagnóstico e do prognóstico; a partir daí, cabe a elas decidir

15 de abril de 2012 | 3h 09
Thomaz Gollop - O Estado de S.Paulo

Mesmo depois de votada a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 - Anencefalia -, é preciso esclarecer pontos importantes. Várias lições foram aprendidas por todos que acompanharam cuidadosamente a votação encerrada quinta-feira no Supremo Tribunal Federal (STF). Quase ao final da votação o ministro Lewandowski afirmou que haveria graus variados de anencefalia. A ciência estabelece que anencefalia é uma malformação congênita grave e incompatível com a vida, caracterizada por ausência de encéfalo e de crânio, permanecendo apenas a base do crânio. Ela é uma entidade única e não é subdividida em graus. Em 100% dos casos é mortal. Os fetos portadores dessa anomalia sobrevivem minutos ou dias após o nascimento. Anencefalia é um diagnóstico preciso e único: ausência de crânio, encéfalo, existindo apenas a base do crânio. Existem outras malformações do sistema nervoso que são raras e distintas da anencefalia: acrania e merocrania, das quais não trata a ação apresentada ao STF.
Outra questão importante: autorizada a antecipação do parto em gestações acompanhadas de fetos anencéfalos estaria, segundo alguns, aberta uma porta para a ampliação dos permissivos legais do aborto. Certamente não, levada em consideração apenas essa decisão do STF. Muito bem falou o ministro Ayres Brito em seu voto: "Todo aborto é uma interrupção de gestação, mas nem toda interrupção de gestação é um aborto". Em todos os fóruns, nacionais e internacionais, incluído nosso Conselho Federal de Medicina, o feto anencéfalo é considerado um natimorto cerebral. Logo, não se trata de aborto, por não haver feto viável. Mais ainda, afirmou Ayres Brito: se os homens engravidassem, essa questão já estaria resolvida há muitos anos!
Foi importante absorver as lições que embasaram o voto do relator - ministro Marco Aurélio - ao elencar, entre outros, princípios que devem ser caríssimos à nação brasileira como laicidade do Estado, direitos reprodutivos e sexuais, autonomia das mulheres, não submeter ninguém (as mulheres no caso) a tratamento indigno ou a tortura. Verifica-se que o julgamento da ação foi muito além do foco central que a originou. No Brasil ainda é pouco difundido o conceito de laicidade do Estado: respeitam-se todas as religiões e mesmo quem não possui nenhuma. Cada uma pode manifestar-se sobre qualquer questão que diga respeito aos cidadãos(ãs), mas nenhuma delas deve interferir sobre questões que dizem respeito ao Estado. Nesse sentido, questões do Direito são públicas e questões de fé são privadas.
Em relação à autonomia das mulheres, deverá ficar claro que a decisão do STF não obriga as mulheres a anteciparem o parto em casos de anencefalia. Elas deverão receber todas as informações relativas ao diagnóstico e prognóstico fetal, assim como eventuais riscos para a saúde da gestante. O apoio psicológico será muito importante. A partir disso, cada mulher decidirá se quer manter a gravidez e, consequentemente, ser seguida em unidade obstétrica competente ou, ao contrário, interrompê-la. Naqueles casos em que a mulher se decidir pela interrupção, será seguido um protocolo de atendimento que está em fase final de elaboração na Área Técnica da Saúde da Mulher do Ministério da Saúde e orientará os profissionais de saúde na atenção ao abortamento em casos de anencefalia, conforme a norma técnica do ministério "Atenção Humanizada ao Abortamento" (2011), nos casos previstos em lei. Na verdade já há muitos precedentes de atendimento às mulheres nessa condição, pois nos últimos 23 anos os juízes de primeira instância concederam, caso a caso, alvarás judiciais e as mulheres foram então atendidas sem que se tenha notícias de dificuldades na prestação desse serviço. Não haverá, portanto, sobrecarga no Serviço Único de Saúde (SUS).
As causas dessa grave anomalia congênita são geográficas, sazonais, genéticas e nutricionais. Sobre as três primeiras não podemos ainda interferir. Entretanto, desde 1973 sabemos que a deficiência de ácido fólico (vitamina B9) é responsável por aproximadamente 50% dos casos de anencefalia. Por essa razão o Ministério da Saúde tem uma política pública que consiste em acrescentar ácido fólico às farinhas e com isso contribuir para a minimização da ocorrência e recorrência da anencefalia. Além disso, é ensinado aos médicos obstetras prescreverem ácido fólico na dose de 4 mg pelo menos um mês antes da gestação e nos primeiros dois meses da gravidez. Esse é um medicamento barato e disponível no SUS. E em relação à precisão e disponibilidade de diagnóstico? O diagnóstico é 100% seguro com uma única ultrassonografia a partir de 12 semanas de gravidez. Dizia com razão o saudoso professor José Aristodemo Pinotti que há dois diagnósticos ultrassonográficos em obstetrícia que não têm erro: óbito fetal e anencefalia. Qualquer serviço público ou privado está habilitado a fazê-lo.  
THOMAZ GOLLOP É MÉDICO OBSTETRA, ESPECIALISTA EM MEDICINA FETAL