segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

'Para que devem ser formados os novos engenheiros?'


Roberto Leal Lobo e Silva Filho - Ex-reitor da USP e presidente do Instituto Lobo para Desenvolvimento da Educação, Ciência e Cultura
A Engenharia é um fator determinante para o desenvolvimento econômico das nações. Cada vez mais a criação e a produção de bens de grande valor agregado fazem a diferença na balança comercial do mundo globalizado. A capacidade de inovação depende de vários fatores, entre eles a existência, quantidade e qualidade de profissionais de Engenharia. Com a rápida evolução da tecnologia e a consequente obsolescência das existentes, a formação do engenheiro deve privilegiar os conteúdos essenciais, ensinando-o a se adaptar rapidamente aos novos conhecimentos e técnicas.
Por essa razão, a pulverização de especialidades estanques não é uma política profissional desejável. Além da necessidade de revisão dos currículos e das formas de integrar os conhecimentos científicos, tecnológicos, econômicos e mercadológicos, é preciso estabelecer uma nova política para o corpo docente das faculdades de Engenharia, associando a formação acadêmica avançada à experiência prática dos melhores profissionais do mercado, criando condições para uma coexistência altamente produtiva.
A INOVAÇÃO COMO FATOR DE DESENVOLVIMENTO
Em junho de 2008, durante sua 32ª reunião, a Comissão Econômica para América Latina e Caribe da Organização das Nações Unidas (Cepal/ONU), que aconteceu em Santo Domingo na República Dominicana, recomendou em seu estudo “A Transformação Produtiva 20 Anos Depois” a inovação como um dos pontos chaves para o desenvolvimento da América Latina e do Caribe.
O estudo destacava a relevância do setor público para impulsionar o processo de inovação, que seria reforçado em cada região da América Latina e do Caribe de acordo com a etapa de desenvolvimento, a importância dos recursos naturais e da estrutura produtiva de cada uma.
Para isso, a Cepal considerava essencial o desenvolvimento de uma cultura de inovação - que permitisse criar e aproveitar oportunidades sem a necessidade de transitar por caminhos já percorridos - e a capacidade de detectar e fazer bom uso das
oportunidades que o mundo já oferecia, ou viria a oferecer, permitindo o aprendizado a partir das experiências e avanços de outros países.
De lá para cá, só cresceu o consenso sobre o papel fundamental da inovação no desenvolvimento econômico das nações.
A inovação é um processo complexo que exige grande interação social, estoque de conhecimento acumulado, gestão específica e injeção de capital. Segundo W. Brian Arthur, em “The Nature of Technology”, as novas tecnologias
aparecem pela combinação de tecnologias já existentes e, portanto, pode-se dizer que as tecnologias existentes geram as novas tecnologias.
As novas tecnologias, depois de algum tempo, se tornam possíveis componentes - como se fossem tijolos - para a construção de tecnologias ainda mais novas. As tecnologias se criam por si mesmas e de si mesmas. É um modelo de evolução combinatória.
A evolução da tecnologia depende, também, e fundamentalmente, dos novos conhecimentos a respeito dos fenômenos naturais. É o conhecimento científico (que está ligado às ciências naturais) que embasa parte do desenvolvimento tecnológico, sendo o principal responsável pelas novas invenções.
A inovação tecnológica depende, portanto, das tecnologias existentes, das demandas sociais (uma vez que a tecnologia se caracteriza por atender a um mercado demandante e à cultura de um povo que exige maior qualidade e inovação dos produtos ofertados) e do estoque de conhecimentos científicos disponível.
Para entender e padronizar o que chamamos aqui de “inovações tecnológicas”, é preciso definir tecnologia. Uma definição possível e aceita é a elaborada pelo próprio Brian Arthur:
“Tecnologia é uma coleção de componentes e práticas disponíveis a uma cultura que têm o objetivo de atender a uma demanda humana. As tecnologias consistem de partes que compõem um sistema organizado de componentes, ou módulos. Neste sentido, tecnologia é uma forma de organizar e utilizar fenômenos para uso humano.”
Como aponta Brian, as demandas da sociedade criam exigências e mercados que estimulam o uso da tecnologia e a própria inovação tecnológica. Por isso, sociedades mais cultas e exigentes tendem a fazer com que novas tecnologias surjam com mais frequência em seu próprio benefício.
Quanto maior o estoque de tecnologia, mais provável é para uma sociedade gerar mais e novas tecnologias. O mesmo se dá com o domínio por parte da sociedade dos conhecimentos sobre a natureza.
Mecanismos que facilitem a comunicação entre os conhecimentos da natureza e os desenvolvedores de tecnologias, tanto quanto entre estes e as demandas sociais, são mecanismos fundamentais para a produção de novas tecnologias.
Se não houver uma forte e eficaz ligação entre estes segmentos, o desenvolvimento tecnológico é imensamente prejudicado. Não basta inflar com projetos e recursos os círculos relativos aos conhecimentos da natureza e às demandas sociais: é preciso alargar as conexões entre estes círculos e o estoque de tecnologia.
Não sendo a inovação tecnológica mera aplicação da ciência - uma vez que ela precisa não só do conhecimento científico, mas do próprio estoque de tecnologia existente, da demanda social, com seus aspectos econômicos e comerciais, e dos fluxos entre estes três componentes - investir somente em ciência não faz com que a geração de inovação prospere.
É na oxigenação permanente e na ligação eficaz entre os três componentes (conhecimentos da natureza, as demandas sociais e estoques de tecnologia) que se efetiva a geração da inovação.
A INOVAÇÃO NO BRASIL
O volume e a qualidade da inovação no Brasil têm sido motivo de preocupação e do desenvolvimento de vários programas para colocar o País em posição mais competitiva em relação ao mercado internacional.
A inovação deve ser um objetivo relevante da política industrial, tecnológica e de comércio exterior de qualquer país na medida em que as empresas que inovam dão uma contribuição maior para o seu desenvolvimento econômico. Tanto no Brasil como em outros países observa-se que as empresas inovadoras crescem mais e são mais bem-sucedidas do que as que não inovam.
Entretanto, a grande maioria das inovações no Brasil é nova para a firma, mas não para o mercado, pois predominam na economia brasileira processos de difusão de tecnologia: compra-se a tecnologia inovadora já pronta e repassa-se ao novo mercado, ou seja, a forma mais frequente de inovação é incentivada por aquisição de novas máquinas, ou da tecnologia incorporada que está contida em equipamentos prontos, como bens de capital, matérias primas intermediárias e componentes.
Entre as duas estratégias possíveis de inovação - inovar em produto, ou inovar em processo - já está estudado que a inovação de produto se mostra superior. Há, também, um elo mais positivo entre inovação de produto e crescimento do emprego.
Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), “Inovações, padrões tecnológicos e desempenho das firmas industriais brasileiras” (2005), aponta, por um lado, dois problemas inter-relacionados da indústria brasileira que são: a baixa taxa de inovação e a predominância, entre os inovadores, da inovação de processo.
As empresas brasileiras que inovavam e diferenciavam os produtos representavam somente 1,7% da indústria brasileira, mas eram responsáveis por 25,9% do faturamento industrial e por 13,2% do emprego gerado.
O fato de que as commodities primárias representavam 40% do total das exportações brasileiras, os produtos de baixa intensidade tecnológica representavam, aproximadamente, 18% da pauta e os produtos de média e alta intensidade tecnológica chegavam a um pouco mais de 30%, já eram reflexos da pouca inovação de produtos no Brasil.
Para uma comparação, é importante citar que, no mundo, 60% dos produtos exportados já eram de média e alta intensidade tecnológica e a participação de commodities na exportação representava apenas 13%.
Embora o Brasil tenha procurado, nos últimos anos, incentivar a inovação por meio de algumas políticas, as estruturas educacional, jurídica, tributária, econômica e empresarial não têm favorecido a comercialização competitiva, nacional e internacionalmente, de nossos produtos, que quase não são inovadores.
A expansão de mercados globais - com o aumento da concorrência internacional por bens e serviços em cenários de inovação contínua - provoca efeitos negativos crescentes na agregação de valor econômico e empregos especializados no Brasil.
Se o Brasil tem apresentado um fraco desempenho no que diz respeito à inovação, é preciso destacar que os engenheiros serão parte de vital importância para a melhoria desse quadro.
A INOVAÇÃO E AS ENGENHARIAS
O Brasil vem se projetando internacionalmente e seu desenvolvimento (e potencial de crescimento) permitiu que fosse incluído na sigla criada em 2002 em referência aos quatro maiores mercados emergentes (Brasil, Rússia, Índia e China) que caracterizou o grupo conhecido como BRIC.
No mundo real, há, no entanto, indicadores de sobra que colocam o Brasil abaixo da média dos demais países do BRIC, entre eles, o número de novos engenheiros formados por ano. Essa é uma má notícia diante do inegável fato de que a força da Engenharia em um país está estreitamente ligada à sua capacidade de inovação tecnológica e competitividade industrial.
Há vários anos, estudiosos das condições necessárias para o crescimento nacional se preocupam com o gargalo representado pela pequena proporção de estudantes de Engenharia nas matrículas de graduação do sistema nacional de ensino.
Acrescenta-se a essa realidade a alta evasão de alunos nos dois primeiros anos dos cursos de Engenharia e, consequentemente, a baixa quantidade de egressos, a modesta produção de trabalhos científicos com impacto internacional na área e o irrisório número de registros de patentes de inovação tecnológica e teremos a consciência de que a cultura da inovação no Brasil não é uma realidade.
Dos países do BRIC, o Brasil é o que menos forma engenheiros por ano. Apesar do crescimento recente ainda eram formados (pelo último Censo do MEC/INEP - 2009) somente 38 mil Engenheiros (com indicador de 20 engenheiros por 100.000 habitantes), enquanto a Índia formava 220 mil (sete vezes mais e com indicador de 18 engenheiros por 100.000 habitantes), a Rússia 190 mil (seis vezes mais e com indicador de 136 engenheiros por 100.000 habitantes) e a China 650 mil (dezessete vezes mais, com indicador de 50 engenheiros por 100.000 habitantes, incluindo os cursos de três anos).
Ainda que as populações destes países sejam diferentes, as discrepâncias ficam ainda mais palpáveis ao se comparar a percentagem de Engenheiros formados em relação ao total de concluintes no ensino superior.
Segundo a OECD, a média dos países é de 14%, sendo que no Japão essa percentagem é de 19% dos formados, na Coréia é 25% e na Rússia é de 18%. No Brasil só cerca de 5% dos concluintes estavam em 2009 nas áreas de Engenharia. Esse dado é considerado um bom indicador para analisar a vocação e o incentivo que cada país dá para a inovação tecnológica.
Embora estes números sejam aproximados, visto que o conceito e os critérios da formação do engenheiro - duração do curso, pertinência das especialidades para a inovação, etc. - não obedecem a critérios homogêneos nos diferentes países, o resultado final não deixa de ser a comprovação de que estamos atrasados, o que é preocupante para o Brasil.
Consequência direta dessa situação é a produção científica brasileira na área de Engenharia, que é muito inferior aos demais países do BRIC, realidade agravada pela deficiência da formação científica da média dos engenheiros brasileiros.
O mesmo ocorre no Brasil em relação às patentes. Os principais centros internacionais apontam registros de patentes brasileiras em patamar muito aquém dos demais países do BRIC. Conforme o WIPO Statistics Database de 2008, o Brasil detinha, em 2007, o registro de 397 patentes, contra 28.085 da Rússia (a maioria registrada na própria Rússia, somente 580 fora da Rússia), 5.206 da China e 2.808 da Índia.
Embora em alguns casos, questões de natureza comercial e de estratégia de negócios possam explicar a diminuição das patentes do Brasil em relação aos demais países, o importante é demonstrar que, mesmo a partir de uma interpretação cuidadosa, é óbvia a grande defasagem brasileira nesse indicador frente aos nossos principais competidores diretos.
Quando se faz uma projeção, levando-se em conta os dados nacionais a respeito da formação de engenheiros e sua correlação direta com esse grupo de indicadores de resultado, verifica-se a tendência de aumento dessa defasagem, o que se configurará em um gargalo de alta repercussão em vários outros setores da economia brasileira.
Em relação ao Índice de Competitividade Global do Fórum Econômico Mundial, revisto anualmente, a posição do Brasil vem se alterando da seguinte forma: 66° posição em 2006-2007 (entre 127 países), 72° em 2007-2008 (entre 131 países), 64° em 2008-2009 (em 131 países). A conclusão do estudo é que o Brasil se manteve mais ou menos estagnado. No Índice de Prontidão Tecnológica do Fórum Econômico Mundial, o Brasil
ocupava a 59° posição entre 175 países.
Entretanto, o Brasil alcançou o status, também em 2009, de 8ª economia do mundo, de acordo com a consultoria britânica CEBR, graças aos produtos primários e às commodities, o que trará repercussões no nosso desenvolvimento futuro.
A FORMAÇÃO DO ENGENHEIRO E A INOVAÇÃO
Engenheiros e profissionais da área tecnológica são formados para atender a demandas da sociedade onde estes conhecimentos e práticas são indispensáveis.
Na antiguidade, as técnicas artesanais eram reservadas aos escravos, enquanto os cidadãos dedicavam-se ao desenvolvimento do conhecimento mais abstrato, ao treinamento para a guerra, ou para o esporte e o lazer.
A habilidade do artesão, que era chamada techné na Grécia antiga, não se baseava em uma metodologia científica, mas era alicerçada na experiência, na melhoria dos processos e no uso de materiais gerados por cada artesão que transmitia esses
ensinamentos aos mais jovens.
Os estudos das ideias de Platão, ou da natureza e da política por Aristóteles ou, ainda, da retórica e da dialética pelos sofistas não contemplavam a techné, uma vez que a utilidade prática e materialista do conhecimento não era objeto de seus estudos.
Até a Idade Média a técnica ainda não era considerada como uma atividade humana socialmente respeitável. Sua evolução se dava, ainda e em grande parte, por tentativa e erro.
Com o Renascimento e o Iluminismo, a importância da busca da explicação racional para todos os fenômenos e atividades fez com que as técnicas, até então totalmente empíricas, fossem analisadas, metodologicamente, à luz dos conhecimentos científicos da época.
Surge daí a tecnologia, isto é, a techné (técnica) aliada ao logos (razão). Já não bastava, portanto, saber que uma ponte construída de certa maneira não cairia, mas sim a razão pela qual ela se sustentava, o que permitia criar modificações caso fossem alteradas as condições do terreno, dos materiais de construção ou da carga a ser suportada.
Por outro lado, é importante ressaltar a criatividade dos construtores antigos, que eram capazes de inovar e buscar novas soluções para desafios emergentes mesmo sem contar com uma base científica que respaldasse este progresso.
A tecnologia, desenvolvida muitas vezes empiricamente, foi posteriormente justificada pela ciência, assim como novas tecnologias provocaram o desenvolvimento da ciência, principalmente nas áreas experimentais. Desde o Renascimento há um importante diálogo entre a ciência e a tecnologia. Na verdade, a grande diferença entre a ciência e a tecnologia está relacionada ao seu objetivo: a tecnologia busca a utilidade e a ciência, o puro conhecimento.
Resumindo, a tecnologia poderia ser entendida como o conhecimento aplicado à criação de utilidades. Por esta razão, a tecnologia não deve ser entendida como ciência aplicada, uma vez que ela pode avançar onde a ciência estacionou e, até mesmo, criar desafios para a ciência do momento. Ciência e tecnologia se desenvolvem em conjunto, mantendo uma interação dialética de grande importância para ambas.
A tecnologia não se resume ao domínio de técnicas, ela envolve conhecimentos e atributos que estão nas pessoas. Por isso a cultura da inovação tecnológica não pode ser simplesmente transferida em um processo comercial. Neste sentido, não há,
verdadeiramente, na maioria dos processos chamados de “transferência de tecnologia” a transferência da capacidade de criar ou inovar, mas somente o ensinamento de uma técnica!
Por essa razão, os países precisam desenvolver internamente sua base cultural de inovação tecnológica, mas isso não é fácil, nem rápido. É um processo estratégico, demorado e precisa de consistência e vontade política, porque vai exigir esforços desde a Educação Básica até a formação dos profissionais de mais alto nível, além de recursos financeiros, de um sistema jurídico eficiente e de políticas públicas adequadas.
Neste contexto, para que uma política nacional de desenvolvimento de inovação tecnológica possa ser bem sucedida, inclusive - e principalmente - com impacto comercial, um grande desafio se impõe: avaliar e direcionar a formação dos Engenheiros para que possam ser um pilar adequado e competente de sustentação desta política.
A ATUAÇÃO DO ENGENHEIRO NO BRASIL
Os profissionais da área tecnológica, em especial os engenheiros, atuam em um largo espectro de atividades que vão desde o chamado chão de fábrica (onde resolvem problemas cotidianos e estão sempre procurando aprimorar os produtos, ou aumentar a eficiência dos processos) até as funções gerenciais para as quais a formação tecnológica - com base matemática e capacidade de análises quantitativas, que associa formação científica e visão pragmática dos problemas à uma grande capacidade de construir e analisar modelos matemáticos - é requisito que faz dos engenheiros administradores
requisitados.
Por isso, como ocorre em outros países (nos EUA, por exemplo), somente um terço dos engenheiros brasileiros atua diretamente na área de formação, o que o torna um profissional polivalente. Com isso, muitos se empregam em outros ramos da economia e parte expressiva segue a carreira docente nas instituições de ensino superior. Estes docentes, na maioria das vezes, não mantêm outros vínculos empregatícios, ou atividades empresariais ligadas à Engenharia.
A falta de vivência no mercado dos docentes que optaram pela carreira acadêmica em dedicação exclusiva e tempo integral é mais aguda quando o professor obtém titulação pós-graduada, valorizada nos processos de seleção para contratação e na promoção na carreira. Por isso, os docentes tendem a priorizar as atividades de ensino e pesquisa em detrimento da atividade profissional, restringindo seus conhecimentos ao círculo da academia e à discussão entre seus pares.
Não seria justo, no entanto, colocar a responsabilidade desta situação no docente engenheiro, uma vez que as empresas brasileiras, ou aqui radicadas, não valorizam a formação mais ampla dos profissionais que recruta para seus quadros, ou seja, não busca mestres e doutores como um diferencial de seleção.
A razão talvez possa ser uma falta de vocação destas empresas para a inovação e a competitividade internacional, situação em que profissionais com formação mais completa e aprofundada academicamente é recomendável, em geral, como um
diferencial.
Os motivos desta timidez das nossas empresas em relação à competitividade internacional e à inovação de produtos e processos para o mercado são muitos e também não se encontram somente nelas próprias. É um assunto amplo que tem sido bastante discutido.
O profissional mais titulado, o doutor, preparado ao longo de sua longa formação para a pesquisa científica e tecnológica altamente especializada é, em todo o mundo, uma importante alavanca para o desenvolvimento das tecnologias sofisticadas baseadas em processos inovadores de P&D nas empresas.
O fato de que esse profissional é considerado extremamente importante nas empresas dos países tecnologicamente mais desenvolvidos pode ser comprovado pelas estatísticas. Nos EUA, 80% dos pesquisadores estão empregados nas empresas privadas (somente 15% estão em instituições de ensino superior), enquanto no Brasil este número não chega a 27%. No Japão e na Coréia 75%, dos pesquisadores estão nas empresas, sendo que, no Japão, somente 19% estão em instituições de ensino superior (IES) e na Coréia somente 15%, como nos EUA.
Em 2010, havia no Brasil cerca de 87 mil doutores no setor de P&D, 5.000 em órgãos governamentais e somente 1.830 nas empresas e instituições privadas sem fins lucrativos (somente 2% do total), sendo que 80 mil trabalhavam nas instituições de ensino superior! Nos EUA, 60% dos Engenheiros doutores estão nas empresas, os 40% restantes é estão ligados às universidades e a órgãos de governo.
Enquanto as empresas brasileiras (mesmo as que possuem vocação mais inovadora) não priorizam a contratação de mestres e doutores, as nossas instituições de ensino superior são pressionadas pelas avaliações governamentais para crescer constantemente a titulação do corpo docente, criando um círculo vicioso para um país que ainda precisa crescer muito o acesso ao ensino superior.
Estes dois fatos estão levando as IES a comporem seus corpos docentes dos cursos de Engenharia com base em profissionais bem titulados, mas, muitas vezes, sem praticamente apresentarem experiência profissional no mercado de trabalho em Engenharia, o que pode prejudicar, em maior ou menor grau, o próprio ensino de Engenharia por dificultar a tão necessária conexão entre a teoria e a prática.
Como decorrência deste mesmo fato, os mestres e doutores engenheiros brasileiros não estão levando diretamente ao setor produtivo seus conhecimentos. É outra fraqueza reconhecida no nosso sistema de C&T (mais notoriamente de P&D).
Aos profissionais formados restam duas alternativas: ingressar e permanecer na academia e, para isso, será preciso continuar sua formação para o nível de mestrado e doutorado (principalmente nas instituições públicas), para enveredar na pesquisa científica e ensinar em dedicação integral, sem exercer efetivamente a profissão de engenheiro escolhida, ou afastar-se da carreira acadêmica, ingressando em um mercado de trabalho que não valoriza e muito menos apóia a formação pós-graduada de seus profissionais de nível superior.
Quando um engenheiro do mercado é contratado em uma IES, sem atender ao exposto acima, é dando, quando muito, algumas aulas em caráter precário, recebendo um salário como horista, de valor inicial bem menor do que os docentes titulados, uma vez que a remuneração nas IES está atrelada à titulação do professor.
Como unir duas características que em nosso país estão andando, infelizmente, na contramão? Por que para ter um Engenheiro no mercado não se valoriza a titulação e nas IES não se valoriza a experiência no mercado?
A resposta mais lógica e simples (mas infelizmente pouco comum por aqui) é que o corpo docente ideal das escolas de Engenharia pudesse ser composto por professores que aliassem a titulação stricto sensu com a experiência do mercado de trabalho já na contratação, ou pudessem, estando um período significativo ativo no mercado, se titular e regressar às IES para trazer a experiência prática aliada a um ótimo conhecimento teórico, como ocorre nas nações mais competitivas.
Nas melhores escolas de Engenharia dos EUA os professores têm o doutorado como formação quase universal ao qual aliam décadas de experiências importantes em empresas de qualidade. No Brasil, estes casos ainda são, infelizmente, poucos.
É importante, também, recordar que a pós-graduação stricto sensu só foi institucionalizada no Brasil na década de 70. Portanto, profissionais mais antigos não viveram o período em que a pós-graduação era uma opção ampla, importante e disponível (principalmente nos estados menos desenvolvidos) para a sua evolução profissional e a exigência de titulação pós-graduada para estes professores parece exagerada e injusta, pois desconsidera toda a sua experiência profissional.
A permanente atividade (e atualização) profissional dos engenheiros docentes tem sido uma preocupação dos gestores universitários em todo o mundo, preocupados com a formação sólida e, ao mesmo tempo, prática dos egressos de seus cursos de Engenharia.
Há duas décadas, o professor da Universidade de Massachusetts Ernest A. Lynton, estudioso americano do sistema universitário daquele país defendia uma idéia de grande importância, pouco conhecida e adotada em nosso país.
Lynton sugeria a implantação de escritórios de Engenharia dentro das universidades para manter os professores em tempo integral, estimulando-os a exercerem suas atividades profissionais em contato com os colegas, estudantes e funcionários da própria IES, com regras de atuação e uma política de remuneração justa para eles e para o que as IES efetivamente desembolsam com seus projetos.
No Brasil, atualmente e até certo ponto, as fundações ligadas às universidades têm procurado desempenhar este papel embora, às vezes, com distorções que geram polêmicas de diferentes matizes.
Seria importante que estas atividades, se consideradas legítimas pelas IES, fossem regulamentadas com clareza, seus custos e benefícios transparentes e bem acompanhados para diminuir o fosso existente entre o que se ensina e o que se pratica no mercado.
ENGENHEIROS ESPECIALISTAS, MAS MÉDICOS E ADVOGADOS GENERALISTAS?
A rapidez do desenvolvimento tecnológico ocorrido no século 20 (e que contamina de forma crescente o início do século XXI) acaba por tornar muitas tecnologias obsoletas em pouco tempo.
Inovar é superar as contradições existentes entre o que se precisa ou se deseja e os obstáculos que impedem esta realização. Uma das ações necessárias para enfrentar o desafio da inovação é rever a formação do engenheiro para as próximas décadas.
A formação atual (e tradicional) dos engenheiros no Brasil tem especializado muito cedo o estudante, e consequentemente, o profissional. Há centenas, e mesmo que se diminua, ainda haverá dezenas de especialidades de bacharelados em Engenharia no Brasil.
É sabido que as tecnologias se tornam rapidamente obsoletas e que muitas delas aprendidas durante um curso de Engenharia já não serão mais adotadas quando o profissional se formar. Por isso, para poder conhecer e utilizar o estoque de tecnologia o Engenheiro deveria ser capaz de associar conhecimentos de várias especialidades diferentes para associá-las de forma a encontrar as soluções desejadas para os problemas identificados.
A especialização prematura está, claramente, em conflito com a visão generalista exigida dos novos profissionais. Seria mais prudente dotá-los de uma formação básica sólida, que demora mais para se tornar obsoleta, fazê-los conhecer os problemas e as ferramentas mais importantes da Engenharia, ao lado do desenvolvimento de características pessoais cada vez mais importantes para as novas funções que os engenheiros passam a desempenhar, fazê-los adquirir uma visão do mundo e das necessidades da sociedade, saber estimar a viabilidade comercial de um produto e dos custos de um projeto, pois esses conhecimentos não dependem especificamente de uma tecnologia transitória e mutável.
Ao contrário de profissões como Medicina e Direito, um engenheiro no Brasil precisa decidir às vezes no processo seletivo do curso (na maioria dos casos tratando-se de jovens recém saídos da adolescência) se desejam ser engenheiros civis, elétricos, mecânicos, etc., ou, até subáreas como Eletrônica, Mecatrônica, Petróleo, ou Estradas.
Já o médico ou o advogado recebem uma formação abrangente sobre as diferentes atividades da profissão para só depois, se assim desejarem, se especializarão formalmente na Medicina por meio da Residência Médica, por exemplo, e, informalmente, ou não no Direito já que não há necessidade de se fazer uma especialização em Direito Tributário para dirigir um escritório nesta área.
É possível que a especialização excessiva e prematura dos engenheiros brasileiros decorra da crença de que eles já devam sair direcionados da graduação para empregos específicos, para imediatamente se inserir na cadeia produtiva da empresa e atender exatamente às necessidades do mercado empregador que não quer gastar tempo e dinheiro para adequar seus profissionais de nível superior às especificidades de seu ramo de atuação.
No entanto, este não é, historicamente, o papel da universidade e não deveria ser um desejo das empresas que contratam profissionais que podem se tornar, rapidamente, inoperantes diante das novas tecnologias por falta de capacidade de migração ou adaptação do que aprendeu ao que de novo se apresenta.
Não é papel da IES formar um engenheiro químico especializado em tintas. A empresa de tintas terá que capacitar seu Engenheiro para trabalhar com tintas e sua formação sólida em química permitirá que ele, rapidamente, além de aprender as especificidades do setor, saberá encontrar, com seus conhecimentos gerais e sólidos, novas soluções para os problemas que decorrem da química e atuam nos processos que também estão ligados à fabricação de tintas.
O papel das universidades, principalmente em seus cursos de graduação, é formar o profissional de nível superior com uma base sólida de tal forma que ele seja capaz de transitar amplamente em sua área do conhecimento. Por que esta área não seria, por exemplo, a própria Engenharia? Por isso, a Resolução nº 48/76 dividia a Engenharia em apenas seis grandes áreas (que até já não seriam demasiadas, se pensarmos nos médicos e dos advogados?).
Não se trata, obviamente, de enxugar nomenclaturas, como ocorreu com outras profissões, mas as atribuições e consequentemente, o perfil do formado. Mudando o perfil do formado, há que se mudar a sua formação.
Neste caso, a exemplo do médico e do advogado, as atribuições dos engenheiros, em geral, deveriam ser ampliadas e, também, generalizadas, o que aumentaria, na mesma proporção, sua autonomia de atuação e sua responsabilidade em relação aos resultados auferidos e eventuais erros profissionais cometidos.
O PROFISSIONAL E O ENGENHEIRO DO FUTURO
Além do problema do baixo número de engenheiros formados no Brasil e da excessiva e precoce especialização, a própria qualidade dos cursos brasileiros de Engenharia tem sido questionada, com algumas e honrosas exceções.
Muitos defendem que isso é reflexo da má qualidade da Educação Básica brasileira. Entretanto, mesmo que a razão da má qualidade dos alunos ingressantes tenha origem nos níveis anteriores da educação, não é possível ignorar o problema. A análise do problema da qualidade dos formados em Engenharia exige uma visão mais ampla, mesmo porque ele não se esgota nas condições do aluno ingressante e é preciso, acima de tudo, enfrentá-lo dentro da realidade da IES que, afinal, acaba por aceitar um aluno como calouro.
O ensino de Engenharia no Brasil (e não só no Brasil) sofre de dois males que prejudicam a participação mais efetiva das Engenharias em projetos de inovação tecnológica com conteúdo científico.
Em primeiro lugar, as disciplinas das áreas básicas não são ensinadas, em geral, com a visão voltada ao objetivo das áreas profissionais (como é a própria Engenharia), mas como se estivessem formando cientistas para atuarem nas áreas básicas, o que afasta e desmotiva os estudantes das áreas profissionais, como já afirmava Ortega y Gasset, nos anos 30, em seu livro “A Missão da Universidade”.
Na verdade, dizia o filósofo espanhol, o estudante das profissões liberais precisa saber fazer uso dos mais modernos conhecimentos científicos relativos à sua área de atuação para poder exercer plenamente e com competência sua profissão, mas ele não precisa e nem deve ser submetido a uma educação voltada à formação de pesquisador em áreas básicas, que ele não pretende e não escolheu ser quando se candidatou a um curso de Engenharia. Em resumo: ensina-se física como se os Engenheiros fossem trabalhar na produção de novos conhecimentos em física, o mesmo ocorrendo com a matemática, a
química etc.
Em segundo lugar, e, infelizmente de forma complementar ao primeiro, os professores do ciclo profissional, na maioria das vezes, não trabalham na relação das disciplinas aplicadas com as áreas básicas que as justificam, fazendo com que os estudantes não assimilem a relação entre a teoria ensinada e a prática a ser desenvolvida, até porque esquecem os fundamentos científicos da Engenharia.
Como a maioria dos professores tem pouca experiência profissional ou, quando a tem, não se aprofundou na teoria que embasa a prática, eles sentem dificuldades em unir os conhecimentos científicos e tecnológicos com seus conhecimentos práticos da Engenharia.
Por essas razões, além de aumentar o número de engenheiros brasileiros formados nas diversas áreas, seria muito importante rever o ensino de Engenharia e estimular a formação dos professores de Engenharia em novos programas de capacitação a partir de novos paradigmas.
Para formação de engenheiros que estão atualmente no mercado de trabalho como verdadeiros e qualificados professores de Engenharia - e que não desejem realizar a pesquisa científica exigida nos mestrados acadêmicos - os Mestrados Profissionais em Docência da Engenharia podem ser excelentes instrumentos para se exercitar as habilidades de professor, unindo a teoria com a sua prática e ajudando a compreender melhor as características dos estudantes de Engenharia e sua forma de adquirir novos conhecimentos.
Para exemplificar a necessidade premente de repensarmos o ensino de Engenharia, pode-se citar os estudos de Richard Felder, que adaptou os modelos dos tipos psicológicos para as formas típicas de aprendizado, cruzando diferentes características e tendências dos estudantes de engenharia em suas diferentes dimensões.
Baseado no trabalho de Myers e Briggs (que introduziram, a partir de trabalhos de Jung, a teoria dos tipos de personalidade e que foram, posteriormente, introduzidos na educação para ajudar os processos de aprendizagem identificando o tipo psicológico dos estudantes e adaptando estratégias diferenciadas de ensino para cada tipo), Felder  definiu as formas de compreensão, a recepção da informação, o comportamento, o desenvolvimento dos conteúdos e a organização mental se caracterizam por cinco dimensões, cada com duas posições opostas, que se combinam, esquematicamente, desta forma:
sensorial / intuitiva
visual / verbal
ativa / reflexiva
indutiva / dedutiva
sequencial / global
Qualquer professor experiente sente o quanto de verdade está expressa na análise completa de Richard Felder. No entanto, poucas são as instituições de ensino e professores que utilizam este tipo de análise para aperfeiçoar os processos de aprendizagem, adaptando-os às características dos estudantes, ou utilizando-os para a orientação profissional dos estudantes.
A questão é ainda mais relevante na Engenharia do que em outras áreas porque a tendência da maioria dos alunos de Engenharia, segundo Felder, é ser sensorial, visual, ativa, indutiva e, os melhores, muitas vezes globais enquanto os professores adotam um método de ensino de Engenharia intuitivo, verbal, reflexivo, dedutivo e sequencial.
Nossos engenheiros devem ser capazes de desempenhar importantes funções nos centros de P&D públicos ou privados, nos parques e pólos tecnológicos e nas incubadoras de empresas, tanto atuando como técnicos, como na gestão da inovação e na liderança empreendedora.
A Unesco, no final da década passada apresentou, a partir dos resultados de estudos que agregaram milhares de especialistas, as recomendações para o perfil geral do profissional do futuro, que deveria ter as seguintes características:
Ser flexível;
Ser capaz de lidar com as incertezas;
Ser capaz e disposto a contribuir para a inovação e ser criativo;
Estar interessado e ser capaz de aprender ao longo de toda a vida;
Ter adquirido sensibilidade social e aptidões para a comunicação;
Ser capaz de trabalhar em equipe e desejar assumir responsabilidades;
Tornar-se empreendedor;
Preparar-se para o mundo do mercado de trabalho internacionalizado; por meio do conhecimento das diferentes culturas;
Ser versátil em aptidões genéricas multidisciplinar; e
Ter noções de áreas do conhecimento que formam a base de várias habilidades bprofissionais, por exemplo, das novas tecnologias.
Complementarmente:
Conhecimento de línguas estrangeiras e 
Disciplinas que tratem de assuntos internacionais, como direito internacional, ou comércio internacional.
Esta visão não trata de uma profissão específica, mas não deixa de ser válida para os profissionais em geral. Isto pode ser verificado nos estudos do especialista Joseph A. Bordogna, que apontam para as necessidades específicas a serem atendidas pela próxima geração de engenheiros, que se resume na necessidade de desenvolver a inovação pela integração e para isso seria necessário incluir na sua formação o domínio de questões ligadas a sistemas complexos, tais como:
Sustentabilidade - meio ambiente e uso eficiente da energia e materiais (sistemas renováveis);
Micro e nano sistemas - simultaneamente pequenos em tamanho e enormes em capacidade (indispensáveis na maioria dos novos produtos);
Mega sistemas - extraordinariamente grandes e complexos (perigosos, técnica e financeiramente);
Sistemas vivos - sistemas inteligentes que aprendem com o meio ambiente, ajustam a operação e se consertam (uma dimensão além da Bioengenharia).
Além disso, o engenheiro precisará ser capaz de transitar em várias disciplinas e campos, fazendo as conexões necessárias a uma visão mais profunda e criativa e fazer as coisas acontecerem. Só assim terão um valor agregado suficiente para competir no mercado global!
Todos reconhecem que habilidades em matemática e ciências são necessárias para o sucesso profissional do engenheiro. Além disso, o estudante de Engenharia transitar no núcleo das disciplinas ligadas às ciências da Engenharia, para desenvolver o entusiasmo de enfrentar um problema aberto e criar algo que não existia antes. Neste sentido, o engenheiro do século XXI deverá, como afirma Bordogna:
Projetar - cumprir com os objetivos de segurança, confiabilidade, meio ambiente, custos, operacionalidade e manutenção;
Desenvolver produtos;
Criar, operar e manter sistemas complexos;
Entender as bases físicas, além dos contextos econômicos, industriais, sociais,políticos e globais nos quais a Engenharia é praticada;
Entender e participar de processos de pesquisa; e 
Ter habilidades intelectuais capazes de permitir um aprendizado contínuo ao longo da vida.
É preciso, portanto, também aproveitar o estoque de conhecimento existente (inclusive de outras áreas) e as novas tecnologias (o que está muito distante de acontecer em todos os níveis de ensino no Brasil) para inovar no ensino superior e, mais especificamente, no ensino das Engenharias!
CONCLUSÕES
Para que o Brasil se insira no contexto das nações inovadoras será necessário ampliar o número de Engenheiros com formação pós-graduada principalmente junto às empresas. O baixo número de engenheiros com formação pós-graduada nas empresas não reduz somente o poder de inovação do setor produtivo nacional, mas prejudica também a formação dos novos engenheiros, uma vez os alunos de Engenharia têm, em geral, pouca convivência com docentes que aliem a ampla formação acadêmica com grande experiência no mercado de trabalho, já que grande parte do corpo docente das Escolas de Engenharia seguiu da graduação para a pós-graduação sem viver a experiência do exercício profissional fora dos muros da universidade. Além disso, será preciso reformular os bacharelados de Engenharia atendendo aos estudos internacionais ligados ao ensino em geral, e à Engenharia em particular, que apontam para a prevalência de uma formação científica mais forte, uma visão integradora das diferentes áreas de atuação do engenheiro, sem a excessiva e precoce especialização que se verifica hoje no Brasil, bem como a capacidade de conciliar as necessidades da sociedade com a sustentabilidade e a preservação do meio ambiente.

Senhor do carisma pop


MÔNICA MANIR
Era o X Congresso dos Metalúrgicos, 1979, Poços de Caldas, e o João Bittar ali, na porta do banheiro do hotel, na cola do Lula. Diz que o Lula saiu do banheiro e, entre irritado e desafiador, levantou a blusa: "Quer fotografar o meu umbigo também?" Estava tudo engatilhado, Bittar não pensou duas vezes. Clicou a foto mais importante da sua vida. Anos depois ele diria que, se Lula escorregasse numa casca de banana, o fotografaria do mesmo jeito. Bittar morreu em dezembro do ano passado e o ex-presidente continua surfando no próprio carisma. É hoje tema de escola de samba e articulador do PT na campanha para prefeito de São Paulo, que esquenta forte os tamborins.
Lula 'está fazendo um movimento de renovação que os outros partidos não fizeram’, diz Ab’Sáber - Dida Sampaio/AE
Dida Sampaio/AE
Lula 'está fazendo um movimento de renovação que os outros partidos não fizeram’, diz Ab’Sáber
Num primeiro momento, o psicanalista Tales Ab’Sáber achou a foto "muito comercial" para ser capa do seu livro. Num segundo, entendeu a proposta do editor. Lula apontando para o umbigo apontava para dentro do livro também e tinha a ver com o mergulho que esse professor de filosofia da psicanálise da Unifesp fazia na personalidade do ex-presidente. Mais ainda: "É uma foto icônica, uma imagem de autocondescendência e narcisismo, muito narcisismo, de resto que nem o do Fernando Henrique". É disso que Tales trata nessa entrevista: do lançamento do livro Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica, da Hedra, em que ele pensa a figura desse homem público com poderes de mercadoria; dos efeitos da quimioterapia no redesenho desse produto; da oposição brasileira aparentemente perdida num vazio ideológico; e da falta de crítica à homogeneidade que está aí. "A arte e o pensamento estão mortos", sentencia, arranhando a barba.
Estado: Lula tema da Gaviões da Fiel é a representação máxima de seu carisma pop?
Tales Ab’Sáber: Já faz muito tempo que as escolas de samba puxam uma asa para o discurso oficial, às vezes de forma vendida, às vezes de forma comprada. Já teve escola fazendo o Maranhão, que era um jeito paralelo de falar do José Sarney. É um movimento das escolas de tentar se colocar à altura dos poderes da sociedade. Então não surpreende que uma delas eleja o Lula como tema, considerando o sucesso e a intensidade recente do personagem. Agora, é claro que existe um vínculo muito especial e pouco pesquisado do Lula com o Corinthians.
Estado: O que foi pouco pesquisado?
Tales Ab’Sáber: A cidade tinha um estádio pronto, um estádio tradicional, um estádio grande, um estádio bom. Como isso foi abandonado para construir do zero um outro estádio? É evidente que é uma decisão econômica, de bons negócios, e isso fala muito do nosso momento. Se é racional, se não é racional, todas as discussões desaparecem diante do fato de que algumas pessoas vão enriquecer com isso. É uma história mal contada. No futuro a gente vai saber como é que o presidente, de algum modo, teve uma agendinha pro Corinthians. Isso está sendo coroado agora, no carnaval.
Estado: Em que medida a falta de barba e talvez um prejuízo na voz afetam o carisma do ex-presidente?
Tales Ab’Sáber: Acho que, no Brasil, houve uma mudança do nível do carisma. Ele funciona agora como uma marca, um brand forte, tal qual a Coca-Cola. Funciona sozinho, não precisa de esforço para se reproduzir. O governo Lula e as forças que se congregaram em volta acabaram por transmutar a posição de um carisma pessoal, popular, para um carisma midiático, algo semelhante à propaganda. Se houver uma perda significativa na voz, isso é muito sério pro Lula. Sua voz é uma singularidade do seu corpo. Agora barba, signos assim, podem ser perfeitamente redesenhados, como se redesenha uma mercadoria de ponta, sem perder nada. O pacto desejante ao redor dele é muito grande.
Estado: Só por causa do carisma?
Tales Ab’Sáber: Não só. É também pela facilidade de conciliar contradições, de colocar na mesa inimigos que não se relacionariam em nenhum outro lugar. Lula é o conciliador da direita com a esquerda, o popular com o capital. Essa figura política é muito importante, esse lugar ele não perde. O mensalão foi, paradoxalmente, o grande golpe do acaso a favor do Lula. Aquela foi uma crise muito grave, botou o governo em risco, mas acabou por diminuir a potência do PT e liberar o poder do seu líder, que era o presidente. Ele precisava ficar protegido e, ao mesmo tempo, negociar uma possível anistia para o mensalão. Um ano e meio antes, Lula era uma figura simbólica. Com a queda do José Dirceu e toda a estrutura do partido, entrou como articulador do seu próprio governo.
Estado: A crise econômica global ajudou também.
Tales Ab’Sáber: Sim, houve uma mudança do significante que vem do todo. O capitalismo regrediu e o Brasil continuou na mesma. Podia ter acontecido antes ou depois, embora não tenha sido por acaso o fato de estarmos protegidos nesse cenário. O sistema financeiro era forte; a China era um guarda-chuva para o País porque comprava e compra grande parte dos nossos produtos; e íamos vender petróleo. O capitalismo está regredindo agora, mas daqui a cinco anos pode crescer pelo Brasil. Isso é a estrela do Lula. Ele tem sorte para que todas essas coisas aconteçam para ele.
Estado: Ao mesmo tempo, tentou três vezes a Presidência e não conseguiu. A estrela ainda não estava no ponto?
Tales Ab’Sáber: O que permitiu ao PT chegar ao poder foi a adesão aos parâmetros do capitalismo contemporâneo. Com isso ele ocupou as funções históricas do PSDB, cuja base social, o capitalismo financeiro brasileiro, aderiu ao projeto petista. Além disso o PT agregou, por meio do Lula, a ideia de que a grande massa de excluídos brasileiros está incluída via mercado. Lula conseguiu um pacto de aceitação da classe trabalhadora da gestão capitalista da sua existência. Para tanto, as pessoas precisavam acreditar que estavam ganhando algo, mesmo que fosse pouco mais do que ganhavam. A integração é simbólica. Aí está o carisma no sentido mais forte. As pessoas acreditavam que estavam num processo de integração por amor a ele. Do ponto de vista crítico, essa integração é mínima. A vida dos brasileiros continua horrorosa, as pessoas continuam acordando às 4 da manhã para pegar um ônibus lotado, para ganhar muito pouco, para não ter perspectiva alguma de educação, para morar em lugares horríveis. Mas todas essas mazelas estão suspensas por um horizonte de que está acontecendo alguma coisa. Tem um psicanalista, o Donald Winnicott, que diz que a mãe precisa ser suficientemente boa para o bebê. Ela não é infinitamente boa, nem perfeitamente boa. Ela é boa o suficiente no trabalho difícil de ajudar o filho a crescer. Poderíamos dizer que o governo Lula foi suficientemente bom para uma integração capitalista brasileira. Bom o suficiente. Nem bom demais, nem bom de menos. Isso é raro no Brasil. Essa é a obra de Lula, mais do que o Bolsa-Família.
Estado: O Obama, quando eleito, tinha uma popularidade altíssima, que regrediu nos últimos tempos. Foi apenas o acaso da crise do capitalismo do mundo?
Tales Ab’Sáber: Não dá para comparar o estágio atual de desenvolvimento dos dois países nem sua estrutura política. O Brasil inventou esse presidencialismo de coalizão, que tende a trazer todos os pequenos partidos e os de centro para dentro do governo. O PT era fortemente crítico a esse jogo fisiológico da política brasileira. Ele viria para modernizar e racionalizar isso daí. Cedeu em toda a linha, cedeu à tradição brasileira.
Estado: E continua cedendo, aceitando uma maior proximidade com o PSD?
Tales Ab’Sáber: O PSD quer o poder, porque esses partidos são partidos de poder. É muito diferente dos EUA. Lá o Obama enfrenta uma oposição ferrenha, irracional, antissocial, que chega a ser delirante. E, nessa luta ferrenha do partidarismo, o Obama perdeu força porque não conseguiu operar bem essa linha. Lá é branco e preto, lá tem que vencer o inimigo. Ele não conseguiu forças pra isso, então congelou o governo por um bom tempo. Só que os americanos são muito pragmáticos. Querem que o Obama faça, é responsabilidade dele achar um modo de resolver isso. Aqui quase toda a oposição é a favor do governo.
Estado: Como avalia o momento do PSDB, com a indefinição quanto às prévias para escolher um candidato à prefeitura de São Paulo?
Tales Ab’Sáber: Essa insolidez do PSDB tem origem lá trás, quando as bases sociais do PSDB migraram para o projeto petista-lulista. Isso ficou claro quando banqueiros vieram do primeiro para o segundo turno dizendo que, para eles, tanto fazia a vitória do Lula ou do Alckmin, que não importava mais o teatrinho do passado em relação ao PT. Importava a eficácia do partido em mobilizar o capitalismo contemporâneo. Ali o PSDB acabou. O PSDB nunca teve enraizamento social ligado a movimentos sociais, não conseguiu se infiltrar na federação como o PMDB. O PSDB era o partido que modernizaria o capitalismo brasileiro e que serviria como tampão para evitar a chegada ao poder do PT. Como o PT virou o horizonte de modernização do capitalismo, a necessidade política do PSDB se desfez. Hoje o PSDB é um monte de cacique sem estrutura, sem força política, lutando para ver se se sustenta como um símbolo vazio.
Estado: A candidatura de José Serra poderia reverter esse processo?
Tales Ab’Sáber: Olha, daria para fazer um livro sobre o Serra também. Neste momento, o Serra precisa assumir que é uma liderança importante e desarticuladora. Sempre foi. É uma tendência autoritária dele se impor a todos os debates. O que o Lula tem de agregador, ele tem de ataque às ligações. Ao mesmo tempo, é o herdeiro da confiança da elite conservadora paulistana, que agora não tem objeto em que depositar sua esperança a não ser ele. De algum modo, o PSDB está refém do Serra. O partido não tem alternativa, não dá para vir com o neto do Mario Covas, que é um moleque. É muito patética essa tentativa de construir um Chalita na última hora.
Estado: Falando em Gabriel Chalita, como classificar o carisma dele?
Tales Ab’Sáber: Esse é um grande sedutor. A carreira dele é a construção de mecanismos de sedução. O Chalita era um professor do Colégio Santa Cruz quando tentou ser vereador. Depois foi professor da PUC, onde quase virou reitor. É um demagogo, mas um neodemagogo, um demagogo pós-moderno. O Lula tem carisma, mas sempre representou forças reais, como representava Getúlio Vargas. O suicídio do Getúlio foi uma ação carismática com um gesto sobre o próprio corpo. Mesmo que sobre a morte, ele barrou o processo político que estava acontecendo. E aí a gente vê o tipo de compromisso que o Max Weber fala que o líder carismático tem. Ele empenha sua existência, chama o jogo para si, é o cara. E o Chalita? É um tipo Jânio, só a sua própria voz.
Estado: Por que ele seduz?
Tales Ab’Sáber: O Chalita é o menininho falso brilhante de classe média. Ele escreveu 60 livros. Seria um gênio, se um livro dele prestasse. Foi secretário de Educação do governo Alckmin, uma barbaridade. Um moleque sem lastro técnico nenhum dirigindo a Universidade de São Paulo, a Unicamp, e não houve reação a isso. Aí você vê como essas figuras conservadoras são fortes em São Paulo. Ele é uma mistura de radialista, animador e falso intelectual, que no entanto funciona perfeitamente. O Lula tem muito medo dele. O Lula vê que a demagogia dele é eficaz.
Estado: E que símbolo é o Fernando Henrique?
Tales Ab’Sáber: O Fernando Henrique foi negado pelo tucanato durante todo o governo Lula, não por acaso. No fim do governo Fernando Henrique, ele era um passivo muito grande para o PSDB, se configurando uma figura antipopular porque o País ficou anos parado, sem crescimento. Os marqueteiros tinham pesquisas dizendo: "O Fernando Henrique tira votos". Então ele tinha que ser deixado de lado porque a ideia era levar o Serra para o segundo turno para que o PSDB não sumisse naquela hora. Houve um momento de pânico. Depois disso, a própria Dilma fez um gesto de recuperar o Fernando Henrique, talvez como figura histórica, como diferenciação dela em relação ao Lula, na mesma linha do afastamento do imbróglio diplomático com o Irã. São gestos fáceis, que não significam nada, até pela avaliação de que o PSDB está estraçalhado. Com o esvaziamento do tucanato, o Fernando Henrique volta como uma coisa bem brasileira, que o Machado de Assis chama de medalhão, uma pessoa acima do bem e do mal, embora o livro A Privataria Tucana mostre que os tucanos não estão assim tão acima do bem e do mal. Aliás, se o Serra for mesmo o prefeito, espero que esse livro finalmente venha à tona. Os políticos não querem tocar nisso porque é provável que toda a política brasileira esteja funcionando assim hoje. É isso que é aderir incondicionalmente ao capitalismo.
Estado: O Lula volta em 2014?
Tales Ab’Sáber: Tem que lustrar a bola de cristal. Não sei. Depende muito do seu estado físico. Parecia que o mandato da Dilma seria um tampão para a volta do Lula, mas, se o governo dela estiver indo bem, talvez não haja necessidade disso. Acho que o Lula é um político de horizontes mais amplos, não necessariamente precisa estar no governo, desde que esteja produzindo um projeto político.
Estado: Ele não precisa dos holofotes?
Tales Ab’Sáber: Acho que precisava até chegar à Presidência. O fato de não ter flertado com o terceiro mandato abriu uma perspectiva mais ampla do que a mera política de estar no poder. No momento está jogando para a conquista da prefeitura de São Paulo, fazendo um movimento de renovação que os outros partidos não fizeram. Ele escolheu a Dilma, neófita, por um motivo que parece técnico. Do mesmo jeito escolheu o Haddad, um tipo de quadro de que o PT não gosta porque não vem das bases operárias, não vem da gestão cotidiana do partido. Curioso que o Haddad seja um pouco semelhante à Marta. É um cara que tem ligações com a universidade, um especialista, um professor, foi escolhido a dedo para ganhar esse povo que resiste ao PT em São Paulo. Vão atacá-lo porque roubaram uma prova do Enem? Não é culpa do MEC roubarem uma cópia do Enem. Foi um crime comum, um caso de polícia. O Haddad não conseguiu dizer isso. Ele passou recibo, aceitou como se fosse uma coisa do ministério. Nesse sentido, mostra que não é um político muito hábil.
Estado: No fim do livro você escreve que a homogeneidade cultural prepara a homogeneidade política. Tudo está junto e misturado?
Tales Ab’Sáber: Tudo é a mesma coisa. Isso é uma péssima notícia política para o tucanato. Ele não faz mais diferença. Perfume francês, falar inglês e ter passado por Harvard seis meses? Pode ser o Kassab também. Todos os políticos querem inflar a economia, inserir mais gente no consumo, e vai criando este mundo em que mesmo as pessoas de vanguarda não suportam a vanguarda. Não suportam a negatividade. O Brasil está muito fechado nisso. O centro do capitalismo, por causa da crise, perguntou que mundo é este. No Brasil, não. Aqui, o mundo é este. No centro do capitalismo se sabe que o capitalismo não entrega inteiramente o seu bife. Cria-se toda essa cultura de fetichismo e uma hora isso acaba. Puf! E aí as pessoas podem passar dez anos num inferno. Já se pergunta se esse é o melhor jeito de a humanidade viver, com tanta riqueza, com tanta tecnologia. Mas isso vai demorar muito tempo para se transformar numa teoria crítica de transformação. Vai se fazer uma nova rodada de todo poder ao mercado, de todo poder ao dinheiro, com tudo o que isso tem de doença.
Estado: Se o mundo não acabar neste ano.
Tales Ab’Sáber: Se isso não destruir o mundo antes.

Ó, deuses! Quarto ano de crise


O plano de austeridade evitou o calote grego, mas o cotidiano dos cidadãos segue num transe coletivo recheado de humor negro

19 de fevereiro de 2012 | 3h 07
RUSSELL SHORTO É COLABORADOR DA THE NEW YORK TIMES MAGAZINE, DIRETOR DO JOHN ADAMS INSTITUTE EM AMSTERDÃ. ESSE TEXTO FOI PUBLICADO NO NEW YORK TIMES - O Estado de S.Paulo
RUSSELL SHORTONuma taberna com paredes de tijolos em Atenas, durante um almoço de salada e charutos de folhas de uva, Aris Hadjigeorgiou não parava de falar sobre a situação calamitosa de sua cidade e seu país, com comentários que apenas um jornalista veterano conseguiria fazer. Ele explicou as maneiras insidiosas com que os ocupantes dos altos escalões da mídia grega estavam intimamente vinculados com a estrutura política, o que impedia reportagens sobre as falcatruas financeiras e também eliminava qualquer esperança de uma resolução da crise. E observou algumas pequenas coisas, como os panfletos nos vidros dos carros com anúncios de empresas de mudanças: sinais literais de como a crise econômica vinha afetando Atenas, com as pessoas buscando vias de escape fora do país ou no campo. Perguntei como a crise o afetava pessoalmente. A vida estava ficando difícil, ele admitiu. Depois, um pouco mais encorajado, disse que não recebia seu salário no jornal, um importante periódico de esquerda, há quatro meses. Nenhum dos colegas tinha sido pago. Mas poucos jornalistas saíram do jornal (que pediu concordata), pela boa razão de que não havia outro lugar para ir.
Isso resume bastante o que ocorre na Grécia. Todos falam incessantemente sobre a economia - sobre Angela Merkel, Sarkozy e a União Europeia, sobre a elite coesa que tem governado a Grécia e sobre as dificuldades dos seus vizinhos e as suas próprias. Mas de algum modo a vida cotidiana prossegue num transe coletivo permeado de humor negro.
Indicadores sugerem que a Grécia vive uma experiência sem precedentes no Ocidente moderno. Desde 2009, um quarto de todas as empresas gregas encerrou suas atividades e metade das pequenas empresas no país não conseguem pagar os empregados. A taxa de suicídios no país aumentou 40% no primeiro semestre de 2011. Uma economia de escambo floresceu. Quase metade da população abaixo dos 25 anos está desempregada. Executivos de bancos me disseram que as pessoas tiraram um terço do seu dinheiro das contas correntes; muitos guardavam as economias no colchão ou no quintal.
A Grécia está no epicentro de uma crise econômica que ameaça as bases da Europa. O mais recente plano de austeridade aprovado pelo governo, que visa satisfazer os credores e possibilitar novas injeções de ajuda financeira, pode ter evitado um calote involuntário e um colapso global, no entanto tornará a vida dos cidadãos comuns ainda mais difícil. O plano reduz o salário mínimo em 20%, prevê milhares de demissões. Mas quando você passa um tempo na Grécia têm à frente um quadro complicado. Existe a cólera, o aperto de cinto e as nuvens escuras de depressão. Não é raro ver gregos bem vestidos revolvendo latas de lixo à procura de comida. Mas há histórias de sucesso.
A volta das lareiras. Minha primeira impressão de Petros Vafiadis foi a de um urso. Alto, grandes bochechas, ele está agachado perto da grelha da sua lareira na sala. As pessoas de Giannitsa, ao norte da Grécia, disseram-me que o preço cada vez mais alto do óleo de aquecimento obrigou os moradores a usar as lareiras e, em muito tempo, sente-se o cheiro de madeira queimada no ar gelado. Vafiadis tem 56 anos e durante toda a vida trabalhou no setor da construção. Nos últimos dez anos vinha supervisionando as obras da empresa Archi-Tek, fiscalizando a construção de grandes projetos, boa parte deles patrocinada pelo governo, como escolas e museus. Mas o trabalho na região da Tessália, onde a companhia tem sede, acabou. Vafiadis foi demitido em setembro, dois anos antes da idade da aposentadoria. Ele deu uma tragada no cigarro e me disse: "Não há nenhum sinal de melhora no futuro", referindo-se à situação grega e à sua própria. "As coisas só vão piorar."
Sua mulher, Ekaterina, colocou uma torta de alho-poró sobre a mesa e se sentou. "Há famílias que estão em situação pior que a nossa", disse ela ao marido. Ela ainda mantém seu trabalho de cozinheira na lanchonete de um jardim de infância, apesar de o salário ter sido reduzido de US$ 1.730 ao mês para US$ 1.260. A renda do casal caiu de US$ 43 mil anuais para a metade e deve diminuir mais US$ 530 ao mês quando terminar o período de 12 meses de auxílio-desemprego do marido. Eles não têm nenhuma poupança, porque quando compraram a casa em 2000 usaram tudo o que haviam economizado como entrada. Além disso, têm dois filhos cursando a faculdade.
As medidas de austeridade para tentar acalmar banqueiros e governos impacientes têm dificultado a vida das pessoas, mas quando me encontrei com Vafiadis alguns meses antes do acordo firmado pelo governo grego, no início de fevereiro, ele disse que "ainda acho que é a única maneira de sair da crise. O governo tem de cortar os salários e as aposentadorias".
À medida que a economia implode, os jovens deixam Giannitsa. O filho de Petros Vafiadis, Traianos, de 24 anos, disse que do grupo de seis amigos que tem desde a infância ele é o único com emprego. Os demais emigraram ou estão procurando emprego fora do país. Por várias vezes jovens gregos afirmaram que estão penosamente cientes de que estão repetindo o ciclo que ocorreu nos anos 40, quando uma grande diáspora de jovens deixou o país em busca de trabalho. A diferença fundamental é que agora são jovens bem preparados - futuros médicos e engenheiros - que estão partindo, sugerindo que o que está ocorrendo não é apenas uma deterioração da uma economia, mas também de um sistema social inteiro.
Desobediência civil. "Atenção! Cuidado!", gritei para Paul Evmorfidis, que seguia na direção de um posto de pedágio na principal estrada de Atenas para Tebas. Ele reduziu a marcha ao se aproximar da cancela, mas não pagou o pedágio, nem parou. O alarme começou a disparar atrás de nós. "É o que fazemos aqui", disse ele. Quando o governo sobrecarrega os cidadãos com impostos, eles respondem com protestos. O pedágio custava três dólares e Evmofridis poderia pagá-lo sem dificuldade. Ele e seu irmão são proprietários da Coco-Mat, especializada em móveis de madeira natural. As vendas da Coco-Mat em 2011 foram de US$ 70 milhões, 15% a mais que o ano anterior. A Coco-Mat é uma empresa que desafia a crise: das 30 lojas na Grécia, cinco foram abertas no ano passado. Se Petros Vafiadis e sua família representam uma situação comum no país hoje, Evmorfidis revela outro caminho.
À medida que atravessamos os campos de oliveiras nas colinas de um branco cinzento, perguntei como ele, um bem sucedido empresário grego, achava que o país tinha chegado a uma situação como esta. "Este é um pais com 300 dias de sol durante o ano", disse, começando um confuso discurso, cujo ponto central era que ao aderir ao euro, a Grécia tentou estupidamente copiar os outros países e, ao fazer isso, deixou de lado seu modo de vida natural. "Trabalhar em escritórios é bom nos países onde há muita chuva", disse ele. "Os gregos não têm que ficar em escritórios. Atenas dobrou de tamanho em algumas décadas - e hoje ela comporta metade da população do país! Congestionamentos de duas horas! Depois que adotamos o euro, a mentalidade mudou. De repente, se você ainda estivesse vivendo no vilarejo onde nasceu, era considerado um retardado. Os gregos, então, deixaram suas ilhas, seus povoados, vieram para a cidade e ficaram loucos".
A mentalidade moderna grega, segundo Evmorfidis, é uma versão mais viva do consumismo americano que provocou um forte endividamento. "Os gregos tomavam empréstimos para comprar um carro de luxo e poder dizer 'eu tenho dinheiro'. Esta crise é exatamente o que precisamos. Merkel e Sarkozy são bons para a nossa saúde. Espero que eles não nos deem um centavo!"
Ultimamente um economista grego chamado Yanis Varoufaks vem chamando atenção no âmbito das finanças globais oferecendo o mito do Minotauro para explicar os recentes fatos macroeconômicos. Como ele escreve no seu mais recente livro, O Minotauro global, até recentemente o mundo em que vivemos funcionou graças ao consumo voraz de um tipo diferente de animal.
Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos construíram a infraestrutura dos aliados europeus e também dos antigos inimigos, e todos se tornaram seus parceiros comerciais. Com seu grande poder financeiro e industrial, os americanos se tornaram a nação superavitária do mundo: seus lucros fluíam para os aliados na forma de ajuda e investimentos. Na década de 70, contudo, outros países tinham economias robustas e os Estados Unidos se tornaram uma nação deficitária. "Nesse momento, alguns homens dentro da hierarquia financeira americana fizeram uma descoberta", disse ele. "Entenderam que não importava se os Estados Unidos eram a maior nação superavitária ou a maior nação deficitária. O importante era controlar a moeda primária do mundo, o que permitira aos Estados Unidos continuar a reciclar o superávit econômico global".
Assim, um novo sistema foi criado, em que uma enorme parte dos fluxos de capital do mundo vai para o serviço da dívida originada nos EUA. A dívida americana e a necessidade de alimentá-la, seria o Minotauro moderno. As instituições financeiras de Wall Street se tornaram as servas do Minotauro. Quando esse sistema começou a ruir em 2008, diz Varoufakis, "a crise do euro era apenas uma questão de tempo".
E onde, neste grande quadro, a Grécia se encaixa? Parte da lógica da zona do euro envolvia o fornecimento de empréstimos pelas economias fortes para as mais fracas, de modo a aprimorar suas infraestruturas para então poderem comprar produtos dos países mais fortes. Mas a Grécia recebeu os empréstimos e não investiu prudentemente. Como o elo mais fraco na zona do euro, a Grécia fornece uma imagem nítida de como o colapso econômico poderá ser muito maior. E apesar da esperança de alguns gregos com quem conversei na minha viagem, outros têm uma visão mais sombria do seu futuro.
Próximo de Tessalonica, segunda maior cidade do país, visitei uma família, marido, mulher e filho. A mulher é uma das maiores diretoras de bancos da Grécia. Quando pedi para que desse sua opinião sobre o futuro, ela respondeu: "na semana passada, eu estava sentada num café ao ar livre e um senhor bem vestido, de 60 anos, passou por mim e educadamente perguntou se eu poderia lhe dar o biscoito que veio junto com meu café. O que se diz sobre empresas bem sucedidas é bom de ouvir. Mas a realidade é aquele homem que me pediu o biscoito. Ainda não podemos ver os resultados da crise porque as pessoas estão sobrevivendo com suas economias. Logo essas poupanças vão acabar. No final de 2012 você verá uma Grécia com pobreza de verdade". Para Varoufakis, o futuro - no caso da Grécia e em grande parte do mundo ocidental - é de mais agitação. "O Minotauro morreu e era ele que respondia pela integração de tudo", diz ele. "Enquanto um novo sistema não for criado, estaremos num torvelinho."
Sentimento de comunidade. Apesar de todos os problemas da Grécia, é surpreendente não vermos desabrigados em Atenas da maneira como se observa em outras cidades afetadas pela crise. Isso porque, mesmo que estivessem seguindo sua carreira em Atenas, as pessoas mantiveram o elo com as cidadezinhas de onde vieram. Além disso, cerca de 80% dos gregos são proprietários de casa. Muitos dos que perderam o emprego na cidade têm onde se refugiar no campo, embora conseguir uma renda para viver ali seja outra questão. Assim, talvez o argumento de Evmorfidis seja válido: a infraestrutura tradicional da Grécia pode não ser a resposta derradeira para seus problemas, diante da escala global das coisas, mas poderá fazer com que os tempos difíceis sejam menos dolorosos.
O destino da minha viagem de carro com meu condutor foi Volos, uma cidade portuária na Tessália, um canal para o comércio com a Ásia, onde ele pediu para eu falar sobre a crise com um grupo de líderes de empresas. Após a conversa, quando saíamos do prédio, Evmorfidis me dizia que o que ainda salvará a Grécia é o sentimento de comunidade muito forte, quando uma senhora de meia idade descia as escadas. Era tarde e não tínhamos jantado. Ele perguntou a ela se sabia de algum lugar onde poderíamos encontrar alguma coisa para comer. "Venha à minha casa, vou cozinhar para vocês", ela nos convidou. E foi o que fizemos. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO