"Governo tropeça no pacote", "pontos soltos do pacote", "pacote desastroso", "governo desperdiça bônus", "pacote foi decepcionante e anúncio, desastroso, diz banqueiro", "pacote esquálido". Esses foram títulos opinativos que a Folha apresentou a seus leitores a respeito do anúncio que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fez, misturando o que seriam cortes de gastos com a criação de outros, na figura da isenção de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5.000 por mês.
A Folha é o jornal do contraditório, do "outro lado", do benefício da dúvida, é o que está enunciado em seu Manual da Redação. Tudo bem que, quando até Haddad e a ministra do Planejamento, Simone Tebet, se mostram publicamente contrariados com os rumos do próprio pacote, pode ficar mais complicado encontrar quem o defenda por inteiro.
O anúncio mexeu negativamente com aquilo que é conhecido como o mercado, mas já havia também feito torvelinho no governo e no Partido dos Trabalhadores. Onde estarão seus defensores intransigentes para além de Lula e do comando do PT? No jornal apareceram pouco e mal.
Entre os especialistas e as entidades com autoridade para calibrar impressões, não havia vozes na Folha para advogar a favor das medidas como vieram ao mundo. Diante da enésima paulada de colunistas e entrevistados, seria necessário buscar ajustar o placar de opinião sobre o tema, que é o que acontece com tantos assuntos e coberturas.
(Na rádio CBN, a comentarista e repórter Renata Agostini fez uma exposição oportuna sobre o dilema de avaliar um desastre anunciado como o pacote desta semana: "Quando nós fazemos uma análise de que o pacote é insuficiente, não é porque nós desejamos —ou eu, no caso— que haja um corte no salário mínimo, que haja um corte no Bolsa Família. A questão é que as coisas estão relacionadas. E o governo está [cansado] de saber disso. Quando há uma alta do dólar, é porque o mercado —mercado este de que o governo depende porque tem que vender títulos da sua dívida para se refinanciar— está descrente dos compromissos fiscais do governo".)
Note-se que a Folha publicou ponderações e análises sóbrias, que não se ocupavam apenas de detonar o projeto —ou o detonavam com a devida explicação. Mas reações mais entusiasmadas a favor dele, inclusive de ex-colunistas do jornal menos inclinados à ortodoxia, ficaram de fora.
Há, e não só na Folha, uma certa ojeriza das correntes de pensamento econômico que encontram eco sobretudo na esquerda, e a fuga da ortodoxia pode ser percebida como flerte com o terraplanismo. Mas a Folha é ou deveria ser o ambiente em que ideias diferentes podem circular livremente (foi, aliás, seguindo esse princípio que o jornal deu espaço para Jair Bolsonaro publicar sua redação sobre democracia).
A queixa de leitores sobre o que seria uma leitura antiesquerda na cobertura econômica da Folha não é novidade. Com o pacote, ela voltou à carga.
"Sou leitor fiel do jornal mas a cobertura econômica está enviesada demais", afirma um leitor, que reconheceu melhorias e alguns ajustes de rota no segundo dia pós-pacote. Outro indagou, ainda na era pré-pacote: "O que é o mercado? Banqueiros? Analistas de corretoras?".
Acaba sendo necessário retornar periodicamente a esquadrinhar essa figura (o "mercado") convenientemente incógnita entre várias faces e humores. Para a cobertura, fazê-lo pode soar óbvio demais, mas para quem lê há diferença.
Outra leitora, ainda em outubro, deu sugestão mais radical: "Seria interessante saber o patrimônio estimado de cada entrevistado que vem dar palpite sobre gastos e finanças públicas. Algo na linha: Zezinho, diretor de investimentos da consultoria tal e com patrimônio estimado em R$ 25 milhões, defende corte de gastos públicos na saúde e Previdência. Acho que é razoável que nós, leitores, possamos entender qual é a posição financeira dessas pessoas que estão tão preocupadas com as contas públicas".
Resta evidente que não é o jornal (nem nenhum jornal) que vai parar a briga do PT e do governo entre si ou com "o mercado". Mas dedicar-se a explicar incansavelmente o que está por trás dessas e de outras refregas constitui uma das funções em que o jornalismo ainda é insubstituível. Até porque as cobranças para que medidas de saúde fiscal —e social— sejam implementadas só podem ser realizadas a partir desse conhecimento.
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