terça-feira, 19 de novembro de 2024

Na USP, normas da ditadura ameaçam estudantes, FSP

 Carlos Augusto Calil

Professor colaborador da Escola de Comunicações e Artes da USP, é ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo (2005-12)

Leda Paulani

Professora titular sênior da Faculdade de Economia da USP, foi secretária Municipal de Planejamento de São Paulo (2013-2015)

Sérgio Rosemberg

Professor titular sênior da Faculdade de Medicina da USP e professor emérito da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo

A Universidade de São Paulo move processo disciplinar de expulsão de quatro estudantes do curso de ciências moleculares (CCM) "por conduta de apologia e disseminação (ata e redes sociais) ao ódio e discriminação por discentes". A investigação, que corre sob sigilo, se baseia no Regimento Geral da USP, decreto n° 52.906/1972, norma exarada sob o governo biônico de Laudo Natel.

Esse regimento foi objeto de análise pela Comissão da Verdade da USP, presidida pelos eminentes professores Dalmo Abreu Dallari e Janice Theodoro da Silva, levando em conta o padrão de violação de direitos humanos na USP durante a ditadura.

O relatório final emitiu várias recomendações. A de número 5 determinava "Adequar o Regimento Geral da Universidade, quanto a sanções disciplinares para o corpo docente e o corpo discente, a fim de compatibilizá-lo com a gestão democrática do ensino, princípio integrante da Constituição Federal".

Lamentavelmente, a USP não acatou essa recomendação de remover do regimento disposições flagrantemente inconstitucionais. Em consequência, a acusação invoca o artigo 250 do regime disciplinar: "Ato atentatório à moral ou aos bons costumes" (formulação vaga que permitia à ditadura incluir sob esse rótulo o que as autoridades quisessem); "perturbar os trabalhos escolares, bem como o funcionamento da administração da USP" (negando o direito de greve, consagrado na Constituição de 1988); "promover manifestação ou propaganda de caráter político-partidário, racial ou religioso bem como incitar, promover ou apoiar ausências coletivas aos trabalhos escolares" (essa combinação ardilosa visava reprimir qualquer crítica à ditadura e proibir os protestos estudantis).

A sustentação do atual processo é a ata de assembleia estudantil do Centro Acadêmico Favo 22, do CCM, em 10/10/2023, a qual decidia sobre a continuidade da greve dos estudantes então em curso. Nela há um informe sobre a situação da Palestina depois do 7 de outubro em Gaza, publicado pela Folha em 24/10/2024, considerado pela coordenadora do CCM e por instâncias superiores como manifestação de ódio e antissemitismo. No informe, além de crítica a Israel, nada há que configure crime de ódio ou antissemitismo.

Em relatório divulgado na quinta-feira passada (14), a ONG Human Rights Watch estima que as repetidas ordens de evacuação na Faixa de Gaza, impondo deslocamento forçado à população, equivalem a "crime de guerra". E afirma que "as ações de Israel também parecem se enquadrar na definição de limpeza étnica" nas áreas em que o Exército ordenou que os palestinos saíssem sem poder retornar.

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Em 8 de novembro, o alto-comissário de Direitos Humanos da ONU, Volker Turk, divulgou relatório mostrando como civis palestinos suportaram o peso dos ataques decorrentes do "cerco completo" inicial de Gaza pelas forças israelenses, que destruiu a infraestrutura civil e promoveu repetidos deslocamentos em massa. Tal conduta causou níveis sem precedente de assassinatos, mortes, fome e doenças.

A Corte Internacional de Justiça em Haia, órgão máximo judicial da ONU, ressaltou, em ordens desde 2023, as obrigações internacionais de Israel de prevenir, proteger e punir atos de genocídio. Também declarou que a ocupação por Israel dos territórios palestinos é ilegal, assim como assentamentos por colonos judeus nessas áreas.

O informe dos estudantes reportou todos esses temas, confirmados por decisões e relatórios da ONU ao longo dos 12 meses após sua publicação naquela ata. Se a Comissão Processante, ao examinar o texto dos estudantes, não levar em conta o que ocorreu em Gaza nos últimos 12 meses, incorrerá em flagrante injustiça, além de anacronismo inaceitável.

Esperamos que os colegas da Comissão Processante não se deixem intimidar pela pressão de grupos de interesse que tentam instrumentalizar órgãos da Universidade de São Paulo em favor de sua agenda política. Apelamos aos colegas: exonerem os estudantes das acusações e penalidades de origem autoritária que pesam sobre suas carreiras, a ponto de inviabilizá-las, dando um exemplo de justiça.

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