Talvez não existam no Congresso Nacional duas pessoas mais diferentes do que Nikolas Ferreira e Erika Hilton. Ele é um homem hetero, enquanto ela é uma mulher trans. Nikolas representa o conservadorismo e é filiado ao PL, partido do ex-presidente Bolsonaro. Erika é uma das vozes mais fortes contra essa agenda, representando o PSOL, partido associado à esquerda radical.
Mas a letra "K" em seus nomes revela a origem popular que ambos compartilham. Além disso, há outros pontos em comum. Nascidos e criados em bairros periféricos do Sudeste, ele em Belo Horizonte e ela nos arredores de São Paulo, ambos cresceram em famílias evangélicas.
A história de Erika com a religião é marcada pela dor. Criada pela mãe, frequentou até a adolescência a Congregação Cristã no Brasil, a primeira igreja pentecostal fundada no país. Essa trajetória é abordada no documentário "Ser Evangélico no Brasil", produzido pelo UOL e dirigido por João Ramírez. Em resumo, ao ter que lidar com a sexualidade da filha e com o julgamento da igreja, a mãe de Erika acabou por expulsá-la de casa. Ainda adolescente, Erika viveu nas ruas e, como tantas outras trans de origem popular, recorreu à prostituição para sobreviver.
A história de Erika, no entanto, tem um desfecho feliz, não apenas porque ela superou os desafios e se tornou uma das 100 mulheres mais inspiradoras e influentes do mundo segundo a BBC.
Depois de uma dessas orações evangélicas que são uma conversa direta com Deus, a mãe de Erika sentiu uma resposta: "Se não for eu, como mãe, quem dá o exemplo do amor, quem vai dar?". A partir dessa convicção, saiu para resgatar a filha na rua. E hoje é evangélica em uma das igrejas mais conservadoras do país, além de defensora dos direitos e da causa trans.
As trajetórias de Erika e Nikolas voltaram a se cruzar nas últimas semanas por causa do projeto que visa reduzir a jornada de trabalho.
Nada na proposta chamada de "6x1" ofende os valores do conservadorismo. Pelo contrário, ela poderia até ser chamada de PEC da Família Unida, pelos benefícios que oferece a essa instituição tão venerada pelos evangélicos. Mais tempo livre significa, entre outras coisas, mais tempo para se divertir e descansar com a família, para se capacitar, para desenvolver uma fonte de renda extra e até para ler a Bíblia e ir à igreja.
Entre União Brasil, Republicanos, Progressistas, PSD e mesmo o PL de Bolsonaro, 80 deputados já assinaram a proposta pelo fim da escala 6x1. Cleitinho Azevedo, que é do Republicanos, partido ligado à Igreja Universal, e tem "Jesus" tatuado no antebraço, cravou sobre a proposta: "Só critica quem não faz essa escala." Então, por que Nikolas se posiciona publicamente contra o PEC?
Ele argumenta, como muitos outros, que o projeto produzirá o efeito contrário ao esperado, que é demissões e aumento do custo de vida. Ao mesmo tempo, joga sujo ao atacar a proposta por ela ser defendida por uma deputada trans.
Será que é apenas para evitar que sua rival política receba o mérito por uma proposta que ressoa tão diretamente com sua base eleitoral, de evangélicos pobres e periféricos? Uma proposta que, acima de tudo, encapsula o amor ao próximo? Apenas Nikolas pode responder.
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