O defunto não estava enterrado, e já explodiu a briga entre os herdeiros. Enquanto Kamala Harris discursava concedendo a derrota, no último dia 6, o senador Bernie Sanders atacava com veemência a campanha democrata.
Sanders, um independente que se desfiliou do Partido Democrata em 2016, mas que ainda vota com eles, disse que a derrota de Kamala não era surpresa, porque o partido abandonou a classe trabalhadora e falou demais em raça e orientação sexual.
Trabalhadores formaram a base democrata até os anos 1990, quando, sob Bill Clinton, os Estados Unidos formaram o Nafta, acordo de livre comércio com México e Canadá. O Nafta é hoje o espantalho na troca de acusações pela tripla derrota democrata neste ano. Aos 30 anos, o acordo epítome da globalização é citado frequentemente por democratas veteranos como o pecado original na alienação da classe trabalhadora.
De acordo com um velho adágio apócrifo —equivocadamente atribuído a John Steinbeck, autor de "As Vinhas da Ira"—, o socialismo não emplacava no país porque os trabalhadores americanos se viam não como proletários, mas como milionários sofrendo um embaraço temporário.
A citação ilustra argumentos de economistas sobre a mobilidade social americana, que não acham viável implementar uma agenda política de classe neste país onde 59% dos republicanos de alta renda se identificam como trabalhadores e mais da metade da população geral diz pertencer à classe média.
Na onda de análises instantâneas que tem dominado os comentários políticos, o outro inimigo dos democratas seria a política de identidade. Nos confusos estágios de luto com a derrota recente, centristas e parte da esquerda voltaram a sugerir que há uma escolha de Sofia entre privilegiar classe econômica e direitos humanos.
Trump é o 44º colocado em margem de vitória no voto popular entre as 51 eleições presidenciais nos últimos 200 anos. No momento, ele está abaixo de 50% dos votos —recebeu 49,89% contra 48,24% de Kamala. A estimativa de abstenção em 2024 é de 36%, cerca de 90 milhões de americanos com idade para votar —uma população maior do que a que votou em Trump ou Kamala. Trump volta, então, à Casa Branca com os votos de 30% dos adultos, o que não é incomum neste país onde o voto não é obrigatório.
Em 2016 e 2020, nenhum democrata venceu a eleição para senador num estado que deu vitória ao republicano. Neste ano, quatro senadores democratas levaram estados em que o republicano venceu, o que sugere uma redução do "efeito Trump".
Na Câmara, a maioria republicana, mesmo com três assentos ainda não definidos, será a menor desde a década de 1950, quando os EUA passaram a ter 50 estados. É inegável que as urnas mostraram um realinhamento demográfico. Mas, em números, a vitória republicana não reflete um mandato esmagador.
A onda de recriminações que domina o debate político, além de consumir oxigênio que seria mais bem usado para enfrentar o tsunami autoritário em curso, ignora um fator decisivo: a captura das redes sociais pela ultradireita, não só com a interferência de Elon Musk.
Os americanos, com sua dieta pobre de informação, foram às urnas nutridos por uma apocalíptica realidade paralela sobre inflação, crime, imigração e pessoas transgênero. O octogenário Bernie Sanders não oferece uma estratégia para este cenário.
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