terça-feira, 19 de novembro de 2024

João Pereira Coutinho - Inimigos íntimos, FSP

 Você conhece aquele clichê "é preciso saber envelhecer"? Não ria. Os clichês são clichês por algum motivo.

Anos atrás, li algures que a longevidade de Cristiano Ronaldo como jogador de futebol não estava apenas na sua disciplina física. Era questão de inteligência no amadurecimento. Sim, o jogador, aos 35 anos, já não conseguia correr como antigamente. Não era possível os "sprints" e os dribles dos tempos do Manchester United ou do Real Madrid.

Ronaldo não insistiu nesse caminho. Optou por outro: reinventar-se como atacante, apurando o salto, a cabeça e o chute de primeira. Quem o viu, dias atrás, marcando um gol de bicicleta à Polônia na Liga das Nações sabe do que estou falando. O coroinha continua imparável.

Ilustração de Angelo Abu

"Saber envelhecer" é isso: fazer menos, fazer diferente, fazer melhor. E "não saber envelhecer" é ser incapaz de largar o jovem que fomos em suas atitudes e proezas. É fazer o mesmo, mas pior.

Lembrei tudo isso quando assistia ao filme "A Substância" de Coralie Fargeat, com Demi Moore no papel principal. Provavelmente, não eram esses os pensamentos que a diretora esperava que eu tivesse. Mas, às vezes, as obras de arte escapam às nossas intenções conscientes e revelam pensamentos mais profundos, mais involuntários. Mais interessantes.

À superfície, aqui está mais um filme-denúncia sobre o patriarcado que usa e abusa das mulheres quando jovens. Depois, quando elas envelhecem, são descartadas como se fossem um trapo.

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A personagem Elisabeth Sparkle é esse trapo. Na juventude, foi uma diva das telas, com direito a estrelinha na Calçada da Fama, em Hollywood. Na meia-idade, é demitida de um programa de ginástica da TV porque o diretor quer carne fresca. A diva, inconformada, opta por um tratamento radical: uma "substância" que faz nascer dentro do seu corpo uma versão jovem de si própria. Tudo corre bem e Elisabeth vive feliz para sempre com a sua nova amiga.

Brincadeira, claro. Tudo corre mal, caso contrário não haveria filme. A premissa é implausível por vários motivos. O primeiro, mais ou menos óbvio, é que Demi Moore, aos 62, está bem e recomenda-se. O segundo, ainda mais óbvio, é que a caracterização do patriarcado é tão comicamente grotesca —o presidente da TV é um Dennis Quaid diretamente do manicômio— que a intenção da diretora se perde na caricatura. Perante um homem daqueles, rir ou fugir são as únicas opções válidas, não arriscar a vida para "rejuvenescer" para ele.

Aliás, isso soa até insultuoso, não soa? A mensagem de Coralie Fargeat é que as mulheres de meia-idade são tão fúteis e intelectualmente limitadas que estão dispostas a tudo, até às maiores torturas, para satisfazerem o ego dos homens. Que isso aconteça por aí, é algo que se lamenta. Mas a tese não colhe quando aplicada universalmente. Cresci com mulheres fortíssimas que nunca hesitavam em pôr os machos no seu lugar. E continuo rodeado por elas, em casa ou fora de casa.

Nessas matérias, a ensaísta Camille Paglia tem razão quando recusa a vitimização insultuosa que as feministas de terceira geração trouxeram para a luta da emancipação das mulheres. Como se as mulheres fossem flores de estufa, rodeadas por ervas daninhas (nós, os homens), mendigando por proteção especial. No fundo, a velha fantasia reacionária.

As mulheres não são flores de estufa. Algumas são até plantas carnívoras ou venenosas, como já tive oportunidade de comprovar.

É por isso que a segunda mensagem do filme, provavelmente involuntária, me parece mais sutil: o problema talvez não esteja no patriarcado, mas no narcisismo patológico que pode atingir ambos os sexos (é um homem que aconselha a misteriosa substância a Elisabeth, no fim das contas). A criatura que Elisabeth gera é a versão jovem de si própria. Mas é ainda ela própria, com suas ambições e vícios.

Confiar a nossa vida ao nosso eu mais jovem implica saber que jovem fomos, que valores tivemos, que erros cometemos —e, talvez mais importante, que lições soubemos aprender pelo caminho. Ou não. Elisabeth aprendeu pouco. Por isso experimenta a substância. E por isso a sua criatura se comporta com o mesmo egoísmo homicida/suicida da criadora.

E quando existe a hipótese de parar o tratamento e impedir a tragédia; ou quando pensamos que a diva em causa está disposta a viver uma vida "normal", com pessoas "normais", no cotidiano "normal", a evidência da sua imperfeição por contraste com a sua juventude a impede de seguir em frente. Em rigor, Elisabeth não amadureceu. Apenas envelheceu. Se ela tivesse aprendido a lição com Cristiano Ronaldo, saberia que, às vezes, nosso ser mais jovem é o nosso maior inimigo.

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