segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Edição de Sábado: O presidente, o general e o juiz., MEIO

 Por Luciana Lima e Guilherme Werneck

A descrição da Polícia Federal sobre a tocaia feita por militares ao ministro Alexandre de Moraes reavivou histórias de tempos sombrios na cabeça do ministro Celso de Mello, aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF). Caso a intentona, que incluía a caçada e até o assassinato do magistrado, não tivesse sido abortada pelos “kids pretos” do Exército, Moraes não seria o primeiro ministro da Corte a sofrer um sequestro de militares. E Mello fez questão de relembrar a história num artigo publicado na página do STF. Era necessário demonstrar o grave significado dos fatos identificados pela PF após a derrota de Jair Bolsonaro nas urnas. Uma história cheia de pontos comuns.

Em 1963, no dia 12 de setembro, o alvo foi o então ministro Victor Nunes Leal. Pela manhã, quando se dirigia ao STF, Leal foi sequestrado por militares de baixa patente. Levado para a Base Aérea de Brasília, o ministro ficou detido por uma hora e meia, perdendo o encontro que tinha com o presidente do STF, à época, o ministro Lafayette de Andrada. Até a motivação da revolta dos sargentos se liga aos tempos atuais. O Supremo, na época, havia decidido que esses militares não podiam concorrer a cargos de deputados, como pregava a Constituição de 1946.

O presidente capitão

Como se vê, a tentativa de misturar a carreira militar com a política não é novidade. Foi dentro desse arcabouço que o ex-capitão Jair Bolsonaro desenvolveu toda a sua vida política e, numa tentativa de emular seus heróis, gestou o golpe para continuar no poder. Como em 1964,  recorreu à lógica do “inimigo interno”. Se antes, pessoas consideradas “subversivas e comunistas” representavam a ameaça à “segurança nacional”, para Bolsonaro a subversão era, além de ilusórios comunistas, Moraes e a condução dos processos capazes de limitar seus delírios autocráticos.

Muito antes das movimentações golpistas, o alvo estava claro. No 7 de setembro de 2021, em plena Avenida Paulista, o presidente incitava seus seguidores: “Dizer a vocês que qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes esse presidente não mais cumprirá. A paciência do nosso povo já se esgotou, ele tem tempo ainda de pedir o seu boné e ir cuidar da sua vida. Ele, para nós, não existe mais”, vociferou, do alto do carro de som montado para aglomerar pessoas no dia da Independência, em plena pandemia. “Ou esse ministro se enquadra ou ele pede para sair. Não se pode admitir que uma pessoa apenas, um homem apenas, turve a nossa liberdade. Dizer a esse ministro que ele tem tempo ainda para se redimir, tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos. Sai, Alexandre de Moraes. Deixa de ser canalha. Deixa de oprimir o povo brasileiro, deixe de censurar o seu povo. Mais do que isso, nós devemos, sim, porque eu falo em nome de vocês, determinar que todos os presos políticos sejam postos em liberdade.”

Na época, Moraes já era o relator dos inquéritos sobre as fake news e dos ataques a instituições democráticas. Um dia antes do ato na Paulista, havia atendido a um pedido da Procuradoria-Geral da República e colocado na cadeia algumas pessoas responsáveis por financiar e organizar um dos primeiros atos contra o STF. Eram bolsonaristas que ameaçaram Moraes pelas redes sociais e tinham lançado fogos contra o prédio do Supremo. Entre eles, policiais e membros de associações de produtores de soja.

Agora a PF coloca Bolsonaro como chefe da trama golpista e seu indiciamento, segundo investigadores, é embasado por provas robustas. De acordo com a polícia, Bolsonaro está ligado ao rascunho encontrado na casa do ex-secretário de Segurança do Distrito Federal e ex-ministro da Justiça, Anderson Torres. Era o esboço para um decreto que previa uma intervenção no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), presidido por Moraes, após as eleições de 2022. Bolsonaro teria pedido modificações no texto que previa a prisão de ministros do STF e do presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, além da realização de novas eleições no fim de 2022. O documento estava em nome de Bolsonaro, mas sem sua assinatura. Convenientemente, o espaço reservado para a data do decreto havia sido deixado em branco.

A polícia sabe que Bolsonaro realizou pelo menos duas reuniões com o comando das três Forças Armadas, ministros e assessores para discutir o golpe. Sabe também que o plano não se concretizou porque não houve o endosso de dois comandantes da época: o general Marco Antônio Freire Gomes, do Exército, e o brigadeiro Carlos de Almeira Baptista Júnior, da Aeronáutica, que contou à PF ter ameaçado prender Bolsonaro caso ele tentasse executar o plano. Essas reuniões já haviam sido informadas pelo ex-ajudante de ordens do presidente, tenente-coronel Mauro Cid, em delação premiada. Cid confirmou também uma reunião com a cúpula das Forças Armadas logo após a derrota para Lula. O assunto: discutir uma minuta que anularia o pleito e resultaria em uma intervenção militar.

Mais, a arquitetura do golpe também se interliga com outros dois inquéritos, o de fraude do certificado de vacinação para que Bolsonaro pudesse viajar aos Estados Unidos, de onde supostamente voltaria nos braços do povo, e o das vendas das joias, garantindo dinheiro vivo no bolso caso tivesse de ficar mais tempo fora do Brasil.

O general vice

“Quando a política entra no quartel por uma porta, a disciplina sai pela outra”. Se a máxima usada pelo general Peri Bevilacqua, em 1968, para criticar o AI-5 realmente orientasse os quartéis, o general de quatro estrelas Walter Braga Netto teria a metade da sua vida militar inviabilizada. Concorrer como vice na chapa em 2022 era uma novidade, já que ele sempre esteve na política, mas nunca pela vontade popular.

Braga Netto esteve regularmente perto do poder. No governo de Fernando Henrique Cardoso, foi assessor da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, depois, chefe do grupo de observadores militares nas forças das Nações Unidas no Timor Leste, em 2000. No governo Lula, foi adido militar nas embaixadas de Varsóvia, na Polônia, e de Washington, nos Estados Unidos. Em 2009, chegou ao posto de general. No governo de Dilma Rousseff, foi secretário de segurança presidencial e chefe da Casa Militar da Presidência da República, além de coordenar a Assessoria Especial dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio 2016.

Quando Bolsonaro assumiu, Braga Netto se tornou chefe do Estado Maior do Exército, segundo posto mais importante da Força. Ficou um ano no cargo até se mudar para a Casa Civil, em fevereiro de 2020, quando Onix Lorenzoni saiu para se candidatar ao governo do Rio Grande do Sul. No Planalto, exerceu o clássico nepotismo, conseguindo a nomeação de sua filha Isabela para um cargo na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Em março de 2021, assumiu o Ministério da Defesa no lugar do colega Fernando Azevedo e Silva, até que, um anos depois, passou ao cargo de assessor especial da Presidência, que ocupou por quatro meses até deixar o governo, em julho de 2022, para ser candidato a vice na chapa de Bolsonaro.

Para a PF, enquanto Bolsonaro figura como chefe do plano, Braga Netto seria o verdadeiro arquiteto, a cabeça pensante da trama que incluiu o plano de assassinato do presidente Lula, do vice Geraldo Alckmin e de Alexandre de Moraes pelos seus “kids pretos”. O general seria também um dos que mais se beneficiariam da ação, já que o plano previa a formação de um “Gabinete Institucional de Gestão da Crise”, logo após os assassinatos. Esse órgão ficaria sob o comando de Braga Netto e do general Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) de Bolsonaro. E é apontado pela PF como um dos responsáveis por incitar outros membros das Forças Armadas a aderir ao golpe. Era com ele também boa parte da interlocução do Planalto e da Alvorada com os acampamentos golpistas.

O relatório apresentado pela polícia indica que os militares iniciaram o monitoramento de Moraes “logo após a reunião” realizada na casa de Braga Netto, um apartamento na Asa Sul, em Brasília, no dia 12 de novembro de 2022. O plano, denominado “Punhal Verde e Amarelo”, segundo a polícia, teve o aval do ex-presidente. O comando, porém, teria sido escolhido por Braga Netto: o general de brigada Mario Fernandes, ex-secretário executivo da Secretaria Geral da Presidência, que chegou a ser ministro interino da pasta. A polícia identificou que o plano teve seis cópias impressas dentro do Palácio do Planalto para serem discutidas em reunião. No dia seguinte às impressões, Fernandes foi para a reunião com Bolsonaro no Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência da República.

Três meses antes das eleições de 2022, Mario Fernandes havia defendido uma antecipação do golpe em uma reunião com Bolsonaro e todo primeiro escalão do governo Bolsonaro e todos os militares que o rodeavam recorrentemente se colocavam na missão de atacar o sistema eleitoral para justificar uma intervenção. A eloquência da defesa feita por Mario Fernandes durante uma reunião com Bolsonaro e com os demais ministros chamou a atenção da polícia. Havia no discurso uma boa dose de indignação com o fato de o comandante do Exército, Freire Gomes, não ter concordado com o plano. ”É importante avaliar essa possibilidade, mas principalmente, para que uma alternativa seja tomada, como o senhor mesmo disse, antes que aconteça“, dizia, se dirigindo a Bolsonaro. “Porque no momento que acontecer, é 64 de novo? É uma junta de governo? É um governo militar?”

Fernandes, muito próximo de Braga Netto, confirmou a Cid numa mensagem que Bolsonaro havia aceitado o “assessoramento” do grupo golpista. E que vinha do ex-presidente o aval para que o golpe fosse efetivado até dia 31 de dezembro.

O juiz

O ministro Alexandre de Moraes, como presidente do TSE e relator de praticamente todas as dores de cabeça de Bolsonaro e de seu clã, era o alvo principal. Dentro dessa lógica, não é difícil imaginar que o maior “inimigo interno” passaria a ter sua cabeça na mira do grupo golpista. Moraes iniciou sua carreira no Ministério Público. Foi promotor de Justiça do Estado de São Paulo por 11 anos, de 1991 a 2002. Dali, pulou direto para a carreira política. Foi secretário de Justiça de São Paulo, acumulando a presidência da Fundação Casa, e secretário de Segurança Pública. Depois, foi ministro da Justiça e Segurança Pública de Michel Temer. Em todos esses cargos, comandou forças policiais. Entende a lógica investigativa e tem cabeça de acusador. Ele tem delegados fiéis nas polícias Civil e Federal.

Seu entendimento sobre Bolsonaro começou a se formar na condução de dois inquéritos: o que apurava os ataques às instituições e à democracia e o das fake news, aberto de ofício pelo então presidente do STF, Dias Toffoli, em 2019. Ter seu nome como um alvo a ser eliminado não foi exatamente uma novidade. Alexandre seguia experimentando a sanha bolsonarista, ainda mais quando, após o 8 de janeiro, passou a julgar os perpretadores dos ataques. Em junho de 2023, foi atacado por bolsonaristas em Roma, que o chamaram “bandido, comunista e comprado”. Lutador de boxe tailandês, o ministro não reagiu, nem ao ver seu filho levar um empurrão e um tapa no rosto que lhe fez voar os óculos.

Hoje, a defesa de Bolsonaro quer impedi-lo de julgar o processo que virá em decorrência da operação Contragolpe, alegando que ele seria uma potencial vítima, além de ser considerado um inimigo do bolsonarismo. Vale lembrar, no entanto, que todas as ações penais em relação ao 8 de janeiro questionavam a isenção de Moraes para tratar do tema, pelo fato de ele ter sido atacado pelos manifestantes. Esse questionamento, porém, foi superado por unanimidade pelo plenário do STF. É claro que um possível novo questionamento por parte de Bolsonaro sobre a competência de Moraes para julgá-lo pode ser levado novamente ao plenário, mas a tendência é de que esse argumento, novamente, não seja aceito.

A defesa dos golpistas segue por dois caminhos para tentar minar a gravidade das acusações que vêm com as investigações da Polícia Federal. O primeiro é alegar que pensar em um crime não é o mesmo que cometê-lo. O segundo é tentar dizer que Moraes não pode ser vítima e juiz ao mesmo tempo. Juristas ouvidos pelo Meio rebatem ambas as estratégias.

Oscar Vilhena Vieira, professor fundador da FGV Direito e membro da Comissão Arns, refuta a tese de que os golpistas apenas elucubraram e não colocaram em prática o golpe. “O ato de ameaça às eleições, a tentativa de desestabilizar o Tribunal Superior Eleitoral, a reunião com os embaixadores, a tentativa de explosão do caminhão, a presença e a tolerância com os manifestantes na porta dos quartéis, todo esse conjunto de atos são ataques ao Estado de Direito”, argumentou em entrevista ao Meio.

Já sobre a questão da suspeição, Vilhena pensa que, se a PGR denunciar os 37 indiciados por algum crime em que o Alexandre seja a vítima, é evidente que ele não pode ser o juiz desse próprio processo, ou seja, terá de se declarar impedido de julgar. “Mas nesse caso agora, se essa tentativa de homicídio dele não for objeto de denúncia, e acho que não deve ser, porque houve uma troca de informações, mas não chegaram a tentar, não vejo porque ele não possa julgar.”

Para o presidente do o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Renato Stanziola Vieira, seria fundamental que o plenário do STF decida o quanto antes sobre a existência ou não de suspeição de um de seus integrantes “para que se deixe de debater sobre a conduta de um de seus membros e se volte a atenção para a gravidade do problema concreto, suscitado com a nova tentativa de golpe há pouco descoberta”, apontou. “A Corte, ao debater de forma colegiada a situação de possível interesse pessoal de um de seus integrantes, dará exemplo de serenidade e grandeza, e é disso que todos os jurisdicionados precisam.”

Lembrando que a imparcialidade é princípio reitor do processo penal, entende que “talvez a Corte se depare com a novidade de ter de separar o que coloca uma pessoa individualmente como vítima, e assim interessada em se autoproteger e condenar alguém, e outra, que coloca a instituição como um todo como vítima de ataque antidemocrático, com o que se dilui o interesse de qualquer de seus membros no desfecho do caso. Imagino que os argumentos passem por esse debate, se vierem a público.”

Azougue político, o advogado criminal de Brasília Antônio Carlos Almeida Castro é mais enfático ao descartar o argumento: “Aceitar a tese da suspeição seria dar ao investigado o controle de quem ele quer como juiz do seu caso”. Sublinha ainda que o fato de a defesa de Bolsonaro não ter se debruçado para negar os fatos apresentados pela polícia no inquérito demonstra que, “ao que parece, o trabalho da PF foi tão bem-feito tecnicamente que está 'irrespondível'.”

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