O sol cai de mansinho no mar de São Conrado, mas Edu Lobo, no alto de uma das pirambeiras daquele bairro da zona sul carioca, está alheio à paisagem. "Eu moro aqui", diz o cantor e compositor, 80 anos recém-completados, dando as boas-vindas ao seu escritório, que fica no último andar de sua casa.
Com as persianas fechadas, o artista passa o dia todo em seu minarete, enfurnado entre pilhas de livros e discos, dividindo espaço com um bar, uma TV e um piano de cauda, posto logo ali para intimidar o intruso.
"Aqui tem tudo. Para que eu vou sair do escritório? Essa cidade é violentíssima. Tenho medo de andar na rua e, de repente, ser nocauteado", afirma o músico, encontrando sempre o humor no mau humor.
Encantado com o YouTube, por onde ouve música de concerto escrutinando as partituras, ele aguarda o lançamento, em , de "Oitenta", seu novo trabalho, composto por dois discos, cada um deles com 12 faixas.
Três dias depois, ele se apresenta em São Paulo, no teatro B32. Nas plataformas digitais ou mesmo em cena, Edu não entoará novas canções. O ineditismo do álbum reside nos arranjos e nos intérpretes arregimentados por ele, os cantores Ayrton Montarroyos, Mônica Salmaso, Vanessa Moreno e Zé Renato, do grupo Boca Livre.
Duas vezes vencedor dos festivais de música brasileira, com "Arrastão", em 1965, e "Ponteio", em 1967, Edu tem seu nome escrito em todos os livros de história. Ele não se entusiasma, contudo, com a interpretação de seus autores e suas hierarquizações.
"O que é MPB? É um partido político? Eu tenho horror a esses termos. Já me disseram que eu inventei a MPB. Eu nunca fui inventor de porcaria nenhuma", afirma o compositor. "Outra coisa, o Clube da Esquina, as pessoas se esquecem dele. É muito mais sofisticado do que a tropicália. Isso não tem de ser um tabu, pode botar aí."
Em seis décadas de carreira, Edu viu de tudo —a bossa nova, a era dos festivais, o streaming. Ele afirma ter conseguido fazer sempre o que quis, se desvencilhando dos desejos da indústria fonográfica. Mas agora ele evita fazer previsões.
"Pode ser ou não ser o meu último disco", diz. "Ninguém sabe o que vai acontecer, mas já fiz de tudo na minha carreira. Esse trabalho fecharia muito bem a minha discografia."
Só lhe restaria agora compor um álbum de inéditas, mas ele afirma que seu ímpeto criativo amansou ao longo do tempo, dependendo de encomendas para filmes, peças de teatro e balés, as artes por onde seu cancioneiro ecoa.
Para o novo disco, ele decidiu iluminar canções desconhecidas, metade delas letradas por Chico Buarque, com quem divide o patrimônio artístico acumulado. Edu diz que Chico não canta em seu novo trabalho, porque já emprestara sua voz em outras ocasiões. "A gente se encontra quando tem de se encontrar, segue a mesma amizade", afirma. "Em nossos jantares, falamos de tudo, menos de música, ninguém é obrigado a ficar ouvindo esse papo."
Agora, Edu resgata a canção "Salmo", composta com Chico, em 1985, para a peça "O Corsário do Rei", escrita e dirigida por Augusto Boal. A faixa é confiada à voz de Zé Renato. O tenor de timbre leve reforça a natureza etérea da canção, construída em bases harmônicas que enfatizam a temática religiosa.
"Conturbam-se meus ossos/ Meu vulto perde a cor/ Minh’alma está confusa/ Fustigai-me, meu Senhor", diz a letra. A alma atormentada é típica do eu lírico barroco, aprisionado entre o prazer terreno e a busca pela vida eterna. Tal ambivalência se realiza na ascensão do corpo —"conturbam-se meus ossos"— até a alma —"meu vulto perde a cor".
A autopenitência, no entanto, é envolta nas linhas melódicas angelicais do piano de Cristóvão Bastos, da flauta de Mauro Senise e do violão de Paulo Aragão. A banda se completa com o baixo de Jorge Helder, a bateria de Jurim Moreira e o acordeon de Kiko Horta. Juntos, eles encaminham a atmosfera etérea até "Sobre Todas as Coisas", uma balada dolorida, presente no espetáculo "O Grande Circo Místico", de 1983.
Edu diz sempre que prefere as canções lentas. Para ele, as baladas duram no tempo, enquanto os hits tendem ao sucesso efêmero. Pois, em Sobre Todas as Coisas", as dissonâncias pontuadas pela flauta são como punhaladas num coração sofredor. "Pelo amor de Deus/ Não vê que isso é pecado?/ Desprezar quem lhe quer bem", canta Montarroyos.
Aqui, a temática religiosa habita uma dimensão terrena e contemporânea. O intérprete roga a clemência divina para retomar um amor perdido. Edu não economiza poesia e assume o microfone para entoar uma composição com seu primeiro parceiro, Vinicius de Moraes. Em "Silêncio", a voz grave de Edu soa como um contraponto aos demais intérpretes.
O timbre permanece o mesmo, aveludado e um pouco anasalado, dizendo delicadezas do tipo "escuta o silêncio/ que fala de tudo". Numa cadência agitada, Moreno interpreta "Ave Rara", parceria com Aldir Blanc que flerta com a escala da música árabe. A faixa se encerra com um "scat singing" de tirar o fôlego.
Ao século 21, a sofisticação de Edu transmite a imagem formal, típica de um homem que estudou para ser advogado, mas nunca foi. Mesmo em cena, ele veste roupas sociais, como se estivesse no escritório. "Eu sempre senti uma inadequação no palco", diz o artista, que nos anos 1980 se ausentou das casas de show.
"Eu não acho que tenho de estar ali, sou compositor, mas na minha época todo mundo era pressionado a se apresentar. Não era possível viver de direitos autorais. Hoje, nem se fala. Como uma pessoa que escreve canções vive? Olha, Vinicius dizia uma coisa muito certa, ‘não vamos falar de direitos autorais, porque isso dá câncer’", afirma, rejeitando a fama de arredio.
"Só se você me comparar com gente da minha geração que dá 400 entrevistas por dia, aí talvez eu seja uma pessoa avessa a holofotes." Sua inadequação é também artística. Edu gosta de dizer que faz música esquisita. Seu primeiro alumbramento ocorreu ainda nos anos 1960, na boate Au Bon Gourmet, em Copacabana.
Ali, o jovem assistiu ao trio Tom Jobim, João Gilberto e Vinicius de Moraes, que tomou a palavra para apresentar uma nova canção. Era "Garota de Ipanema". Pouco tempo depois, Edu já frequentava o Beco das Garrafas, ponto de encontro da boemia carioca.
Para fundar uma linguagem própria, o músico conta ter unido as batidas do violão joãogilbertiano à percussão africana, então representada por Baden Powell. Desde o início, Edu se mostrava filiado ao projeto modernista de Heitor Villa-Lobos, numa tentativa de apreender a alma do país. "Sou brasileiro de estatura mediana/ Gosto muito de fulana, mas sicrana é quem me quer", cantaria em "Lero-Lero", do álbum "Camaleão", de 1978.
Não por acaso, o artista foi o primeiro a gravar, no mesmo disco, o poema de Ferreira Gullar para "O Trenzinho do Caipira", de Villa-Lobos. Edu havia lançado os fundamentos de seu projeto musical na década anterior. Se Villa-Lobos se apropriou dos chorões, Edu traçou pontes entre a bossa nova e os ritmos tradicionais do Recife, onde passava as férias de verão quando criança.
Por isso, a temática memorialista é central em sua obra, deixando seu rastro de melancolia nas canções. Em 1966, ele lançou "Edu e Bethânia", em parceria com Maria Bethânia, com o sucesso "Upa, Neguinho". "Isso é uma musiqueta", ele diz. "Eu fiz a música correndo e as pessoas gostaram." Enfileirando os sucessos "No Cordão da Saideira" e "Zum-Zum", Edu estabeleceu, em paralelo, a luta política contra a ditadura como segunda linha temática.
Dela, fazem parte as canções da peça "Arena Conta Zumbi", de 1968. "Minha luta política era bem diferente do que é feito na maioria das vezes, no passado e atualmente", conta o músico. "Já ouvi muito diretor dizendo que o compositor tal é bom pela letra engajada e você vai ver e a música é uma merda. Eu nunca fiz panfleto."
Edu logo se irmanaria a Tom, outro tarado por Villa-Lobos. Em 1981, a dupla lançou a obra-prima "Edu & Tom, Tom & Edu", com "Vento Bravo" e "Pra Dizer Adeus". "Eu cantei muitíssimo bem", diz Edu, sobre a diferença da primeira gravação de "Luiza" para as demais. Foi um disco feito por acaso, criado por insistência de Tom, que só iria participar de uma faixa. "Vai ser só isso? Eu botei perfume para ir ao estúdio te encontrar", dizia Tom a Edu.
Os dois iam até a Plataforma, um antigo bar no Leblon, antes das sessões no estúdio. "A gente tem de beber depois, não antes", lembrava Edu a Tom. Mas não adiantava. Tom já chegava calibrado para as gravações, em que as duas vozes de uísque se misturavam, cantando o amor. Nos anos 1980, Edu trocou o violão pelo piano e solidificou o agrupamento de canções românticas, com a poesia de Chico.
Interpretada por Mônica Salmaso, "Beatriz", também de "O Grande Circo Místico", é um dos raros sucessos incluídos em "Oitenta". "Mônica é a melhor de todas, canta melhor do que todo mundo que eu conheço, é a mais afinada, a mais interessante e não abre mão de seu repertório, que para mim é perfeito, para satisfazer às gravadoras", diz.
A faixa já inclui a mudança feita, em março, por Chico. No lugar de "a vida da atriz", se ouve agora "a sina da atriz". Edu adorou a mudança e diz nunca ter visto uma canção demorar 40 anos para ficar pronta. Ele só se irrita quando cantam as notas erradamente. "Toda hora alguém erra as minhas composições, trocam os meus acordes, nenhum autor gosta disso", afirma.
"Tim Maia cantava ‘A Bela e a Fera’ errado, porque não entendia os intervalos. Eu dizia ‘não é assim’, e ele cantava do jeito dele. Se fosse hoje, era só apertar um botãozinho e, pronto, tudo no lugar".
Na sua torre de marfim, Edu quer sossego. Quer ouvir Franz Liszt e Aaron Copland, de preferência degustando um bom vinho.
"Não estou preocupado se o meu público se renovou, se é grande, se é pequeno. Sei que minha música ficou mais complexa com o tempo, ainda bem. Sei que tem gente que valoriza o meu trabalho e tem gente que não entende nada do que eu faço. Não penso em tocar no rádio. Eu não ouço rádio há 40 anos. O que toca lá? Só ‘shit music’ [música de porcaria]. Tenho 80 anos e estou muito bem com isso. Pretendo fazer a minha música e é isso."
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