Em frente à televisão, ouço falar o secretário-geral da ONU, António Guterres, e de imediato começo a tremer. Recordo a tabacaria de Fernando Pessoa como se ela própria fosse também um teatro de guerra. (Come chocolates, pequena; Come chocolates!)
Dentro de mim, outro volante, o da Ode marítima de Álvaro de Campos, começa lentamente a agitar-se. A guerra Israel-Hamas não é só uma guerra, ela é a continuação da outra e gatilho de outras. "Isto não surgiu do nada", disse o português.
As palavras, afiadas como facas, atingem o coração do sofrimento israelense. Em outro canal, uma reportagem mostra nas ruas de Lisboa um mendigo alienado gritando que a Terceira Guerra Mundial já começou; um comentador de TV confirma essa declaração.
Comparando a Ucrânia a Israel —"países cercados por inimigos que os querem aniquilar totalmente"—, Joe Biden, o presidente americano em vésperas de campanha eleitoral, também confirma o comentador, e a Rússia se iguala ao Hamas. Come chocolates!
A guerra dói porque mata. Mas dói ainda mais porque nos últimos 70 anos nos habituamos a pensar que a humanidade era boa. Os países europeus, da união estrelada de azul, envelheceram tanto que apenas mantiveram jovem a volúpia do lucro. Assistem, necessitados, às transformações do mundo, despojados de valores e carregados de imigrantes, contrariando sua nova identidade que não tarda em chegar.
A guerra enoja. Enoja ainda mais saber que ela se alimenta da cupidez e do lucro. De empresários implacáveis, generais de ocasião e estadistas de pacotilha. Palhaços, comediantes, poetas, picaretas, oportunistas. Come chocolates. Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Na guerra ninguém tem razão. Por definição cartesiana e por redução ao absurdo. Se alguém tivesse um pingo de razão, todas as guerras ter-se-iam evitado. De Troia a Dunquerque. De Waterloo a Gaza. De Aljubarrota ao Jenipapo. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
As assembleias gerais, os estúdios de televisão e os teatros da guerra já não aceitam argumentações lógicas; e, por isso, a lógica, não pode ser usada em qualquer circunstância. As palavras do secretário-geral da ONU, lúcidas como pedras, atingem a hipocrisia dos interesses que se alimentam da dor dos mortos e dos prisioneiros. Israelenses, palestinos, russos, ucranianos. Seres humanos.
Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que embrulha as notícias com que os senhores da guerra a todos mentem — que é de folha de estanho, penso que a guerra mundial já começou — e deitamos tudo para o chão, como temos deitado a vida.)
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