Razão tinha o poeta: os seres humanos, de fato, nunca suportaram demasiada realidade. Quando a realidade é excessiva, irracional, desumana, a mente refugia-se em explicações familiares, efabulações, dissonâncias cognitivas.
Reparei no fenômeno, pela primeira vez, no 11 de setembro de 2001. Osama bin Laden declarava, com todas as letras, a sua Jihad contra os infiéis?
Osama era alguém maluco e primitivo. Ele era, literalmente, um homem das cavernas.
Ou, então, o terrorismo só existia por causa da pobreza, da exploração, dos Estados Unidos, dos extraterrestres.
Osama falava. O auditório ocidental falava por cima, incapaz de escutar o som cristalino que vinha das trevas.
Com Vladimir Putin, a mesma coisa: o tirano nega, até agora, o direito à existência da Ucrânia, que será sempre inseparável da mãe Rússia?
O auditório, incapaz de entender a mundividência do homem, prefere versões benignas: a culpa é do alargamento da Otan para leste ou das pretensões "europeias" de Volodimir Zelenski, por exemplo.
Como escreveu o historiador Robert Kagan, um diplomata do século 19 reconheceria de imediato as ações de Putin como o mais puro imperialismo territorial.
Para os homens do século 21, essa hipótese é tão exótica como, sei lá, a Inquisição ou o canibalismo. "Tem de haver outra explicação", dizem eles, em estado atordoado.
Mas a dissonância cognitiva mais brutal apareceu agora, depois da barbárie cometida pelo Hamas em Israel. No Sunday Telegraph, Einat Wilf, uma voz da esquerda israelense, tem até um nome para o fenômeno: o "westplaining".
Escreve ela: uma parte do Ocidente que marcha nas ruas a favor dos palestinos projeta sobre o Hamas um velho figurino, recusando ou ignorando o que o Hamas defende.
Para esse auditório crédulo, que age de boa-fé —uma vez mais, psicopatas ou antissemitas não jogam nesse time—, o Hamas é uma espécie de Fatah mais agressiva, que apenas luta pelo fim da ocupação e por um Estado palestino independente.
Esses dois objetivos estão certos, mas não contam tudo. Contar tudo é relembrar que o Estado que o Hamas defende pressupõe o fim de Israel. A ocupação, nesse contexto, é o próprio estado judaico, não a sua presença na Cisjordânia —uma presença parcial, desde os Acordos de Oslo— ou em Gaza —que terminou com a retirada unilateral de 2005.
Esse objetivo foi claramente articulado na Carta do Hamas de 1988. Entre exortações à matança de judeus e referências respeitosas aos "Protocolos dos Sábios de Sião" —documento forjado na Rússia czarista, "provando" uma conspiração judaica para dominar o mundo e assim justificando os pogroms contra judeus—, o Hamas defendia um Estado teocrático em toda a Palestina.
Só em 2017 o grupo apresentaria uma nova "carta" que, no essencial, repete o objetivo estratégico da antiga: ao mesmo tempo que aceita um Estado palestino no território árabe que existia antes da guerra feita em 1967, o controle total da Palestina permanece um desejo intocado —"do rio [Jordão] ao mar [Mediterrâneo]", ou seja, sem Israel no meio.
É esse slogan que as massas acéfalas repetem nas passeatas genocidas. Elas imaginam, sempre na versão benigna, que estão defendendo a solução dos dois Estados —e não a eliminação de um deles, Israel.
Será preciso um desenho para explicar que os termos "dois Estados" e "Hamas" são uma contradição insanável?
No seu artigo, Einat Wilf lembra os "apaziguadores" britânicos que, perante Hitler, tentaram racionalizar o comportamento do líder nazista.
Não, ele não queria alargar o "espaço vital" da Alemanha, ao contrário do que afirmara no seu "Mein Kampf", diziam eles. A dissonância cognitiva era a mesma. As palavras de Hitler deveriam ser reescritas pelas fantasias de um auditório apavorado. Deu no que deu.
A inexistência, até hoje, de um Estado palestino independente pode ser explicada por muitos fatores. Da rejeição árabe à insana construção de assentamentos israelenses na Cisjordânia, a lista é longa.
Mas a solução dos dois Estados, a única solução realista ao conflito, só é pensável quando se aceitam os dois Estados.
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