Numa próxima situação de emergência que imponha ao governo de São Paulo a necessidade de editar normas de comportamento para toda a população em prol do interesse coletivo – e novas crises virão, cedo ou tarde –, muitos paulistas sentir-se-ão desestimulados a cumpri-las, pois aqueles que o fizeram durante a pandemia de covid-19 acabam de ser tratados como otários pelo Palácio dos Bandeirantes e pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp).
Na quarta-feira passada, a Alesp aprovou o Projeto de Lei (PL) 1.245/2023, que, entre outras providências, concede anistia total das multas aplicadas aos cidadãos que violaram a legislação sanitária durante a pandemia. Ao chancelar a iniciativa do governador Tarcísio de Freitas de cancelar todas as multas, a Casa se posicionou frontalmente contra o interesse público. Uma lástima.
Pouco importam as motivações pessoais do governador ao propor essa anistia absurda e a dinâmica das relações entre o Executivo e o Legislativo em São Paulo. O fato é que ambos os Poderes passaram uma péssima mensagem para a sociedade ao premiarem o individualismo irresponsável. A mais nefasta dessas mensagens é que, a partir de agora, resta claro que comportamentos lesivos ao interesse coletivo não são repreensíveis pela administração pública em momentos de crise – ou, se são, decerto poderão ser relevados adiante.
Em defesa da anistia, o governo estadual argumentou que a aplicação das multas “não contribuiu para o desenvolvimento social e econômico do Estado”. Ora, não há multa no mundo que se preste a isso. Esse tipo de multa é uma sanção administrativa de caráter dissuasório, que, portanto, não visa à arrecadação. Basta dizer que se está falando de um montante de R$ 73 milhões em multas aplicadas, praticamente nada diante do orçamento de São Paulo.
Malgrado o PL 1.245 ter sido aprovado pela Alesp e, muito provavelmente, venha a ser sancionado pelo governador Tarcísio de Freitas, talvez seja cedo para os anistiados comemorarem. A questão decerto irá parar no Judiciário. Em primeiro lugar, porque a anistia foi concedida por meio de um “jabuti” convenientemente inserido num projeto de lei que versava sobre outra matéria. Em segundo lugar, e principalmente, porque se trata de um dispositivo inconstitucional.
A anistia, como dissemos neste espaço à época do envio do PL 1.245 à Alesp, “fere de morte o princípio da igualdade de todos perante a lei, viga mestra da República, ao dividir os cidadãos em duas classes: os anistiados e o resto, sobre os quais recai todo o peso do Estado sancionador” (ver Anistia absurda em São Paulo, de 18/8/2023).
Em meio a tanta confusão sobre os papéis e responsabilidades de cada um dos Poderes nestes tempos esquisitos por que passa o País, eis uma oportunidade de ouro para o Judiciário corrigir, sem receio de extrapolar seus limites constitucionais, um erro crasso cometido simultaneamente pelo Executivo e pelo Legislativo. É em situações como essa que o sistema de freios e contrapesos deve mostrar seu valor para a democracia.
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