O tema da escrita tem dominado a coluna nas últimas semanas, mas o papo andou concentrado na ponta daqueles que já a dominam, uma minoria bem pequena da população brasileira. Hora de recuar alguns passos.
Muito antes de enfrentar questões avançadas de escrita, é preciso que a pessoa aprenda de fato a escrever –e nisso o sistema de ensino brasileiro tem falhado com a maioria.
Chegamos a uma situação desoladora em que multidões são despejadas no mercado de trabalho com seus diplomas de ensino superior sem terem obtido um domínio da escrita formal que deveria estar assegurado desde o ensino fundamental.
Na pressa –mais que compreensível, obrigatória– de recuperar o tempo perdido em décadas de exclusão e normalização do analfabetismo, o Brasil parece ter topado ampliar a alfabetização a qualquer preço.
Se a ideia for essa, está dando certo. De dois dígitos no início do século, o número de analfabetos plenos no país caiu para 5,6% no ano passado, segundo o IBGE. Muito bom.
No entanto, como informa o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), entre 2001 e 2018 se manteve teimosamente constante –em torno de 12%– a fatia dos brasileiros que são proficientes em leitura e escrita.
Isso lembra uma tirada de João Ubaldo Ribeiro, muitos anos atrás: "Fala-se o tempo todo em exclusão digital, essa calamidade que nos aflige. Vamos combatê-la, sim. Mas vamos ter certeza de que, na hora de usar o computador, o recém-incluído conheça as letras do teclado".
Acaba de sair um livro que acende um farol nesse breu: a "Gramática do Português Brasileiro Escrito" (Parábola), dos linguistas Francisco Eduardo Vieira e Carlos Alberto Faraco. O livro é uma ótima notícia por várias razões, entre as quais destaco duas.
A primeira é sua consolidação sóbria das bases de uma norma-padrão brasileira, livre de regrinhas chupadas (com bem-vindo duplo sentido) de gramáticos portugueses –cujo trabalho é normatizar uma língua diferente da nossa, chamada português europeu.
Duzentos anos depois da Independência e cem anos após Mário de Andrade proclamar que, na língua, "o brasileiro tem o direito de ser", o conservadorismo de reconhecer a importância da norma-padrão se casa finalmente com o espírito revolucionário de exigir que ela seja a nossa.
A segunda razão pela qual a gramática de Vieira e Faraco brilha é o fato de retomar com grande ênfase uma dimensão do ensino da língua que andou negligenciada e às vezes até negada nos últimos tempos: a análise sintática.
A importância de desenvolver a consciência sintática –ter a "efetiva compreensão das possibilidades estruturais da frase"– assume no livro o papel que sempre acreditei lhe caber no ensino da escrita.
Nunca me esqueci do dia em que essa matéria escolar cascuda, até então impenetrável, se abriu para mim como por mágica –ou como a máquina do mundo se abrindo para Drummond.
Eu tinha 12 anos e, naquele momento, escrever virou o que é para mim até hoje, uma brincadeira prazerosa de desmontar e remontar frases.
Ainda bem que os modelos de análise sintática usados por Vieira e Faraco são muito melhores –mais simples e mais funcionais– do que os da minha infância.
Em nome da transparência, falta dizer que os autores me convidaram a escrever um textinho de apresentação para essa edição, o que fiz com muito orgulho. Acreditem que isso em nada diminui a importância da obra.
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