Por Maria Fernanda Rodrigues
27/10/2023 | 03h00
2 min
de leitura
Esta é uma coluna sobre um livro não escrito, sobre histórias enterradas com os nossos mortos e sobre as que ganhamos quando paramos para ouvir o outro.
Há alguns anos, atendi o telefone na redação e uma senhora, chateada com algumas notícias que tinha lido sobre um parente distante, queria contar a versão dela de tudo. Na verdade, a versão de uma tia dela, que já tinha morrido.
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Era uma história difícil de entender, e havia cadernos manuscritos. Combinei de encontrá-la para ver os originais e tentar descobrir se o que ela achou esquecido numa mala antiga era uma curiosa anedota familiar ou algo que poderia ter algum valor histórico – ou, mesmo que não tivesse, se ao menos poderia interessar aos leitores.
No dia 15 de agosto de 1909, Euclides da Cunha tentou matar Dilermando de Assis, amante de sua mulher, e acabou morto por ele. Walinda da Cunha Vieira, a tia-avó de Regina Coeli Vieira Barini – a senhora que me ligou naquela manhã de 2019 –, tinha então 15 anos e testemunhou os efeitos da tragédia que tirou a vida de seu tio, o autor de Os Sertões. 50 anos depois, ela abriu um caderno novo e escreveu suas memórias daquele dia.
Os cadernos de Walinda, sobrinha de Euclides da Cunha, guardados por Regina Coeli
Os cadernos de Walinda, sobrinha de Euclides da Cunha, guardados por Regina Coeli Foto: Taba Benedicto/Estadão
Lendo seus manuscritos com letra caprichada em páginas amareladas pelas seis décadas em que o caderno ficou perdido e depois guardado em um apartamento na Aclimação, sabemos como a família tinha passado o dia do fatídico duelo e como a notícia chegou até a casa dos Cunhas no dia seguinte.
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Com a ajuda de Walinda, nos vemos na sala daquela casa em São Carlos, no interior de São Paulo, acompanhamos a movimentação e a reação de sua mãe, a irmã de Euclides, e de seu avô, que chorava baixinho e morreria um mês depois. No caderno, havia outro texto – o registro de um encontro com Euclides na Páscoa do ano anterior à sua morte, no sítio, quando ela se aborreceu com ele ao ser chamada de cigana.
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Regina estava doente e quis tirar os cadernos do baú para ajudar a preservar uma memória que foi muito importante para aquela tia querida, num momento em que os herdeiros de Dilermando buscavam justiça histórica. E para que essa história não se perdesse – como tantas outras que ela ouviu, sem se dar conta da importância e sem registrar, e que Walinda tampouco colocou no papel. São passagens que não mudam o curso da História, ou de uma biografia, mas mostram outros ângulos – e afetos.
Regina morreu dois anos depois de contarmos sobre esses cadernos nas páginas do Estadão (leia aqui). Soube agora, e lembrei desse novelo que desfiamos para tentar reconstruir essa memória.
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