Em uma cafeteria vazia do Ministério da Justiça do Brasil, a viúva conferiu as horas. Ela girou o anel de noivado. Tomou um gole de café. Verificou as horas novamente. “Estou ansiosa”, disse Rosane Gutjahr. Ela também sentiu a raiva familiar que a guiara em quase todas as suas ações desde 29 de setembro de 2006. Foi quando um jato executivo pilotado por dois americanos, Jan Paladino e Joseph Lepore, colidiu com um Boeing 737 brasileiro sobre uma parte remota da floresta amazônica.
O avião maior - Voo Gol 1907, que ia de Manaus para o Rio de Janeiro - desintegrou no ar. Todos os seus 154 passageiros e tripulantes foram mortos. O corpo do marido de Gutjahr, Rolf, foi encontrado entre os destroços no chão da floresta. O Embraer Legacy 600, por outro lado, conseguiu pousar em uma base militar próxima. Nenhum dos sete passageiros e tripulantes a bordo - todos americanos - sofreu ferimentos.
Hoje, Gutjahr esperava descobrir se a justiça finalmente chegaria aos homens que ela culpa pela morte do marido. A questão da responsabilidade no que era, na época, o mais mortal desastre de aviação na história do Brasil, dividiu os dois maiores países do hemisfério Ocidental. Segundo os americanos, a colisão foi causada pelos controladores de tráfego aéreo brasileiros. Os pilotos não fizeram nada de errado - foram até considerados heróis por pousar com segurança o jato sob condições extraordinariamente desafiadoras.
Após serem detidos pelas autoridades brasileiras por semanas, Paladino e Lepore foram recebidos nos Estados Unidos com uma recepção triunfante. “Será, de fato, uma temporada de festas abençoada”, comemorou o senador Charles E. Schumer.
Mas, no Brasil, os pilotos americanos foram considerados culpados. Um tribunal criminal determinou que Paladino e Lepore haviam voado enquanto o transponder do avião estava inativo, efetivamente deixando os controladores de tráfego aéreo sem saber a altitude precisa de seu jato. Eles foram considerados culpados em 2011 por atacar a segurança de uma aeronave e condenados a 40 meses de liberdade condicional. “O fracasso dos pilotos causou a tragédia”, disse a futura presidente Dilma Rousseff enquanto fazia campanha para seu primeiro mandato.
Paladino e Lepore negaram todas as alegações de má conduta e não foram acusados de nenhum crime nos Estados Unidos. O Conselho Nacional de Segurança de Transportes dos EUA afirmou que os pilotos não tinham conhecimento da “inativação inadvertida” do transponder e não violaram nenhuma regulamentação.
Paladino, hoje piloto da American Airlines, não respondeu aos pedidos de comentário. Lepore, que também continua a voar profissionalmente, recusou-se a comentar.
O impasse é agora um estudo de caso na dificuldade de cumprir sentenças criminais de estrangeiros que vivem no exterior. Após todos os recursos terem se esgotado, o Brasil solicitou a extradição dos pilotos em março de 2020. Mas este ano, os Estados Unidos rejeitaram o pedido. Agora, parece improvável que os pilotos voltem ao Brasil para cumprir suas sentenças. “O tratado entre o Brasil e os Estados Unidos não prevê extradição para esse crime”, disse o advogado brasileiro deles, Theo Dias, em um comunicado ao The Washington Post.
A maioria das famílias das vítimas há muito desistiu de esperar. Mas não Gutjahr. Ela dedicou sua vida a trazer os dois pilotos para alguma forma de justiça brasileira. Ela vendeu seu negócio para eliminar distrações. Ela se juntou ao caso dos promotores de forma oficial e gastou centenas de milhares de dólares em honorários advocatícios para avançar. Ela tem pressionado autoridades por reuniões de status.
Agora, semanas depois de os Estados Unidos negarem o pedido de extradição do Brasil, Gutjahr, 66 anos, estava esperando por sua última e melhor chance de reparação. O juiz brasileiro que condenou os pilotos havia determinado em 2019 que os pilotos poderiam cumprir sua sentença em solo americano. Ela tinha uma reunião pela manhã para perguntar a um alto funcionário da Justiça se isso ainda poderia acontecer.
Ela terminou seu café. Ela sentiu aquela raiva subindo novamente. “Cento e cinquenta e quatro mortes”, ela disse. Ela saiu do prédio e acendeu um cigarro. “Vou garantir que os pilotos paguem”, disse ela. “Vou lutar até ficar louca.” Então ela apagou seu cigarro e dirigiu-se ao Ministério da Justiça.
Colisão no ar sobre a floresta
A tragédia começou com uma celebração. A empresa americana de fretamento ExcelAire acabara de comprar um jato executivo do fabricante brasileiro Embraer. Assim, em 29 de setembro de 2006, executivos de ambas as empresas brindaram à compra e depois se prepararam para o voo inaugural do jato a partir da cidade brasileira de São José dos Campos.
Lepore e Paladino estavam na cabine, conforme relataria o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos do Brasil, para se familiarizarem com a rota e a aeronave em si. Este era o primeiro voo deles no Brasil. A ExcelAire não respondeu a um pedido de comentário.
O jato estava programado para voar a 37 mil pés até Brasília e depois descer para 36 mil pés. Mais tarde, ele subiria para 38 mil pés até chegar à cidade de Manaus. O plano de voo manteria o jato dentro da altitude padrão enquanto transitava pela rota aérea de dois sentidos chamada UZ6.
Mas, ao decolar, os controladores de tráfego aéreo autorizaram os pilotos a manter a altitude de 37 mil pés - colocando-os na mesma altitude que o tráfego aéreo que se aproximava.
Isso não é incomum: os controladores de tráfego aéreo rotineiramente emitem novas diretrizes para os pilotos durante o voo. Mas duas falhas prepararam o voo para o desastre. Primeiro, o jato perdeu o contato de rádio com o controle de tráfego aéreo. Em seguida, seu transponder parou de transmitir o sinal.
Isso significava que o controle de tráfego aéreo não podia ver sua altitude precisa. Mais crucialmente, isso anulou o sistema de prevenção de colisões de tráfego da aeronave, que depende do sinal do transponder para alertar os pilotos próximos de sua localização. Por 55 minutos, o avião voou centenas de milhas efetivamente no escuro, sem faróis.
Ainda assim, o voo foi suave, lembrou o passageiro Daniel Bachmann, que trabalhava para a Embraer. Então senti esse enorme estrondo”, disse Bachman ao The Washington Post. “Como se estivéssemos sentados em arquibancadas e alguém tivesse batido nelas com um taco de beisebol.”
Alarmes dispararam. O avião começou a descer. Os pilotos não tinham ideia do que haviam atingido: “Que diabos foi isso?” exclamou Paladino, de acordo com o relatório do acidente.
As árvores abaixo, disse Bachman, estavam cada vez mais próximas. “Pensamos, ‘É isso’.”
Mas de alguma forma, os pilotos conseguiram chegar a uma pista de pouso na floresta. Foi um milagre. Até que não foi: logo descobriram que haviam atingido um 737, e todas as 154 pessoas a bordo estavam mortas. “Horrível”, Paladino diria mais tarde ao Matt Lauer do Today Show. “Apenas estar envolvido em algo assim. Eu nunca teria compreendido que algo assim pudesse acontecer.”
A raiva crescia no Brasil. Lepore e Paladino foram detidos, libertados e voltaram para os Estados Unidos, prometendo cooperar com as autoridades brasileiras. Paladino negou as alegações de má conduta.
“Os fatos do caso virão à tona”, ele disse. “Só queremos que a verdade venha à tona.” Então veio o julgamento, a condenação e a sentença. Nenhum dos pilotos jamais retornou ao Brasil.
“Não foi um acidente; isso foi crime”
O caso de extradição nunca seria fácil. Primeiro, os Estados Unidos não concordaram que os pilotos haviam cometido irregularidades. Segundo, o suposto delito não constava do tratado de extradição assinado entre as nações em 1961. Mesmo que as autoridades dos EUA quisessem cooperar, elas não teriam base legal para agir.
“A extradição é um grande negócio”, disse John Parry, um especialista em extradição na Faculdade de Direito Lewis & Clark. “E aqui, o suposto crime simplesmente não se encaixa no tratado.”
O Escritório de Assuntos Internacionais do Departamento de Justiça dos EUA, que gerencia pedidos de extradição, se recusou a comentar.
Conforme ficou claro que os pilotos não retornariam, os brasileiros que perderam entes queridos no 737 acreditavam não ter outra escolha senão seguir em frente. Muitos aceitaram algum tipo de indenização das companhias aéreas em meio a uma enxurrada de processos, mas se sentiram impotentes para punir os pilotos.
“Melhor era esquecer”, disse Jorge André Cavalcante, ex-presidente da associação das vítimas do acidente, cujo sobrinho morreu no acidente. “Gastar toda a sua vida lutando por justiça, era apenas muito doloroso”, disse Neusa Felipeto Machado, que perdeu o marido. A maioria das famílias, incluindo Machado, acabou aceitando indenizações das companhias aéreas envolvidas na colisão. A associação foi reduzida a apenas alguns membros.
Apenas uma pessoa, disse Machado, nunca vacilou. “Rosane.” Em sua casa em Curitiba, Gutjahr ergueu um pequeno altar para Rolf. Ela nunca tirou seu anel de noivado. Ela criou a filha deles, que tinha 4 anos na época do acidente, para entender o caso como ela.
“Isso não foi um acidente; isso foi um crime”, disse Luiza Gutjahr, agora com 21 anos. “Meu pai perdeu a vida por causa da imprudência de dois criminosos.” Entrevista após entrevista, ano após ano, Gutjahr exalava comentários que pareciam demonstrar tanto sede de vingança quanto de justiça. Em 2012: “Dizem que o tempo diminui a dor; eu lhes digo que não.” Em 2013: “Eles têm que receber a pena máxima”. Em 2021: “Eu quero pegar a casa deles, quero pegar o carro deles, quero pegar tudo”, ela disse. “Isso não trará meu marido de volta, mas eles estão vivendo normalmente.”
O advogado Daniel Roller, que representou Gutjahr em sua busca por anos, disse que tentou vários momentos para aconselhá-la de que o que ela queria não era possível. A magnitude da penalidade provavelmente nunca igualaria a magnitude da perda dela. Talvez, ele disse a ela gentilmente uma vez, seria melhor deixar isso para lá. Focar sua vida em outro lugar. Ela não queria ouvir falar disso. “Eu nunca vi ninguém tão determinada”, ele disse.
Uma busca longa e solitária
Mas enquanto ela estava sentada em um amplo escritório no Ministério da Justiça do Brasil, sua determinação foi posta à prova. A notícia não era boa. Augusto Botelho, secretário nacional de Justiça do Brasil, disse a ela que o governo a apoiava. Mas isso não seria suficiente para levar os pilotos à justiça. Isso ficaria a cargo dos Estados Unidos, que provavelmente não aplicariam uma sentença brasileira em seu território.
Botelho se desculpou por não poder fazer mais, desejou o melhor para Gutjahr e a conduziu para fora da sala. Ela estava sozinha novamente. Esses eram os momentos em que mais desejava que Rolf ainda estivesse vivo. Havia tanta alegria nele. Ele teria sabido o que dizer para fazê-la se sentir melhor. Ela saiu e acendeu outro cigarro.
“Houve 154 mortes”, ela disse. “Uma completa falta de respeito pelo sistema de justiça americano.” Ela percebia discriminação. “É porque somos do Terceiro Mundo?”, ela disse. “Porque não somos tão fortes como os americanos? Mas temos os mesmos corpos, as mesmas dores, tudo igual.”
Mas o momento em que permitiu que a dúvida e a derrota enfraquecessem sua determinação passou rapidamente. Ela apagou o cigarro e partiu para os próximos passos. Se o juiz federal que preside o caso emitisse uma nova ordem judicial ordenando o cumprimento da sentença nos Estados Unidos, o governo teria um novo motivo para pressionar os americanos.
“Eu vou escrever para o juiz”, ela disse. “Vou pedir uma reunião.” Ela não estava pronta para desistir do propósito de sua vida. Ainda não. “Cento e cinquenta e quatro mortes”, ela repetiu. “Eu não vou esquecer.”/ Contribuiu Marina Dias, em Brasília.
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