A Constituição Federal brasileira ter completado 35 anos é motivo de intensa comemoração para a sociedade civil e para as instituições públicas. Trata-se do maior período de estabilidade democrática já vivenciado no Brasil. Os 35 anos não seriam possíveis sem a atuação direta do seu maior guardião: o Supremo Tribunal Federal. Contudo, por perplexidades irônicas do atual espírito do tempo (Zeitgeist), o STF, mesmo tendo sido a instituição que resguardou a democracia brasileira, transformou-se no inimigo ficcional escolhido por parcela da sociedade e da política brasileira.
Um slogan bastante atual do movimento que se formou contra a corte é a frase "supremo é o povo". Essa construção sintética do pensamento aparece em faixas, camisetas e é bradada em discursos políticos que apresentam retaliações camufladas de reformas constitucionais. Gera imensa perplexidade que, após o evento do 8 de janeiro, todas as propostas para reforma dos Poderes sejam direcionadas exclusivamente ao STF, de modo a indicar que a reforma do Supremo seria uma espécie de premiação ao golpismo.
Sabe-se muito bem que a política populista é feita através de palavras de ordem, dessa retórica mobilizadora de multidões. Até porque ela encerra uma ambiguidade que certamente passou despercebida: afinal, o povo inteiro é supremo ou só a parcela que discorda moral e politicamente do STF?
O uso de fórmulas como "supremo é o povo" nada tem de inédito. A expressão procura deslegitimar as instituições oficiais, introduzindo um claro componente moralista no discurso político e jurídico da democracia. O recurso à "soberania absoluta do povo" não tem conteúdo certo, logo, qualquer ideia cabe ali; por conseguinte, é mecanismo perfeito para subsidiar a ação populista em detrimento da democracia.
A afirmação "o supremo é o povo" para deslegitimar e ameaçar instituições teve ampla utilização num dos períodos mais sombrios da história: o Terceiro Reich. Não se trata de realizarmos um paralelismo automático, contudo seria uma negligência intelectual ignorarmos as raízes antiliberais dessa expressão.
No nazismo, um dos estratagemas mais hábeis foi transformar em critério último de validade das decisões políticas —e também das jurídicas—, justamente, a necessidade de se atender aos anseios da comunidade do povo alemão, a "Volksgemeinschaft". O argumento "pelo povo" seria suficiente para substituir conceitos básicos, como legalidade, Constituição e instituições.
Para os nazistas, a vontade popular era praticamente a única fonte do direito. Por essa razão, o nazismo é completamente antiliberal, na medida que rejeita instituições e lei. A expressão "supremo é o povo" é a repaginação desse antiliberalismo, mediante uso populista e fictício do conceito de povo.
Outrossim, esse slogan traz em si a falsa ideia de que as mazelas do povo brasileiro decorreriam da atuação do Supremo Tribunal Federal, de modo a isentar a responsabilidade dos demais Poderes.
Entre o "supremo é o povo" e a "comunidade do povo alemão" não há muita distância, no que diz respeito à finalidade. Sob argumento da vontade do povo estaríamos livres para "corrigir" qualquer decisão e "coagir" qualquer instituição, inclusive a Suprema Corte, caso esta decidisse contra os interesses do poder.
Atualmente, além de ataques institucionais, a fórmula do "supremo é o povo" carrega uma segunda perversidade —a tentativa de captura da real vontade da população. Ou seja, mediante estratégia populista, busca-se coagir o tribunal para não decidir contra determinados interesses.
É tentador acreditar que haja uma confusão entre o adjetivo "supremo", corriqueiramente usado na sua acepção de "principal", com a acepção jurídica de autoridade. Supremo é o povo, no sentido de resguardar, em prol desse povo, a democracia —mesmo quando ela é atacada pelo próprio povo. Nesse sentido, paradoxalmente, para que o povo seja supremo, o Supremo não pode ser o povo.
Portanto, mais do que um erro do ponto de vista semântico, jurídico e histórico, trata-se de um dos principais slogans do populismo autoritário para ameaçar o Judiciário, em especial sua Suprema Corte, em diversas democracias constitucionais: um risco supremo.
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