Demétrio Magnoli
"Não precisa ser sionista para apoiar Israel. Ser um idiota é o bastante." Hélio Doyle foi demitido da EBC por essa repostagem, que causou constrangimentos ao governo brasileiro. Antes dela, porém, em 17/10, horas depois da tragédia no hospital da Cidade de Gaza, postara o seguinte, para apontar o que lhe pareceu um escândalo jornalístico: "Juro que ouvi agora um comentarista de TV dizer que não se sabe quem atacou o hospital em Gaza". Devia ter sido demitido por isso.
Acho que ele referia-se à análise que fizemos, Guga Chacra e eu, na GloboNews, naquela noite. Doyle, jornalista veterano e ex-professor de jornalismo na UnB, teria o dever de saber não saber. Era muito cedo para cravar um veredito: na guerra, existem bombas errantes. Mas ele cravou, repetindo a versão do Hamas. No dia seguinte, o The Guardian, jornal de esquerda insuspeito de alinhamento ao governo de Israel, publicou uma análise meticulosa que tende a confirmar a versão israelense (shorturl.at/aCDE0).
No sábado, 21/10, a coluna do ombudsman da Folha voltou ao tema, mencionando a versão inicial da Al Jazeera (que é a do Hamas) e as versões de Israel e dos EUA, além de explicações da Associated Press e do Washington Post, que não conseguiram verificar de forma independente as versões contraditórias. Dessa síntese, extraiu a conclusão de que a imprensa precisa recorrer à OSINT ("open source intelligence"). Eu concordo, mas acrescento: também precisa divulgar notícias legítimas, mesmo quando contrariam as inclinações ideológicas do jornalista.
O ponto é que, entre o 17/10 e o 21/10, diversos veículos usaram a OSINT. Menciono apenas os mais destacados: o próprio The Guardian, o The New York Times e a The Economist. O ombudsman esqueceu de lê-los? Os três –e diversos outros– chegaram a conclusões similares. Será por isso que o ombudsman não os mencionou?
Na própria Folha, surgiram textos que deveriam ter aberto os olhos do ombudsman. Mariliz Pereira Jorge alertou para um jornalismo "refém do Hamas" e, citando a agência France-Press, apontou fortes incertezas inclusive sobre o número de mortos (shorturl.at/biEL7). Minha coluna roçou no tema, indicando o link para a análise do The Guardian (repito, para concentrar a atenção do ombudsman: shorturl.at/aCDE0). O ombudsman não leu a Folha? Ou leu, mas preferiu ignorar?
Qualquer jornalista mais ou menos atento ao noticiário internacional sabe qual é o limite da independência da Al Jazeera: os interesses diretos do emirado do Qatar. O mundo é complicado: o Qatar, onde se situa uma base militar dos EUA, acolhe os principais líderes exilados do Hamas como hóspedes –que, de lá, continuam abertamente a dirigir a organização terrorista. Por isso, no caso do conflito em Gaza, o "noticiário" da Al Jazeera só tem uma utilidade: conhecer a orientação emanada do regime qatari. Sugiro que, ao tratar especificamente desse tema com a finalidade de identificar a verdade factual, o ombudsman procure outras fontes...
Em tese, seria fácil descobrir o responsável pela tragédia no hospital, pois fragmentos de explosivos e munições trazem a "assinatura" de quem os opera. Contudo, o Hamas "limpou" a cena do crime de guerra no hospital antes de permitir o acesso de jornalistas. Assim, tudo o que se tem são as análises de veículos independentes por meio da OSINT. Elas reforçam a versão israelense de que a explosão decorreu de falhas em foguetes lançados contra Israel, do interior da Faixa de Gaza.
Não são conclusões definitivas, que talvez jamais venham à luz. Evidentemente, o evento no hospital não apaga outros tantos crimes de guerra cometidos por Israel, como o corte completo de fornecimento de água, eletricidade, remédios e alimentos para a Faixa de Gaza ou bombardeios indiscriminados que fazem um número inaceitável de vítimas civis. Mas, simetricamente, esses outros crimes de guerra não podem ser usados para ocultar as informações disponíveis sobre a tragédia no hospital.
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