É bem naquela hora. A hora em que cessa o ranger da cama do vizinho. Às vezes frenético, às vezes bem ritmado. Em média ruidosos vinte minutos, sempre depois das três, quando o morador do andar de cima chega do trabalho no bar. Que vigor! Não há tempo de banho, nem de lavar as mãos. Apenas girar a chave, bater a porta com o estardalhaço e atirar as roupas pro alto. O resto a sinfonia da cama nos diz.
É também o período em que lá embaixo a ambulância desliza sem pressa e sem dor.
As estrelas cochilam, o vento se apruma, o celular desmaia.
Quando Hamilton percebe todos esses sinais tem certeza. Está encurralado pela insônia.
O sono até ameaça, promete, mas só engana. Hamilton resgata a estratégia da infância: conta rebanhos e rebanhos de carneirinhos, em vão.
As principais notícias e colunas sobre o cenário político nacional, de segunda a sexta.
Segundos escorrem como minutos e minutos como horas. Agora há pouco eram dez pras quatro e, depois disso tudo, são... nove pras quatro. Quatro da manhã, que ele xinga de quatro da noite. Hamilton rola pra cá, onde a cama acaba. Pra lá, não quer. O colchão ficou largo demais para aquele lado, que ainda tem cheiro e mágoas.
Não, nada de concorrer com o jovem casal do andar de cima, mas dali daquele lado da cama vinha um ronco baixinho, que convidava ao repouso sereno.
Tantas noites de mão entrelaçadas., de acordar ao mesmo tempo, de se espreguiçar e brincar: Bom dia, luz do dia, um grito de amor.
Quanto mais lembra, mais o sono escapa.
Ninguém vai mandar áudio ou escrever, ninguém vai levantar para ir ao banheiro, ninguém vai esquecer o alarme do celular ligado. A solidão da insônia é a única companhia de Hamilton.
TV não vai ver, música não quer, podcast menos ainda. Resta a leitura.
O livro de Clarice, ainda virgem, é seu refúgio.
Escreveu assim Clarice Lispector num dos parágrafos da crônica Insônia infeliz e feliz, publicada no Jornal do Brasil:
"De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara: solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o nada. É um nada a um tempo vazio e rico."
Não foi só Clarice Lispector que se alimentou da solidão e do silêncio para fazer Literatura imortal. Outros gênios de nossas letras também. Hamilton nem vai tão longe, se recorda daquele amigo, apenas um estudante curioso por boas histórias. Também insone, ele vira a madrugada a remexer jornais velhos, beber água sem sede, andar pela casa.
Tem mania de apagar as luzes de casa e, protegido pela penumbra, tenta xeretar as janelas da vizinhança. Quem sabe uma mulher bonita e solitária de copo na mão? Um casal a discutir? Uma faísca que seja para chamar uma história, clarear a escuridão e trazer o dia. Um dia qualquer, um dia vadio. Desses que encurtam a vida e dão fim à lerdeza dos relógios.
*Luis Cosme Pinto é autor do livro de crônicas Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da editora Kotter
Nenhum comentário:
Postar um comentário