segunda-feira, 17 de julho de 2023

FORD E INDIANA, Por Pedro Doria


Harrison Ford não é um grande ator. No cinema americano de sua geração, ali entre 75 e 85, há canastrões — Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger. É também uma geração de grandes atores — Al Pacino, Robert De Niro, Robert Redford. Ford não é o típico canastrão, mas simplesmente não tem o brilho. É daqueles atores que pode fazer um arqueólogo aventureiro, um contrabandista espacial, um policial noir futurista, um detetive nova-iorquino numa comunidade Amish, até um psicanalista, e apresentará o mesmo conjunto de três ou quatro expressões faciais. O mesmo senso de humor. Aquilo que o distancia dos canastrões é que Ford nunca ousa como ator. Nunca busca emoções extremas, nunca assume um monólogo, um papel que o desafie. É um ator conservador, discreto, quase como se fosse ciente de seus limites. Harrison Ford não se leva a sério. Assim, quando está fora do papel, é um ator carismático, generoso com fãs, que dá entrevistas memoráveis. Simula um mau humor dentre os mais bem-humorados de Hollywood. Esse ator evidentemente limitado fez três dos papeis mais importantes do cinema da virada dos anos 1970 para 80. Han Solo, em Guerra nas Estrelas. Rick Deckard, em Blade Runner. E Indiana Jones. Papeis tão importantes, tão marcantes, que ele seguiu os repetindo século 21 adentro.

Mas o que é ser um grande ator? Durante o século 20, nos acostumamos no Ocidente com uma definição clara. Há três escolas — ou três escolas e meia. É possível ser um ator shakespeariano, capaz de uma interpretação discreta, quase seca, que sempre remete a um realismo de todo humano. É um ator que parece desejar que quem o assiste esqueça por completo que aquilo não é vida. Diametralmente oposto está o ator brechtiano, muito raro no cinema, mas do qual a Nouvelle Vague francesa e diretores como o dinamarquês Lars von Trier têm algum apego. Quem assiste é sempre lembrado de que há um quê de farsa ali. E existem os stanislavskianos, a escola russa, que busca o realismo absoluto, que insiste que os atores vivam intensamente cada uma de suas emoções tendo sempre consciência de que estão interpretando. O sueco Ingmar Bergman trabalhava com stanislavskianos. Mas tire do stanislavskiano a consciência de que está interpretando, ponha o sujeito num transe, como se fosse possível encarnar no sentido mais puro a personagem, e tem-se aquela meia escola que completa o conjunto. O Método de Lee Strasberg, que o construiu a partir do russo Constantin Stansislavski, e que deu ao mundo Marlon Brando, Paul Newman e, claro, Pacino, De Niro, Jack Nicholson.

Harrison Ford não é nada disso. Estudou interpretação num curso eletivo duma faculdade pequena do Wisconsin, aí se mudou para Los Angeles onde trabalhava como carpinteiro enquanto tentava se enfiar nalgum filme.

Mas é isso mesmo, vir de uma das três escolas, o que define um grande ator? Porque, ora, o governator e Stallone fizeram filmes de grande sucesso nos anos 1980, mas não são estes os filmes da década que as pessoas seguem vendo uma geração após a outra. Mas é possível dizer que não é um grande ator o artista que fez três papeis que, quarenta anos depois, seguem mexendo com a imaginação de tantos? Como pode não ser um grande ator o artista capaz de manter a ilusão, na tradição da Hollywood dos anos 1930 e 40, talvez 50, daquela aventura. Um Humphrey Bogart, um Burt Lancaster.

Fui um menino dos anos 70. Assisti ao novo Indiana Jones na noite de sexta-feira. Escolhi com cuidado o cinema, fui para um com tela IMAX: alta definição de som e imagem e aquela superfície gigante, que engloba você. Aí, na semana seguinte, assisti novamente, com os filhos e enteado. Achei que ia ficar entediado de assistir novamente. Não sou mais criança. Já tinha visto. Que nada. Fiquei ligado do início ao fim.

É claro que é memória emocional. Mas por um bom naco da infância, antes de querer ser jornalista, quis ser arqueólogo. Se escrevo livros de história, a raiz está nos Caçadores da Arca Perdida, o primeiro Indiana Jones, de 1981. Não é um personagem profundo, Indiana Jones. Ford tem dito, em suas entrevistas para o novo lançamento, que ele queria chegar ao Indy octogenário, entender que amores teve, que vida construiu. E há disso no novo filme, certamente. Continua sendo um filme para crianças. Uma aventura que mexe com a imaginação, daquelas para a gente se soltar em casa vivendo aquela história na cabeça, interagindo com os amigos como se verdade fora. E talvez, quando as décadas já se acumularam desde a primeira vez que assistimos ao filme, ele siga despertando aquela memória das fantasias infantis vividas.

Stanislavski dizia que a memória emocional é a principal ferramenta do ator. Lee Strasberg, também.

Faz já 42 anos do primeiro filme. Talvez seja hora de observar o óbvio. É grande cinema de um grande ator. Como Casablanca e Relíquia Macabra, como Rastros de Ódio e No Tempo das Diligências, como Spartacus e Ben-Hur, como quase todos os Hitchcocks da fase americana. É a arte de contar histórias para grandes públicos, antes dominada pelos gregos, depois por Shakespeare, da qual Steven Spielberg e Harrison Ford estão entre os mestres contemporâneos.

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