segunda-feira, 17 de julho de 2023

João Donato - orquestrou alquimias poderosas com figuras como Gal Costa, FSP

 Renato Contente

SÃO PAULO

Quando a bossa nova eclodiu formalmente, em 1959, o acreano João Donato havia acabado de chegar nos Estados Unidos. Na década seguinte, o país seria uma espécie de Meca para onde se dirigiria, de forma mais ou menos permanente, uma série de músicos e intérpretes associados ao movimento que ele ajudara a sedimentar.

Donato, morto nesta segunda-feira, só havia deixado o Brasil pela pouca aceitação de sua música "estranha", como ele mesmo definia. Nos Estados Unidos, onde teve um começo difícil, ele desenvolveu ainda mais suas particularidades artísticas ao se encontrar com músicos caribenhos e cubanos, o que resultou em uma fusão musical de dimensão ainda mais singular.

O músico João Donato
O músico João Donato - Flavio Canalanga/Folhapress

Foram a curiosidade, a generosidade e a abertura para parcerias que impulsionaram Donato na construção de sua arte —desde os primeiros trabalhos em grupos musicais, nos anos 1940, até as contribuições com João Gilberto e Tom Jobim, nos anos 1950, e as dezenas de intervenções que faria até o fim da vida com outros artistas.

Era antes de tudo um entusiasta da coletividade e de alquimias musicais poderosas. Não à toa, acumulou projetos, espetáculos e álbuns assinados a mais de duas mãos, como as de Rosinha de Valença, Gal Costa e, mais recentemente, Jards Macalé.

Em termos de canções, a lista de parcerias é ainda mais ampla e diversificada. Ele assinou composições com João GilbertoCaetano Veloso, Gilberto Gil, Lysias Ênio, seu irmão e maior colaborador, Marcos Valle, Chico Buarque, Paulo César Pinheiro e Cazuza, entre outros.

Donato tinha a prática curiosa e travessa de enviar uma mesma melodia para diferentes letristas. Isso ocorreu com "Nua ideia (Leila XII)", de Caetano Veloso, que teve outra letra assinada por Paulinho Lima, sob o título "Que Bobeira".

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Uma outra música que teve letra de Lima e Antônio Cícero teve, posteriormente, uma nova versão escrita por Arnaldo Antunes. "Donato era iluminado e brincalhão como uma criança", sintetizou Lima.

Em uma de suas primeiras visitas ao Brasil desde o exílio autoimposto, Donato desenvolveu o cultuado álbum "Quem é Quem", lançado em 1973, com o qual apresentou uma síntese da complexidade musical que construíra até então —suave, arrojada, provocativa e ousadamente ensolarada, com um frescor que se destacava em meio a discos mais densos e tensos no âmbito da MPB sitiada pela ditadura militar.

Em 1974, em busca de uma atmosfera mais despretensiosa após projetos de alta carga política, Gal Costa descobriu em Donato um atalho precioso para retomar o elo bossanovista no qual residia a sua essência de cantora, então diluída em nome de necessários gritos de revolta e euforia.

Dirigido por Caetano Veloso, que se propunha a dirigir um álbum e um espetáculo para Gal após três anos no exílio, assim como havia feito com Maria Bethânia, "Cantar" materializou a parceria entre a cantora tropicalista e Donato, que assinou a maior parte dos arranjos do disco e dividiu o palco com a cantora na turnê do projeto.

Além de promover uma reinserção importante de Donato na música popular brasileira, a parceria com Gal estimulou as facetas de intérprete e letrista do já renomado músico e arranjador.

"Flor de Maracujá" foi a primeira canção com uma letra que assinou. "Passei anos fazendo só música e, de repente, descubro a força de uma letra. Acho que dá uma dimensão poética maior à música e estou até com vontade de fazer uma história musicada, com letras minhas", relatou no espetáculo.

Além disso, após estrear como intérprete em "Quem é Quem", "Cantar" contribuiu para que ele deixasse de lado a timidez com a qual costumava se esconder ao piano para atuar como intérprete em alguns números.

Donato chegou a gravar um outro disco em solo brasileiro, em 1975, intitulado "Lugar Comum". Ele então ele adensou a parceria com Gilberto Gil, com quem compôs a maior parte das faixas do também cultuado trabalho, como "Bananeira", "Que Besteira", "Emoriô" e "Deixei Recado", além de "Naturalmente", com Caetano Veloso.

Apesar de registrar um momento profícuo do artista e uma série de canções hoje clássicas, o disco não atendeu às expectativas comerciais da gravadora. À época, Donato optou por recuar em projetos solos. Com mudanças no mercado fonográfico, sua música, pareceu a ele, havia voltado a soar estranha em seu país.

Ficaria sem gravar por dez anos, quando optou por gravadoras norte-americanas e brasileiras menores, centradas em produção independente. A partir de meados dos anos 1990, lançou uma série de discos nos quais não renunciou ao experimentalismo e à estranheza com os quais construiu a sua complexa identidade musical.

Nesse período, gravou álbuns ao lado de outros medalhões da bossa nova, como Wanda Sá, Marcos Valle, Carlos Lyra e Roberto Menescal. Também assinou trabalhos com Joyce Moreno, Tita Lobo e Paulo Moura, além de Emílio Santiago.

Nos últimos anos, Donato continuava mirando a potência dos encontros. Explorou sonoridades eletrônicas com um de seus filhos, o músico Donatinho, compôs e se apresentou com Tulipa Ruiz, com quem também gravou um gingado EP, e reencontrou Jards Macalé para o projeto "Síntese do lance", lançado no ano retrasado.

Em entrevista, Macalé resumiu, emocionado, o que Donato representava. "É como ele se apresenta no começo do disco. ‘É só alegria’. João era um menino, uma criança, um gigante e o próprio sol. Foi uma felicidade desfrutar de sua presença nesses últimos anos. Assim como João Gilberto, João Donato é um brasileiro maior do que o Brasil atual. Perdemos algo imenso."

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