segunda-feira, 24 de julho de 2023

Descaminhos de Rui, José Renato Nalini, OESP

 Todas as criaturas são imperfeitas. A ninguém é conferida a pretensão a se considerar o suprassumo da perfeição. O que deveria trazer modéstia aos humanos. Humildade e aceitação das naturais fragilidades que nos sugerem perfilhar a trilha da lapidação. A vocação humana é a busca da perfectibilidade. É o que nos impele a prosseguir.

Tudo isso para refletir sobre Rui Barbosa, a figura luminar que foi considerado o homem mais inteligente do Brasil entre final do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX.

Pois ele também evidenciou algumas fissuras que, se o não deslustram, ao menos comprovam que estava distante de ser invulnerável. Ele foi contrário a Oswaldo Cruz e a Rodrigues Alves, quando obrigaram a vacinação e a revacinação contra a varíola, que então vitimava milhares de brasileiros, na primeira década do século passado.

Rui combateu a vacina e, diante de sua imensa influência, estimulou, intelectual e moralmente, a conspiração contra o presidente Rodrigues Alves. Para ele, a "lei da vacina obrigatória é uma lei morta". Sua sanção trouxera ao governo e ao país "irreparáveis dissabores, esparzindo no seio da população malignos germes de intranquilidade e ressentimento". Abusa, mesmo, de sua força persuasiva. Para Afonso Arinos de Melo Franco, suas afirmativas contra a vacina "são inacreditáveis, partidas de um homem da sua estatura intelectual. Ele, que nunca fora positivista, junta-se aos discípulos mais retrógrados de Comte, ao declarar a vacina um atentado à liberdade de consciência, em frase meio ridícula: "Assim como o direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme".

Quem acreditaria que Rui chegou a afirmar, no Senado: "Logo não tem nome, na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania, a que ele se aventura, expondo-se, voluntariamente, obstinadamente, a me envenenar, com a introdução, no meu sangue, de um vírus, em cuja influência existem os mais fundados receios de que seja condutor da moléstia, ou da morte". Não satisfeito, concluiu: "O Estado mata, em nome da lei, os grandes criminosos. Mas não pode, em nome da Saúde Pública, impor o suicídio aos inocentes".

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Estranha Afonso Arinos que o intelectual e homem público que assim vociferava em 1904, seria o mesmo que, em 1917, faria o admirável necrológio de Oswaldo Cruz. O "jovem cientista cuja convicção inabalável se sobrepunha à retórica devastadora do grande combatente nunca vencido por adversários, mas derrotado sempre pelas próprias paixões".

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Movido por insopitável emoção, Rui Barbosa foi muito além do razoável ao condenar a vacinação compulsória. Brandia: "Acima de todas as regras, está o direito de legítima defesa. Quando os tribunais me negarem a mim, como cidadão, esse direito, eu, em nome dele como homem, resisto aos tribunais". Incompreensível, para um jurista, respeitador da lei, proclamar a extensão do direito pessoal de legítima defesa a ponto de oferecer resistência às decisões da Justiça.

Rui incitava a cidadania à Revolução: "Justa é a resistência popular, a reação revolucionária, toda vez que, esgotados os meios legais, os meios constitucionais, cerradas todas as válvulas de respiro à liberdade, já se não ofereça aos que a defendem outro recurso além do apelo às armas".

Qual seria a revolução que Rui entendia cabível? Era avesso à violência e talvez sonhasse com uma revolução sem povo, sem fogo nem sangue, "uma revolução de sábios e prudentes", como ele próprio sempre fora. E continua a sua peroração: "Releva, porém, não abusar de uma faculdade tão extraordinária, tão delicada, tão perigosa, não a malbaratar, não a expor nas ruas, entre multidões confusas, à mercê de interesses inconfessáveis, paixões rasteiras e cobiças desnorteadas. Quando esse direito se levantar em armas contra os governos desatinados, há de ser de modo a que possa firmar bem algo os títulos de sua reivindicação e o programa da sua conquista".

Estranhíssima, portanto, essa revolução. Como seria ela possível? Rui não explica. É que ele tinha horror à junção temível da populaça com a militança, o que ele eternizou na expressão "bodas adulterinas da arruaça com o pronunciamento".

Rui, que tantos serviços prestou ao Brasil, prestou um desserviço ao fazer pregação contra a vacina. Incitou a população a desobedecer à determinação da ciência. Pais que com filhos enfermos, se recusavam a chamar o médico, "para que não venha algum desses da vacina obrigatória". E crianças que diziam: "Fujo da casa de meu pai, se me quiser obrigar à vacinação". Tristes tempos, que se repetiram nesta década.

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras

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