A essa altura do ano você já deve saber que na semana que vem estreia o esperado filme da Barbie de Greta Gerwig, que foi capaz de esgotar o estoque mundial de pigmentos cor-de-rosa e aumentar a busca por roupas do mesmo tom em 416% depois que viralizou a imagem do primeiro look que a atriz Margot Robbie usou no filme, um visual western. O Barbiecore foi a tendência principal do ano de 2022, e ela foi unânime: nas redes sociais, na moda, entre celebridades, na cena musical e na beleza. Com mais de 500 milhões de visualizações no Tiktok, o Barbiecore chega a 2023 muito relevante e se renova a cada look que a atriz principal escolhe para aparecer nas premières ao redor do mundo, todos inspirados em Barbies icônicas e reproduzidos de forma quase idêntica para a vida real — ou seja, tamanho 36, talvez 34. Descobri agorinha que a boneca teria 1,75 m e 49 quilos na vida real. E calçaria 33. Então ela teria problemas para ficar em pé ou caminhar.
Demorei um tanto para ter uma Barbie, o que criou, para mim, uma aura mágica ainda maior em torno dela. Me lembro que minha primeira boneca foi uma Susi e que ir à feira com a minha mãe era o passeio mais esperado da semana. Era lá, na banca de roupinha de bonecas que eu passava minutos (que pareciam horas) olhando para todas as combinações de cores, estilos e acessórios que existiam para o armário perfeito. A boneca mais popular do mundo é apresentada para crianças entre os seus 3 e 12 anos e, sim, muitas gerações de pessoas tiveram uma Barbie sem antes poder questionar como esse brinquedo constrói realidades nas nossas cabeças. (É como o Biotônico Fontoura, quem tomou lá atrás, hoje sabe o teor alcoólico que a gente tinha que engolir diariamente em nome de uma saúde melhor.)
A Barbie me ajudou a criar cenários do que seria a minha futura vida adulta, adicionando um pack de ansiedades que só quem viveu sabe, afinal, tudo no seu mundo era perfeito. E por mais que eu fizesse uso de todo o meu talento criativo para construir uma casa da Barbie com livros e outros brinquedos, e um namorado Falcon adaptado, só o que era da Barbie dava certo para a Barbie, o que fazia com que eu tivesse que ter mais e mais coisas da Barbie. A cozinha, o carro, as roupas, o boy, a casa, o quarto. A Barbie não errou um delineador, não ficou devendo o cartão da Renner do mês e não teve um bad hair day. Acho que por isso eu cortei o cabelo de algumas delas e, óbvio, deu errado. Mas algo tinha que dar errado naquela vida de faz de contas. Que fosse uma franja curta demais.
Passei a infância e a adolescência numa relação passivo-agressiva com a Barbie e, talvez, com o que era esperado do feminino
A Barbie me ajudou também a ter relacionamentos saudáveis com as outras Barbies e com minhas futuras amigas, que eu faria na vida adulta, cada uma tinha que competir com a outra, pelas roupas ou pelo Ken (que era Bob na minha época) ou por aquela que era a mais bem sucedida, a mais rica e por aí vai. A Barbie me ajudou a ter uma ótima imagem corporal, um exemplo de aceitação das mudanças que aconteciam no meu corpo e de como uma mulher adulta deveria ser. A Barbie nunca envelheceu, nunca ganhou um quilo a mais. Ela paria as crianças sorrindo, gente. Aliás, por falar em ser um exemplo, eu soube recentemente que a boneca foi inspirada em uma garota de programa popular de uma história em quadrinhos alemã. Ela era para adultos e era vendida em bares e sex shops. Pode procurar por Bild Lilli, ela tem o mesmo olhar semiaberto, o delineado rasgado e o rabo de cavalo alto. Nada melhor que isso para se ter como modelo de feminilidade, só fica melhor embalado na cor Pink Barbie (PMS 219).
Passei a infância e a adolescência numa relação passivo-agressiva com a Barbie e, talvez, com o que era esperado do feminino. Eu queria ser como ela, só que tudo em mim parecia errado demais. Uma boa primeira Síndrome de Estocolmo, fascinada por aquela que deveria me inspirar a ser uma versão melhor de mim. Só que não contaram que era uma versão impossível, porque para isso eu teria que reencarnar na Suécia como herdeira e sex symbol.
Depois de tanto estudar os códigos de feminilidade impostos pela sociedade, seria normal que eu não incentivasse minha filha a ter uma Barbie, correto? Pois, em algum momento, ela ganhou uma boneca e também assistiu aos desenhos em que a Barbie sempre estava de rosa e o Ken, de azul. Apesar de aproveitar para conversarmos juntas sobre o que víamos ali — os desenhos geravam bons ganchos para trazer questionamentos importantes — eu segui a manada rumo ao corredor cor-de-rosa da loja de brinquedos. Tinha algo mágico que, de novo, me fazia ser uma Vanessa de seis anos. E, de fato, tem a possibilidade de um universo fantástico, feito para você escapar da realidade, das notícias, dos boletos e do corpo que insiste em ser de verdade.
Todo mundo pode ser uma Barbie em 2023 e essa é a melhor atualização do assunto
O Barbiecore é também um escapismo nostálgico pós-pandemia de um lugar seguro e conhecido e se tornou uma forma interessante de subverter a tradicional Barbie, pois diversas pessoas aderiram a essa trend, de formatos de corpos, tamanhos e tons de pele distintos. A primeira boneca negra da Mattel, a Tammy, surgiu em 1965 e era uma variação de tom de pele com os mesmos traços caucasianos e cabelos castanhos ou pretos e só em 1980 surge a Black Barbie. Hoje a boneca existe em três formatos de corpo: petite, tall e curvy (ainda que eu nunca tenha visto elas na estante da loja de brinquedos do bairro).Todo mundo pode ser uma Barbie em 2023 e essa é a melhor atualização do assunto.
Estima-se que no mundo são vendidas cem Barbies por minuto, o que me leva a crer que não venceremos essa luta dos padrões de beleza tão cedo. Ao contrário, eles parecem estar de novo na moda. Com Ozempic, harmonização facial, bichectomia, lentes nos dentes e muito filtro nas fotos, não estamos nos aproximando da possibilidade de aceitar a pluralidade na beleza. Não à toa, a Barbie está com tudo de novo. Vejo muito influenciador jovem dando dica de como emagrecer com receitas caseiras malucas e fotos de antes e depois de todo tipo de procedimento estético como Foxy Eyes e Russian Lips em garotas de 23 anos. Esses dias, vi uma mulher da minha idade que cheirava o chocolate e enfiava um pedaço de brócolis na boca em seguida para enganar o cérebro. E, sim, ela era loira de cabelos longos, estava maquiada e parecia bem feliz ao fazer isso. Como se fosse possível controlar esse corpo como se controla uma Barbie de plástico.
Fiquei me perguntando se vale tudo isso para ter a vida da dreamhouse e lembrei da frase que sempre aparece nas sessões de análise: não existe solução mágica.
VANESSA ROZAN é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.
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