terça-feira, 18 de julho de 2023

MARCELO SEMER Um tribunal a quebrar más tradições, FSP

 Marcelo Semer

Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo; autor de "Sentenciando Tráfico - O Papel dos Juízes no Grande Encarceramento" (Tirant lo Blanch) e "Os Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil" (ed. Contracorrente)

Há certos momentos em que as coisas que muito parecem não o são. E assumir que o que fizeram elas parecer demais foi um conjunto de práticas equivocadas é uma ação corajosa e quase irreal.

Foi assim que a Defensoria Pública do Rio de Janeiro e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) convenceram a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça a garantir a liberdade a um porteiro, que vinha sendo reconhecido por fotografias, de forma equivocada, por crimes que não cometeu.

Já faz tempo que esses reconhecimentos malfeitos, que servem de base à condenação de centenas de réus, têm incomodado os ministros do STJ. A perspectiva de que ações fragilizadas povoam erros judiciários mexeu ainda com o Conselho Nacional de Justiça, que elaborou resolução com protocolos rígidos para que sejam seguidos —sobretudo, em delegacias de polícia.

O porteiro Paulo Alberto da Silva Costa, 37, ao deixar o Complexo Penitenciário de Gericinó após três anos preso indevidamente por reconhecimento fotográfico - Reprodução/TV Globo - Reproduçao Globo

Julgamentos como esses costumam repercutir de forma intensa na mídia, mas timidamente nos processos do cotidiano do sistema penal. O fato é que as recomendações do CNJ, os paradigmas do STJ e até mesmo decisões do Supremo Tribunal Federal não chegam às delegacias de polícia e às salas de audiência em tempo e força suficiente para que os exemplos que se pretendeu coibir não se repitam. O hábito, no corpo judiciário, se transforma em tradição secular.

A força da palavra do policial nos processos de tráfico de drogas, por exemplo, é quase inabalável. Pesquisa que empreendi para o doutorado em criminologia na USP mostra que os juízes a consideram verdade presumida e exigem contraposições robustas para as descartarem, força que jamais reconhecem nas testemunhas de defesa. De modo que o brocardo "in dubio pro reo" permanece apenas como argumento retórico, porque com o vigor dos depoimentos policiais, reforçados pelos "elementos de inquérito" (quando ainda não há defesa formada), a dúvida é quase sempre inexistente.

Discutindo a força dos relatos dos policiais sobre a licitude da violação de domicílio, o ministro do STF Gilmar Mendes pressupôs que os juízes deveriam analisar as palavras dos agentes com "especial escrutínio", ou seja, dosando a credibilidade em relação ao poder. O que os juízes em regra fazem é tratar a credibilidade como premissa, ignorar as "pequenas discrepâncias" e lidar com as violências arguidas como "teorias da conspiração".

Em outra contenda do STJ, os ministros têm exigido que as buscas pessoais sejam fundadas em razões concretas e que a "mão na cabeça, documento" não se restrinja ao que os policiais chamam de "tirocínio" —porque a história tem mostrado que a fiscalização se dá de uma forma muito mais expressiva sobre a população preta. A questão chegou ao Supremo por intermédio de um voto do ministro Edson Fachin: o perfilamento racial acaba sendo decisivo para a escolha de quem abordar —o que Jéssica da Mata já havia explicado em sua longa pesquisa, "A Política do Enquadro".

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As falhas nos reconhecimentos, a escolha "aleatória" dos alvos no patrulhamento, os meios pelos quais os agentes invadem domicílios pobres —tudo isso pode ser revertido pela forma como os juízes encaram o seu papel. Enquanto se colocarem na função de mantenedores da ordem, uma espécie de "longa manus" da polícia, jamais vão conseguir desempenhar a função de garantidores de direito que a Constituição de 1988 lhes incumbiu —e que o STJ os está instando a assumir.

E quanto mais a investigação policial e os mecanismos científicos e de inteligência ficarem submetidos às técnicas de patrulhamento —no caso da repressão ao tráfico, a investigação mal representa 10% das prisões, segundo o mesmo estudo divulgado no livro "Sentenciando Tráfico"—, a seletividade penal vai continuar formando um quadro visivelmente desigual do braço da lei, tal como imortalizou Chico Buarque em "Hino de Duran": "Se trazes no bolso a contravenção / Muambas, baganas e nem um tostão / A lei te vigia, bandido infeliz / Com seus olhos de raios X".

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