Há certos momentos em que as coisas que muito parecem não o são. E assumir que o que fizeram elas parecer demais foi um conjunto de práticas equivocadas é uma ação corajosa e quase irreal.
Foi assim que a Defensoria Pública do Rio de Janeiro e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) convenceram a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça a garantir a liberdade a um porteiro, que vinha sendo reconhecido por fotografias, de forma equivocada, por crimes que não cometeu.
Já faz tempo que esses reconhecimentos malfeitos, que servem de base à condenação de centenas de réus, têm incomodado os ministros do STJ. A perspectiva de que ações fragilizadas povoam erros judiciários mexeu ainda com o Conselho Nacional de Justiça, que elaborou resolução com protocolos rígidos para que sejam seguidos —sobretudo, em delegacias de polícia.
Julgamentos como esses costumam repercutir de forma intensa na mídia, mas timidamente nos processos do cotidiano do sistema penal. O fato é que as recomendações do CNJ, os paradigmas do STJ e até mesmo decisões do Supremo Tribunal Federal não chegam às delegacias de polícia e às salas de audiência em tempo e força suficiente para que os exemplos que se pretendeu coibir não se repitam. O hábito, no corpo judiciário, se transforma em tradição secular.
A força da palavra do policial nos processos de tráfico de drogas, por exemplo, é quase inabalável. Pesquisa que empreendi para o doutorado em criminologia na USP mostra que os juízes a consideram verdade presumida e exigem contraposições robustas para as descartarem, força que jamais reconhecem nas testemunhas de defesa. De modo que o brocardo "in dubio pro reo" permanece apenas como argumento retórico, porque com o vigor dos depoimentos policiais, reforçados pelos "elementos de inquérito" (quando ainda não há defesa formada), a dúvida é quase sempre inexistente.
Discutindo a força dos relatos dos policiais sobre a licitude da violação de domicílio, o ministro do STF Gilmar Mendes pressupôs que os juízes deveriam analisar as palavras dos agentes com "especial escrutínio", ou seja, dosando a credibilidade em relação ao poder. O que os juízes em regra fazem é tratar a credibilidade como premissa, ignorar as "pequenas discrepâncias" e lidar com as violências arguidas como "teorias da conspiração".
Em outra contenda do STJ, os ministros têm exigido que as buscas pessoais sejam fundadas em razões concretas e que a "mão na cabeça, documento" não se restrinja ao que os policiais chamam de "tirocínio" —porque a história tem mostrado que a fiscalização se dá de uma forma muito mais expressiva sobre a população preta. A questão chegou ao Supremo por intermédio de um voto do ministro Edson Fachin: o perfilamento racial acaba sendo decisivo para a escolha de quem abordar —o que Jéssica da Mata já havia explicado em sua longa pesquisa, "A Política do Enquadro".
As falhas nos reconhecimentos, a escolha "aleatória" dos alvos no patrulhamento, os meios pelos quais os agentes invadem domicílios pobres —tudo isso pode ser revertido pela forma como os juízes encaram o seu papel. Enquanto se colocarem na função de mantenedores da ordem, uma espécie de "longa manus" da polícia, jamais vão conseguir desempenhar a função de garantidores de direito que a Constituição de 1988 lhes incumbiu —e que o STJ os está instando a assumir.
E quanto mais a investigação policial e os mecanismos científicos e de inteligência ficarem submetidos às técnicas de patrulhamento —no caso da repressão ao tráfico, a investigação mal representa 10% das prisões, segundo o mesmo estudo divulgado no livro "Sentenciando Tráfico"—, a seletividade penal vai continuar formando um quadro visivelmente desigual do braço da lei, tal como imortalizou Chico Buarque em "Hino de Duran": "Se trazes no bolso a contravenção / Muambas, baganas e nem um tostão / A lei te vigia, bandido infeliz / Com seus olhos de raios X".
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