Nos últimos meses, quem anda pelo Anhangabaú tem encontrado cada vez mais grades, que fecham acessos e até impedem a passagem. Ali em cima, no viaduto do Chá, ocasionalmente, também surge um infame tapume metálico que cobre a vista mais icônica da cidade.
A cena se repete em cada evento realizado pela concessionária Viva o Vale. O problema é que os shows são privados, mas afetam o espaço público.
Como lidar com essas concessões?
A primeira noção é que concessão não é privatização. É um jeito que a administração pública encontra de garantir que a população receba um serviço melhor do que o que ela própria presta. Em relação aos espaços públicos, porém, às vezes isso faz sentido, outras vezes, não.
A concessão de uma rodovia é fácil de entender. O concessionário recebe a receita de pedágio e, em troca, presta serviços de manutenção, segurança e faz obras de melhoria.
Ao contrário desses lugares, que têm um fluxo de receita garantido, os espaços públicos na cidade, como parques ou praças não são cobrados dos usuários. Espaços públicos são parte essencial da vida na cidade e assim devem ser, evidentemente. As concessionárias que assumem a manutenção desses espaços acabam buscando a criatividade para gerar fluxo de caixa. No Ibirapuera, por exemplo, para melhorar a limpeza e manutenção, a concessionária elevou o valor do estacionamento, aumentou o número de quiosques e lojinhas — talvez até com certo exagero —, hospeda eventos corporativos e, infelizmente, shows fechados.
É aqui que a coisa pega. Na hora que você vai a um espaço público e o encontra fechado, a noção de público e privado se relativiza e explicita o conflito de interesses.
No caso do Anhangabaú, portanto, é difícil até entender a concessão — a reforma de R$ 106 milhões foi bancada com dinheiro público, o espaço é aberto, bem ao lado da prefeitura, da praça das Artes e do Theatro Municipal, e poderia muito bem estar sendo gerido pela própria administração municipal. Uma vez que não está, vale a pena entender como melhorar o serviço que a concessionária presta. Isso se traduz em um contrato e um sistema de avaliação.
Durante dez anos, a concessionária Viva o Vale tem que oferecer manutenção, segurança, limpeza e 320 atividades mensais gratuitas aos frequentadores — como aulas de ioga, skate e dança, além de acionar as fontes três vezes ao dia (alguém já viu?). Tem também que liberar o espaço para eventos públicos, como a Virada Cultural ou o show do 1º de Maio. E paga por isso, até R$ 50 milhões dependendo do fluxo de receitas.
Pois bem, como gerar receita se você administra um espaço aberto no meio do centro da cidade? Eles optaram por locar o espaço para filmagens e eventos e, principalmente pelos shows privados. Já foram 31 desde a inauguração. Aprendi que em cada show eles fecham o vale 48 horas antes e 12 horas depois do término. Considerando um show de 2 horas, o vale fecha 62 horas, no mínimo. Sem contar os eventos públicos, são no mínimo 80 dias em que o vale fica fechado para os pedestres. Há estimativas de mais de cem. Está configurado o conflito de interesses. A prefeitura recebe um dinheiro para a concessionária prestar serviços à população, mas a própria origem da receita atrapalha outra parte da população, com barulho e contratempos.
Há outro exemplo de falta de cláusulas que pensem nos usuários. Não há nada no contrato que obrigue a concessionária a abrir os quiosques construídos durante a reforma. Eles continuam vazios e melancólicos, esperando café e lojinhas, cercados por grades. A concessionária diz que está trabalhando para abrir.
A última questão tem a ver com a avaliação. Como avaliar o serviço prestado? Nos contratos de concessão, em parques ou terminais de transporte, existe um Sistema de Mensuração de Desempenho (SMD), que avalia da limpeza à afabilidade dos funcionários. A prefeitura diz que a as atividades realizadas no vale foram aprovadas por quase 75% das pessoas. Parece bom, mas a metodologia provavelmente não dá conta de avaliar o uso cotidiano, fora dos eventos.
Para piorar, não está prevista a formação de um conselho, como há nos parques. Sem a participação de usuários, empresários, moradores e comerciantes, é difícil imaginar que alguém aponte o dedo para os problemas e estimule a concessionária a melhorar.
A reforma do Anhangabaú ainda não vingou. O espaço continua desintegrado das bordas do vale, o uso cotidiano é pequeno e os eventos gigantes não são a solução. Ao definir pela concessão do espaço à iniciativa privada, a prefeitura abriu mão da gestão direta do local mais icônico da cidade. Cabe agora exigir que ela aprenda a melhorar seus contratos para garantir que os negócios existam em função das necessidades da população e não contra ela.
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