Vale cotejar no streaming o sul-coreano "A Fortaleza" com um fenômeno político atual: o sumiço de oligarcas e líderes militares na Rússia. O filme encena a monarquia coreana às voltas com a temível invasão da dinastia chinesa Qing. O rei pondera os conselhos, em geral divergentes, de seus ministros. Erros são corrigidos por protocolo elementar: o monarca oferece a si próprio a cabeça cortada do mau conselheiro, militar ou civil.
Tudo isso transcorre no século 17, mas o feroz absolutismo real fornece material presente para uma analogia com o autocratismo homicida de Putin. O importante Sergei Surovikin, notório pelo sinistro epíteto de "General Armagedon", não é visto desde o fim da rebelião dos mercenários. Somem comandantes, milionários despencam de edifícios. O Kremlin opera a todo vapor no modo delete.
No geral, um anacronismo significativo percorre os embates entre democracia e autocratismo: o fantasma de um poder acima da razão liberal, de natureza monárquico-supremacista.
Certo, no Ocidente monarquia é maré da tarde, descabida. Mas as realezas petrolíferas do Oriente Médio são ditaduras com arbítrio de baraço e cutelo: Bin Salman mandou esquartejar no exterior um colunista do Washington Post. Povo é miragem no deserto: a cidadania saudita qualifica-se pelo parentesco real. Cidadão de bem é príncipe. Bin Laden era cidadão saudita. Pelo menos em corrupção ativa, eles inovam: joias afetam mais nobreza de sentimentos que dólares.
Uma razão acima de provas, eis o elo entre o rei e o autocrata. A dissociação iliberal entre Estado e sociedade (72% dos países são autocracias) favorece idos desvarios imperiais. Com Putin, o neoczarismo pan-eslavo, miasma dos escombros da ideologia soviética. O chinês Xi Jinping, arremedo de imperador confuciano-maoísta, prospera no sonho geopolítico de hegemonia mundial. Ultradireitistas sufocam a democracia para perpetuar-se como autocratas dinásticos: o bielorrusso Lukashenko, parceiro de Putin, está há 19 anos no poder. Ortega e Maduro disputam recordes de permanência.
Analistas políticos parecem indiferentes à natureza conceitual dessas dissonâncias regressivas na troca do velho golpe de Estado por um permanente estado de golpe, em que a extrema direita se absorve no supremacismo ditatorial.
Quando se fala em monarquia, a referência, soft, é a Grã-Bretanha, talvez pelo fausto da coroação, talvez porque a família real esteja mais viva na mídia do que no real-histórico. No entanto, é vital precaver-se democraticamente contra o resquício absolutista de forças maléficas que, no bojo do grande capital, estruturam a condição humana ao revés da razoabilidade.
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