quinta-feira, 27 de julho de 2023

Olá, Barbie, Eugênio Bucci OESP

 O nosso tempo cabe numa bonequinha de plástico. O nosso mundo, os nossos horizontes, a nossa existência se resume a um brinquedo de criança. O filme da Barbie – e, sim, você sabe quem é ela, pois já deu uma de presente para sua filha, sua neta, sua sobrinha, sua namorada ou, quem sabe, você mesmo(a) – estreou nos cinemas do planeta batendo cifras pantagruélicas. Eu fui ver – tinha de ver. Filas e mais filas em torno de salas e mais salas. Garotas e garotos em trajes cor-de-rosa. Um movimento social escorre pelas ruas. Lotações esgotadas. Aplausos depois dos créditos finais. Meninas chorando quando as luzes se acendem. Mais aplausos. Eu diria que merecidos.

Improvável leitor, improvável leitora, o filme é bom. Melhor dizendo, é muito bem realizado. As plateias ovacionantes estão prenhes de razão. A partir de um roteiro que é um brinco, a diretora Greta Gerwig conseguiu conduzir a história como quem conta uma fábula infantil, e essa fábula sintetiza muita coisa da nossa era – mais do que seria conveniente admitir.

À primeira vista, na leitura mais superficial, o enredo nos apresenta o itinerário de uma garotinha que faz a passagem da infância para a vida adulta. Ela – a garotinha – se projeta no seu amuleto de cabelos amarelos e com ele vai brincando, vai jogando, vai flertando com o destino. Então, as transições entre o faz-de-conta e a realidade se intensificam. Eclodem confusões cognitivas e, por meio delas, vai se tecendo o final surpreendente (sei que são mínimas as chances de você se deslocar até um cinema para assistir ao filme, mas não vou dar spoiler).

Ainda nessa dimensão de fábula infantil, o filme tem algo de Alice no País das Maravilhas, de Pinóquio ou de Peter Pan. De um lado, fica o universo da imaginação, como a “Terra do Nunca”; do outro, impera o chão modorrento em que pisamos, sem encantos, sem maiores excitações. Nesta chave dupla entre o devaneio e o mundo real, o longa-metragem tem parte com as aventuras de anjos que abdicam das regalias celestiais para ganhar existência humana, como em Asas do Desejo, de Wim Wenders. Aliás, citações cinematográficas não faltam, muitas delas brincalhonas e mesmo atrevidas, a começar da abertura que parodia 2001, uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick. Barbie paga inúmeros tributos estéticos à sétima arte, e faz isso com estilo, com personalidade.

Mas há outros ângulos para interpretarmos essa obra desbragadamente comercial e, por isso mesmo, desarvoradamente autoirônica. Podemos vê-la como se fosse uma ode ao que há de ridículo na sociedade de consumo. O filósofo e cineasta revolucionário Guy Debord afirmou, em 1967, que “a mercadoria ocupou totalmente a vida social”. Ele acertou, é claro. A mercadoria se instalou ali mesmo onde uma menina de dentes de leite se entrega a fantasias mentais enquanto brinca de boneca. A coisa fabricada está lá, ocupando todos os espaços imaginários, está lá como o denominador comum da cultura global. O adestramento das fabulações iguala e nivela, por baixo, o que sonham todas as crianças, seja em Bangladesh, seja em New Jersey, seja em Nuporanga. O denominador comum da globalização cultural é a mercadoria, quer dizer, é a Barbie. Sempre há um fio de cabelo da Barbie em cada geringonça que se comercializa, seja um avião de guerra, um saco de café gourmet, um antibiótico ou um deputado venal. E, nesse plano, todos os caminhos nos levam ao patético, ao vazio e ao risível.

As possibilidades de leitura não param aí. Uma outra, bastante sugestiva, passa pela tensão entre os papéis masculino e feminino em tempos de “politicamente correto”. A protagonista do blockbuster (Margot Robbie) proclama em voz alta que “não tem vagina”. Não obstante, cumpre o figurino de uma líder feminista. Deu para entender? O namoradinho dela, namoradinho de mentirinha, namoradinho de brincadeirinha, chamado Ken, ainda segundo a mesma protagonista, “não tem pênis”, mas vira um líder, por assim dizer, machista. Como? Ainda não deu para entender?

Mais ironias entrecruzadas. O personagem Ken, interpretado pelo carismático Ryan Gosling, vai assimilando trejeitos de macho tóxico. Entorpecido de masculinismo, ele se torna adepto de uma iconografia deveras pastoril, com predileção por imagens de cavalos em posições sortidas. De repente, ele se converte num expoente do agronegóxico (o que talvez seja um spoiler). E mais. Nas horas vagas, Ken ainda toca violão e entoa melodias country de três acordes para derreter o coração das barbies sem coração. Poucas vezes a condição masculina foi retratada com tanta nitidez, ainda que o tom não seja edificante. Yes, we Ken. Quem não é Ken?

O momento mais difícil na trama começa quando Barbie, a estrela-mor, se vê xingada de fascista por uma coadjuvante que não é uma coadjuvante qualquer. É incrível como até mesmo essa crítica extrema tenha encontrado lugar – e de honra – dentro da narrativa. A bonequinha de luxo, muito embora ordinária, é mesmo fascista. Mas não quer mais ser. Ela quer crescer. Ela quer um happy end no show que nunca termina.

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