domingo, 30 de julho de 2023

CARLOS MELO E MARCOS MENDES Presidencialismo de coalizão tem exigido mais e entregado cada vez menos, FSP

 

Carlos Melo

Cientista político e professor Sênior Fellow do Insper

Marcos Mendes

Doutor em economia, pesquisador e professor do Insper.

[RESUMO] O sistema político brasileiro tem se deteriorado acentuadamente nos últimos anos diante do aumento do número de partidos e da pulverização descoordenada dos processos decisórios. Implantar a agenda do Executivo ficou mais difícil, exigindo cada vez mais liberar recursos públicos em troca de votos e ceder espaço a grupos de pressão com seus interesses particulares, o que acarreta elevados impactos negativos para toda a sociedade.

Visto em perspectiva histórica, o sistema político brasileiro tem conseguido manter a estabilidade democrática por quase 40 anos, um feito e tanto quando comparado ao nosso passado de instabilidade institucional. Ao longo deste período, muitas melhorias ocorreram: fim da hiperinflação, criação de uma rede de proteção social, aprovação de reformas importantes como a da previdência e, agora, a tributária.

Ilustração de Adams Carvalho para ilustríssima - Adams Carvalho

Contudo, também é fato que este sistema político impõe custos elevados à economia e à sociedade. O presidencialismo de coalizão —ou presidencialismo multipartidário— sempre exigiu recursos públicos em troca de votos; deu margem para grupos de pressão criarem benefícios privados com custos socializados. Também impôs grande lentidão a reformas essenciais: a da Previdência tardou duas décadas, a tributária mais de três. Sua responsividade é, ao final, insatisfatória, tornando difícil afirmar o quanto o saldo é negativo ou positivo.

Temos como resultado desequilíbrio fiscal crônico, taxas de juros elevadas para que a prodigalidade fiscal não se transforme em inflação, baixa produtividade, altos custos de transação e riscos variados. Desde os anos 1990, a nossa renda per capita patina em torno de 25% da renda per capita dos EUA. Não conseguimos escapar da armadilha da renda média.

A deterioração do presidencialismo de coalizão

A má notícia é que o sistema político, que já não entregava resultados maravilhosos nos primeiros anos da redemocratização, tem se deteriorado ao longo do tempo.

A equação básica para seu funcionamento consistia em montar uma coalizão com poucos grandes partidos no Congresso, distribuir ministérios na proporcionalidade da representação partidária, liberar emendas parlamentares como incentivos adicionais a votar com o governo, e usar extensivamente os instrumentos de poder dados pela Constituição ao Executivo, como medidas provisórias e vetos presidenciais.

Era um sistema em que, a um alto custo fiscal e de eficiência, o Poder Executivo conseguia exercer poder de agenda e, com isso, tentava implementar políticas públicas de interesse coletivo. Suas disfuncionalidades estruturais, no entanto, se expandiram. O número de partidos com direito ao acesso de recursos públicos chegou a 30 legendas, na Câmara dos Deputados. Os custos de coordenação do processo legislativo deram um salto.

Os grandes partidos implodiram, com destaque para o MDB que sempre ancorou a formação de maiorias. Há vários partidos médios, tornando mais difícil e custosa a formação de maioria parlamentar.

Boa parte das emendas parlamentares se tornou obrigatória, não tendo mais o efeito de comprar apoio a votações. Ademais, as emendas cresceram: em valores atualizados, passaram de R$ 7 bilhões em 2016 para R$ 35 bilhões em 2023.

Cada deputado e cada senador têm o seu próprio orçamento, que provê o suficiente para azeitar máquinas eleitorais individuais. Não precisam se submeter à orientação de líderes partidários. O preço aumentou: para reunir apoio, é preciso emendas extras, não obrigatórias. Os gastos decorrentes das emendas, obrigatórias ou não, são tipicamente de baixa qualidade, deteriorando a qualidade das políticas públicas.

A distribuição e liberação das emendas não obrigatórias saiu das mãos do Executivo e passou para o controle dos presidentes das duas casas legislativas e de algumas lideranças em seu entorno.

As medidas provisórias, que antes podiam ser reeditadas sem limites, agora sofrem fortes restrições, são frequentemente rejeitadas ou substancialmente alteradas. Os vetos presidenciais, que nunca eram apreciados pelo Congresso, passaram a trancar a pauta quando não votados, o que ampliou o poder de barganha dos parlamentares.

A cada legislatura aumenta o percentual de vetos derrubados. Aumentou a rejeição ou a alteração substancial dos projetos de iniciativa do Executivo, enquanto se expande a aprovação de iniciativas dos parlamentares, nem sempre com visão mais ampla das necessidades do país.

Os congressistas têm crescentemente influenciado até mesmo decisões técnicas de agências reguladoras, mediante ameaças de aprovação de decretos legislativos que, por exemplo, propõem o cancelamento de reajustes de conta de energia (PDL 64/22 e PDL 94/22, entre outros) ou derrubam limitações a gastos com assistência médica de funcionários de estatais (PDL 26/21).

Em suma, o Poder Executivo passou a ser privado dos instrumentos que garantiam seu poder de governar. O Legislativo, por sua vez, passou a ser o locus de um processo decisório pulverizado e descoordenado, em que cada uma das 594 cabeças de parlamentares é uma sentença, e os interesses organizados conseguem, com facilidade, veicular seus projetos. Os custos para o Executivo conseguir implementar sua agenda subiram.

Não se pode confundir a deterioração com regras normais de funcionamento

Isso não deve ser compreendido como algo normal, que faz parte da dinâmica, e creditado como custos aceitáveis do funcionamento do sistema. A eficiência das instituições é medida pelo desenvolvimento econômico e social de um país (Douglass North). Instituições eficientes dão previsibilidade e segurança, incentivam investimentos. Na última década, porém, foi tudo o que não se viu.

Várias questões que pareciam superadas, como o controle da inflação e a responsabilidade fiscal, voltaram ao noticiário. A própria democracia foi questionada. A sem-cerimônia com que se usam recursos públicos para fins privados ou eleitorais revela o patrimonialismo antes disfarçado. A régua da tolerância com a corrupção baixou substancialmente.

Claro que é importante lembrar que a maioria dos personagens desse sistema foi eleita, representa a vontade do eleitor e, portanto, é tomada de legitimidade. Mas, na prática dos últimos anos, esse tipo de presidencialismo de coalizão tem exigido cada vez mais da sociedade e entregado menos.

As coalizões —que quase nunca foram programáticas— passaram a ser dar por um modelo que, gradativamente, agi exclusivamente pelo interesse fisiológico.

O "lubrificante" eventualmente usado para reduzir atritos entre as peças acabou por danificar a própria engrenagem. Os apoios ao Executivo passaram a exigir mais cargos, mais recursos, maior permissividade —que geravam mais poder e, portanto, mais cargos, mais recursos e ainda maior permissividade.

O interesse não é por participar do governo e realizar políticas públicas que legitimem a ação do parlamentar ou de seu partido. O interesse é explícito no controle do caixa da instituição para a qual se conseguiu uma nomeação.

A deterioração ao longo dos mandatos

Essa dinâmica do presidencialismo de coalizão colapsou nos mandatos da presidente Dilma Rousseff. O apetite fisiológico exigiu nacos do governo cada vez maiores, os quais Dilma não teria como ou não estava disposta a entregar. Com o impeachment e a assunção de Michel Temer, o sistema foi reacomodado, voltando a se basear na centralidade do MDB.

Porém os escândalos em série da última década e o desgaste do governo Temer estilhaçaram o centro político no Parlamento. A eleição de 2018 o encontrou em frangalhos e abriu espaço para a extrema direita que o negava, tendo como símbolo o que chamou de "nova política".

Inicia-se o governo Bolsonaro com a negação não apenas daquela política, mas de qualquer política. Seu despreparo tentou fazer crer que a legitimidade de um presidente eleito implicava uma espécie de direito imperial e a irrelevância do Legislativo. O presidente plenipotenciário governaria acima dos Poderes, o Congresso seria irrelevante. E o Supremo que se enquadrasse, pois poderia ser fechado "por um cabo e um soldado".

Sendo, contudo, uma máquina de criar crises e com tantos problemas externos ao governo, Bolsonaro se deu mal. Ao final, precisou da blindagem do centrão para protegê-lo de escândalos que afetavam a si e a membros de sua família. E o centrão se fez, aos poucos, proprietário do governo, controlando seu coração e os ministérios mais relevantes. Tomando para si uma grossa fatia da administração do orçamento da União.

No governo Temer, por exemplo, a Casa Civil trabalhava pela agenda do Executivo, e a negociava com o Legislativo. No governo Bolsonaro, próceres do centrão foram nomeados para a Casa Civil e a Secretaria de Governo, e transformaram a agenda do Executivo em agenda do centrão.

Houve quem enxergasse nisso os sinais de parlamentarismo ou de um semipresidencialismo. Engano. O que se socializou foi o bônus, não o ônus, de ser governo. Uma situação de "nem presidencialismo, nem parlamentarismo", apenas apropriação de poder e benefícios.

Foi nessas circunstâncias que se deu a eleição de 2022 e a posse do presidente Lula que, como apontou o cientista político Sérgio Abranches, está demorando a se dar conta de que a relação do presidente com o Congresso mudou.

A aprovação da Reforma Tributária não seria sinal de que o sistema ainda funciona?

Analistas que naturalizam essa dinâmica de deterioração, e argumentam que o sistema continua funcionando bem, podem arguir que o país acaba de aprovar sua Reforma Tributária e ela deve colaborar imensamente para o crescimento econômico, já e nos próximos anos. Isso seria uma demonstração de que o Executivo ainda consegue fazer avançar sua agenda.

Ocorre que a Reforma Tributária, assim como a previdenciária ou outros temas emblemáticos, como a privatização da Eletrobras, a autonomia do BC ou o marco legal do saneamento, chamam muita atenção do debate público, e ficam sob escrutínio da imprensa e de especialistas. Têm alta visibilidade.

Articular a aprovação desse tipo de medida agrega capital político para os líderes do Legislativo. Ajuda, inclusive, a melhorar a imagem daqueles sob pressão de acusações de corrupção e clientelismo, como no caso atual do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).

Além disso, são matérias que foram objeto de trabalho de técnicos de governo e da sociedade civil, geraram debate público, aprimoramento no desenho legislativo e convencimento da população.

Portanto, nesses temas emblemáticos, chamados de "pauta do país" e não "pauta do governo", continua a haver espaço para ação cooperativa e resultados positivos. Ainda que a aprovação sempre venha ao custo de inserção de inúmeros jabutis para atender interesses específicos, de mitigação dos efeitos das reformas e da liberação de emendas parlamentares.

Por outro lado, quando se trata de pauta menos visível, do dia a dia do Congresso, os interesses organizados estão cada vez mais fortes. Uma breve pesquisa nas matérias em pauta nas últimas semanas é instrutiva.

Na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (CAE), aprovou-se a prorrogação da desoneração da folha para setores escolhidos —política cuja ineficácia e cujo alto custo fiscal já foram atestados em vários estudos— e, de quebra, incluiu-se a redução da contribuição previdenciária para municípios com menos de 156 mil habitantes (PL 334/23).

O PL 132/19 propõe alteração do regime de recuperação fiscal dos estados para permitir a concessão de benefícios fiscais. O PL 2620/19 cria incentivos fiscais para ações e serviços de cardiologia, enquanto o PL 6020/19 amplia os incentivos do Programa Rota 2030, de subsídio à indústria automobilística, a título de estimular a pesquisa sobre veículos elétricos.

Abundam os projetos que aumentam a rigidez do orçamento e dificultam o equilíbrio fiscal, como o PL 77/22, que protege os recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) de contingenciamento, com parecer positivo na CAE, ou o PL 920/23, pronto para votação no plenário da Câmara, que vincula receitas de multas e compensações ambientais ao Fundo Nacional de Calamidade Pública.

Também pronto para votação no plenário da Câmara, o PLP 108/21 eleva o limite de faturamento para enquadramento de pessoas no programa Microempreendedor Individual (MEI). O MEI fracassou em estender o atendimento previdenciário aos mais pobres, é fonte de crescente déficit previdenciário, e sua ampliação se dá sem uma avaliação técnica minimamente balizada.

Há, ainda no plenário da Câmara, proposta de subsídios cruzados para custear tarifa social de água e esgoto (PL 9543/18), com distorção de preços relativos e opacidade no custo da política pública.

As pautas das comissões da Câmara têm diversas propostas de pisos salariais para categorias profissionais que conseguem fazer avançar os seus pleitos, além de excentricidades, como o financiamento subsidiado por banco público para a compra de carros por professores da educação básica (PL 233/23), ou a isenção de IPI e imposto de importação na compra de material de construção e obras de arte para decoração de templos religiosos (PL 181/15).

Dezenas de outros projetos que socializam custos e privatizam benefícios, prontos para votação em comissões ou plenário das duas casas legislativas, poderiam ser citados. Obviamente nem todos prosperarão, mas muitos se tornarão lei, e continuarão a corroer as contas públicas, a induzir concentração de renda e má alocação de capital.

Como um conta-gotas pingando diuturnamente, vão envenenando o equilíbrio fiscal, a qualidade das políticas públicas e, com isso, reduzindo o potencial de crescimento econômico e melhoria social.

Quando aprovados, dificilmente são revogados. Os que têm prazo de validade são sistematicamente renovados, a exemplo da isenção fiscal para hotéis, restaurantes e outros serviços do setor de eventos (lei 14.592/23), que de programa emergencial para o período da pandemia vai se tornando permanente, assim como ocorreu com a desoneração da folha. Ou o Regime Especial da Indústria Química (Reiq), que o Executivo já tentou extinguir quatro vezes.

Desapercebidamente, enquanto recebe aplausos por aprovar reformas muito visíveis, o Parlamento continua a tocar a pauta de interesses restritos e a se alimentar de emendas e outras verbas públicas.

Não há solução fácil

Com isso, o presidencialismo de coalizão vai sobrevivendo, cada vez mais custoso e com menos capacidade de promover progresso econômico e social.

Mudar essa realidade não será simples. Não existe uma "reforma política" mágica. Por exemplo, esperava-se que a minirreforma de 2017 levaria à redução do número de partidos ao longo do tempo, e que isso facilitaria a formação de coalizões, diminuindo os custos de transação.

De fato, os partidos estão se fundindo ou formando federações, mas a fragmentação no interior de cada legenda tem aumentado. Não há unidade e sobra indisciplina.

Direções não conduzem processos e tampouco fazem valer, a seus parlamentares, acordos celebrados com o Poder Executivo. Esse efeito não antecipado mostra como é difícil reorientar incentivos e melhorar a qualidade do processo decisório.

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