Sou capaz de apostar que ninguém nos altos escalões da sisuda Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) imaginou que um dia a principal agência financiadora da ciência paulista seria citada num romance de fantasia. Aliás, trata-se de uma narrativa na qual termos como "primatas neotropicais" (ou seja, os macacos do Novo Mundo, como os muitos que ainda resistem nas matas do Brasil) são quase tão onipresentes quanto ocorrências que descreveríamos como mágicas. E, é claro, o epicentro desses fatos são árvores muito especiais.
Estou falando de "Árvore Inexplicável", livro da escritora brasileira Carol Chiovatto que me roubou algumas horas de sono ao longo das últimas semanas, na impaciência de chegar ao fim de suas trezentas e tantas páginas. Devo dizer que valeu a pena: a história, além de eletrizante, tem um coração imenso. Além disso, mescla com rara harmonia mundos que, para empobrecimento de todos nós, às vezes teimamos em manter separados.
Como ainda tenho algum amor à minha pele, não irritarei futuros leitores do romance com "spoilers". Basta dizer que a história começa com os estranhos fenômenos luminosos observados pela protagonista, a universitária Diana, nas teias de aranha que pendem de certas árvores. O mistério se adensa com o aparecimento dos abaobis, uma espécie ainda desconhecida da ciência de (sim, você adivinhou) primatas neotropicais, e com a revelação de que há gente economicamente interessada nas ocorrências arbóreas.
O pano de fundo dessas reviravoltas é a primeira etapa da pandemia de Covid-19 e a estupidez anticientífica do governo Bolsonaro, ambas devidamente retratadas com a claustrofobia que tomou conta do Brasil e do mundo em 2020. Por email, Chiovatto me contou que o descaso e a chacota do bolsonarismo em relação à ciência foram as motivações principais para a abordagem da obra. Mas há também outras mais profundas.
"Ando com um pouco de birra com essas grandes oposições literárias: magia e ciência, natureza e cultura", explica a autora. "Isso direciona muito o nosso pensamento cotidiano, faz parecer que existe um confronto, que é matar ou morrer, como se nós, humanos, não fizéssemos parte de um grande ecossistema. A gente se vê separado do mundo."
"Ao mesmo tempo, a literatura fantástica costuma ser enxergada apenas como escapista. Embora eu não negue o valor do escapismo (todo mundo tem o direito de querer fugir do mundo de vez em quando), acho que é uma visão muito simplista. A literatura fantástica tem potencial de ressaltar assuntos que nos são muito próximos, talvez próximos demais e, por isso, doloridos. Aí quis colocar a ciência, não como oposta, mas complementar" resume ela.
Ao ler essas respostas, não pude deixar de recordar o que um gigante da literatura de fantasia do século passado disse sobre "escapismo" num ensaio chamado "Sobre Estórias de Fadas".
"Por que dever-se-ia escarnecer de um homem se, achando-se na prisão, ele tenta sair e ir para casa?", escreve o filólogo J.R.R. Tolkien, autor de "O Senhor dos Anéis". "A ideia de que carros motorizados sejam mais ‘vivos’ do que, digamos, centauros ou dragões é curiosa; a de que eles sejam mais reais do que, digamos, cavalos é pateticamente absurda. Quão real, quão impressionantemente viva é uma chaminé de fábrica comparada a uma árvore: pobre coisa obsoleta, sonho insubstancial de um escapista!"
O livro de Chiovatto mostra que ciência e fantasia podem ser ferramentas gêmeas, atos de imaginação e compreensão que revelam a enormidade do mundo à nossa volta, a pequenez e a grandeza de pertencer a uma só Árvore da Vida.
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