quinta-feira, 20 de julho de 2023

Toda a música pertencia a Donato, Ruy Castro - FSP

 No Rio de 1950, para os meninos que sabiam das coisas, o mundo se dividia em dois hemisférios: o Sinatra-Farney Fan Club, na Tijuca, formado pelos fãs de Dick Farney, tendo Frank Sinatra como patrono, e seu rival de morte, o Haymes-Lucio Fan Club, em Botafogo, pelos fãs de Lucio Alves, rival de Dick, tendo como patrono Dick Haymes, rival de Sinatra. Exigia-se fidelidade absoluta. Era-se de um ou de outro —exceto por um membro do Sinatra-Farney, que atravessava a cidade e ia em segredo às reuniões do Haymes-Lucio: o garoto João Donato, 16 anos.

Ele não entendia aquela exclusividade. Com seu ouvido musical, percebia que, como cantor, Dick Farney não tinha tanta afinidade com Sinatra. O ídolo e modelo de Dick, na voz e no jeito de cantar, era Bing Crosby, então ainda o maior cantor do mundo. Quem estava mais para Sinatra, inclusive na carreira, era Dick Haymes. Sempre que Sinatra se mudava de uma orquestra para outra, quem o substituía no emprego era justamente Dick Haymes. Mas Donato nunca poderia dizer isso a seus amigos nos dois fã-clubes. O jeito era exercer a dupla militância e tentar não ser descoberto.

O que, um dia, tinha de acontecer. Donato foi chamado às falas no Sinatra-Farney e levou um ultimato: ou abandonava aquele "antro" ou ficasse por lá de uma vez. Com as orelhas em fogo, Donato jurou fidelidade a Dick —não disse qual— e eles o perdoaram. No dia seguinte, já estava de volta ao hemisfério inimigo, para alegria de seu amigo Lucio.

Donato, que nos deixou nesta segunda-feira (17), sempre foi assim. Ninguém conseguia enquadrá-lo. Tocou acordeão, trombone e piano, foi arranjador, formou conjuntos vocais, trios e orquestras e tocou samba, choro, baião, jazz, mambo, afro-cubano, às vezes tudo ao mesmo tempo. Nunca se disse da bossa nova. A bossa nova é que se dizia dele.

E estava certa. Toda a música pertencia a Donato.

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