Por Mônica Manir* E.* tem 32 anos e seu pai foi diagnosticado com Huntington, uma doença rara, mas autossômica dominante. Isso significa que E.* tem 50% de risco de ter herdado do pai esse distúrbio que causa degeneração lenta, porém severa da saúde física, mental e emocional. Se E.* tiver o gene para Huntington, vai inexoravelmente manifestar a doença — provavelmente não agora, e sim lá pelos 40, 50 anos de idade. É quando o gatilho dos movimentos involuntários e da deterioração intelectual, característicos do Huntington, costuma ser acionado. Assintomático, mas angustiado com a incerteza, E.* decidiu fazer o teste preditivo genético para poder planejar a vida profissional, as finanças, a futura paternidade. Procurou um laboratório particular para tirar o sangue, mesmo sabendo que seu plano de saúde cobriria o exame. “Temia ser prejudicado de alguma forma pelo convênio empresarial ou mesmo que a informação vazasse e entrasse no sistema corporativo do local onde trabalho, o que poderia complicar minha carreira caso o resultado desse positivo”, diz. “Não quis arriscar.” Se a preocupação com a privacidade de dados genéticos parecia restrita ao meio científico, aos poucos ela tem vazado para a população. Os mais ligados nisso são aqueles que, como E.*, lidam com uma doença ainda incurável e tentam, na medida do possível, driblar estigmas e discriminação já sentidos na pele familiar. Os menos conscientes são os que compartilham informações de seu próprio DNA em redes sociais e acabam por ficar à mercê de invasões nem sempre salutares, quando não expõem parentes que prefeririam o sigilo. A “neura” dos primeiros tem lastro histórico. Começou no final dos anos 1940, quando o médico Sheldon Reed, do Instituto Dight para Genética Humana, em Minnesota, EUA, cunhou a expressão “aconselhamento genético”. Reed buscava afastar a “higiene genética”, nome dado na Europa a consultas sobre doenças hereditárias que carregava forte traço nazista por sua conotação eugênica. A ideia do aconselhamento de Reed era outra: informar, da forma mais neutra e sigilosa possível, os riscos da pessoa para determinada moléstia a fim de promover não só o bem-estar individual e familiar, mas também social, por meio de medidas de saúde pública. Ocorre que, em 1993, o gene da Doença de Huntington (DH), justamente aquele que perpassa a família de E.*, foi isolado. Um obcecado geneticista de nome Marcy MacDonald identificou nas pessoas sintomáticas uma anomalia no braço curto do cromossomo 4, um pequeno trecho gago do trinucleotídeo CAG. Ainda que você não consiga visualizar braços cromossômicos curtos ou longos nem entenda de Citosina, Adenina ou Guanina, essa é uma informação técnica importante. Se normalmente essa “gagueira” no cromossomo fica entre 10 e 26 repetições, nos acometidos por Huntington elas podem se multiplicar até mais de quarenta vezes. Daí que no resultado do teste genético para Huntington não constam Negativo ou Positivo, mas sim quantas repetições foram identificadas nesse trecho — o número 40 seria um divisor de águas. Quem tem 40 ou mais repetições vai desenvolver a doença em algum momento da vida, obviamente se não falecer antes de outra causa. E o que na época de Reed era feito de forma indireta, rastreando a família inteira, foi simplificado. Bastava apontar a mutação num único indivíduo. A partir dali, o exame para a identificação precoce de DH entrou em uso e inspirou ao longo dos anos outros exames para outros genes isolados, sejam testes de diagnóstico, com os sintomas já presentes, sejam testes preditivos, quando a pessoa ainda não tem vestígio de um problema já diagnosticado na família. Estão nesse rol os testes para os genes BRCA1 e BRCA2, que apontam mulheres com predisposição genética para o câncer hereditário de ovário e mama, amplamente divulgados quando a atriz Angelina Jolie anunciou que sua árvore genealógica tinha a marca hereditária do BRCA1. DNA sob julgamento Na cauda desse processo, proliferou o debate em torno da discriminação genética. Não seriam apenas sexo e raça fatores de marginalização. O DNA também tinha enorme potencial para virar um filtro à mercê de julgamentos e restrições no mercado de trabalho e nas empresas responsáveis pelo oferecimento de planos de saúde e seguros de vida, por exemplo. Estudo de 1996 realizado pela médica americana Lisa Geller e outros quatro pesquisadores mostrou que essa preocupação fazia sentido para aqueles em risco para doenças genéticas, entre elas o Huntington. Os estudiosos identificaram que várias instituições foram apontadas como autoras de discriminação genética, incluindo seguradoras de saúde e de vida, prestadores de serviços de saúde, bancos de sangue, agências de adoção, instituições militares e escolas. Dos 917 participantes da pesquisa, 455 afirmaram ter sofrido algum tipo de retaliação devido à predisposição de seus genes. Já uma pesquisa feita pelo Centro de Privacidade Genética e Identidade em Ambientes Comunitários da Universidade Vanderbilt, em Nashville (EUA), publicada na Nature Review Genetics em março de 2022, revelou a desconfiança que paira na população sobre o que será feito de suas informações genéticas. Em 2019, o GEDmatch, banco de dados genômicos de acesso ao público, ofereceu aos usuários a oportunidade de permitir que seus dados fossem usados para investigar crimes violentos. Ficara famosa, um ano antes, a descoberta do assassino conhecido como Golden State Killer, na Califórnia, por meio do rastreio familiar do FBI a partir de dados do GEDmatch. Em maio de 2020, 80% do 1,4 milhão de usuários não haviam dado o consentimento, e aqueles preocupados com sua privacidade excluíram seus dados do banco. Em suma: se uma varredura genética para rastrear criminosos já deixa cidadãos de orelha em pé, que dirá a possibilidade de hackers cibernéticos venderem os dados genéticos de alguém para uma seguradora, por exemplo. Ela poderia arrumar um impedimento qualquer para não emprestar dinheiro a esse alguém, cujo DNA dê pistas de que morrerá antes de saldar o empréstimo. Sem contar a possibilidade de pesquisas não consentidas com sua informação genética ou mesmo um pedido de resgate de dinheiro, sob a ameaça de que os dados roubados sejam jogados na rede. “Dados genéticos são dados ultrassensíveis, dos quais o titular não consegue se desvencilhar. Uma vez vazado, para sempre serão conhecidas informações relevantes, como predisposições a doenças ou mesmo falhas genéticas que causem doenças raras”, diz Henderson Fürst, advogado especialista em Bioética/Biodireito, professor de direito constitucional da PUC-Campinas e professor de Bioética e Direito das Organizações de Saúde da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein. De olho nesse viés nebuloso, os países passaram a buscar medidas protetivas contra a discriminação genética. Desde 2018, europeus preocupados com a divulgação de seus dados genéticos podem se abrigar sob o largo guarda-chuva do GDPR (General Data Protection Regulation ou Regulamento Geral da Proteção de Dados), considerado a vanguarda do direito de privacidade de informações pessoais. Mais cedo, em 2008, os EUA lançaram a Gina (Genetic Information Nondiscrimination Act ou Lei de Não Discriminação de Informações Genéticas), lei federal que protege os americanos da discriminação genética nos planos de saúde e no emprego, mas que tem escopo limitado porque se aplica apenas a indivíduos assintomáticos e não oferece proteção a outros tipos de seguro, como o de vida. Por causa dessa lacuna, estados como Califórnia, Virgínia e Colorado impõem mais restrições ao uso e compartilhamento de informações pessoais sem consentimento informado, aproximando-se da estrutura básica do GDPR. Ainda assim, os americanos cuidam pouco da exportação de dados genômicos. Informações do gênero só saem da China, por exemplo, com aprovação do governo — o que não é de se estranhar. Mas a Índia e muitos países da África têm restrições semelhantes. No Brasil, depois de 24 anos tramitando no Congresso, o Projeto de Lei 4.610 que definia crimes resultantes de discriminação genética foi arquivado em 31 de janeiro de 2023. Ele estabelecia que “a realização de testes preditivos de doenças genéticas ou que permitissem a identificação de pessoa portadora de um gene responsável por uma doença ou pela suscetibilidade ou predisposição genética a uma doença só seria permitida com finalidades médicas ou de pesquisa médica e após aconselhamento genético, por profissional habilitado”. A pena para quem negasse, limitasse ou descontinuasse cobertura por seguro de qualquer natureza com base em informação genética do estipulante ou do segurado, bem como estabelecesse prêmios diferenciados com base em tal informação, seria de detenção de três meses a um ano, mais multa. O arquivamento não foi necessariamente lamentado. “Talvez, naquele momento de propositura, fizesse sentido essa lei, mas hoje não mais”, afirma Fürst. “Há mecanismos de proteção nesse sentido, como o Estatuto da Pessoa com Deficiência e a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). Até mesmo a lei dos planos de saúde proíbe esse tipo de conduta discriminatória”, ressalta ele. Segurando como uma bandeira a LGPD encadernada, a geneticista Iscia Lopes-Mendes, professora titular de genética médica e medicina genômica do Departamento de Medicina Translacional da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, segue a mesma linha de raciocínio: “Não precisa reinventar a roda, já temos a LGPD, uma lei moderna e forte, baseada na experiência europeia, que inclusive estabelece uma multa bem alta a quem infringi-la.” Duas outras coisas a incomodam mais quanto à discriminação que ronda essas famílias. Primeiro, a ausência de um teste genético oferecido no Sistema Único de Saúde. “Quando 80% da população brasileira só dispõe do SUS, estamos discriminando quem não tem esse acesso”, diz Iscia. O teste gratuito, a priori, estaria sendo oferecido em centros de pesquisa, mas a geneticista traz a notícia de que o Ambulatório de Neurogenética da Unicamp, que por mais de 20 anos atendeu pacientes com Huntington e ataxia, não oferece mais o exame. “Não estamos mais fazendo teste genético para nenhuma doença neurológica porque não existe contrapartida do SUS. Vivemos um contexto de atenção muito precária e limitada a doenças genéticas no Brasil”, afirma. “Isso não é pesquisa mais, é serviço, e alguém tem de assumir isso.” Tubo e cotonete De acordo com a Associação Brasil Huntington, o preço do teste genético para Huntington em laboratórios particulares varia entre R$ R$ 320 a R$ 5.000. O valor mais alto corresponde ao pedido do Exoma, exame realizado para detectar alterações no DNA em aproximadamente 20 mil genes do genoma humano — algo desnecessário se o objetivo é saber somente se o paciente tem Huntington ou um tipo de câncer hereditário, por exemplo. Mas alguns profissionais da saúde inadvertidamente o requisitam, enquanto diversos sites oferecem o teste genético sem qualquer orientação prévia nem pedido médico. Basta coletar a saliva com o cotonete recebido em casa, mergulhá-lo num líquido que vem junto num tubo de ensaio e enviar o kit de volta à empresa. O resultado pode ser visto no site por meio de login e senha. Daí o segundo incômodo de Iscia: a falta de profissionais treinados não só para abordar o indivíduo e a família, mas também para orientar adequadamente quanto ao teste genético, já que ele pode criar problemas inimaginados pela pessoa nas áreas profissional, social e privada. “Casamentos podem nem chegar a acontecer porque a família não acometida negligencia um integrante da família acometida, depois de o resultado do teste vir à tona.” Ela insiste na consulta a um geneticista e sessões com um psicólogo antes da opção pelo exame. O antropólogo Valdeir D. Del Cont, professor do Centro Universitário de Paulínia, abordou no seu pós-doutorado o impacto que Huntington causa nas relações interpessoais, focando especialmente na família nuclear diagnosticada com a doença. “Ela muitas vezes fica abandonada pela própria família extensa, quando um parente, por exemplo, nega a possibilidade de também ter herdado a mutação e se afasta.” Outra característica, essa de gênero, ocorre quando o teste diagnóstico comprova que um dos cônjuges tem a doença depois que o casal já se separou. Cont confirmou que, em 99% das vezes, as mulheres voltam a conviver porque atribuem o comportamento agressivo do marido à doença e querem cuidar dele, enquanto o marido invariavelmente desaparece se confirmada a doença na esposa. Há onze anos, quando decidiu fazer o teste para Huntington, o coordenador de pricing Bruno Nunes Escabora, 38 anos, se dizia meio cego. “Hoje em dia eu ficaria preocupado com o vazamento do resultado do teste, mas na época incomodava mais a dúvida do que a certeza de ter a doença.” Além do avô materno, a mãe dele, três tias, o irmão e mais duas primas foram diagnosticadas com Huntington. A condição dada pelo centro de pesquisa fornecedor do exame preditivo é que ele fizesse pelo menos um ano de sessões com uma psicóloga, o que pareceu uma imposição sem sentido num primeiro momento, revista por ele depois. “É preciso estar apto para lidar com aquilo, não dá pra fazer sem acompanhamento, mesmo porque o índice de suicídio para quem descobre ter esse tipo de doença é altíssimo.” Segundo a ABH, a taxa de suicídio para pessoas com sintomas de DH é sete vez maior que a taxa nacional. (Se estiver precisando de ajuda, procure o CVV). O resultado, ele guarda para si e para a esposa. “Se eu disser que deu positivo, vão ficar preocupados na família, mais um que vai sofrer. Se eu disser que deu negativo, escapei, mas o que significa escapar se sei que meu irmão tem a doença, que vou vê-lo sofrer, que vou ser responsável por ele, sem muito o que fazer a não ser dar apoio financeiro?” A enfermeira e consultora assistencial Jessica Piro Barragam entende que o resultado positivo do seu teste para BRCA1 tem uma missão maior: não deixar a história da sua mãe em vão. Há 20 anos, quando do diagnóstico de câncer de ovário em uma tia de Jessica, dois médicos alertaram sua mãe para procedimentos diferentes: um afirmou que ela talvez estivesse em risco para o câncer que afetou a irmã e, portanto, valia a pena pensar na ooforectomia (retirada dos ovários). Outro, o ginecologista que ela consultava havia anos, disse que o procedimento não valeria a pena por ser uma cirurgia e porque levaria à menopausa precoce. A mãe de Jessica tinha 45 anos e um casal de filhos, já estava com prole constituída. Mas acabou por aceitar a indicação não cirúrgica do ginecologista. Sete anos depois ela seria diagnosticada com câncer de ovário, que a levaria à morte cinco anos adiante. “Eu tinha 15 anos quando aquele ginecologista fez aquele prognóstico, e isso nunca saiu da minha cabeça. Não que eu o culpe, ele não tinha conhecimento, mas veja como um conselho dado a uma pessoa é impactante”, lembra a consultora. Enquanto manifestava a doença, a mãe de Jessica entrou para um estudo que incluía o teste diagnóstico. O resultado para BRCA1 saiu um ano e meio depois de sua morte. “Fui buscar o resultado com o meu pai sabendo que era 50/50, cara ou coroa.” Deu positivo, o que levantou o alerta para a filha. Seis meses depois, ela recebeu a confirmação do BRCA1 em si mesma. “Fui fazer o meu teste sem estrutura psicológica, estava em luto, deixando a vida me levar, mas já tinha a noção de que o conhecimento, para mim, era um fator protetor.” Aos 35 anos, Jessica se vê num momento crucial. É a hora-limite para decidir se terá filhos, se retirará os ovários, se retirará as mamas. Nesse meio tempo, passou por rastreamentos intensos. “Mal acabo de fazer uma bateria de exames, chega outra.” Até então, não havia aberto o resultado do teste para toda a família, apenas para os mais próximos, porque não gostaria de causar excesso de preocupação. Como aluna do terceiro ano de Medicina, já se expôs algumas vezes em aulas de temas relacionados, mas nunca sentiu preconceito. Confessa que deu uma virada na carreira, de enfermeira para médica, porque quer se debruçar sobre o screening de câncer de ovário, até então inexistente. O silêncio com que a doença avança costuma ser avassalador. “Apenas 10% dos cânceres são hereditários, mas estamos engatinhando em relação a isso”, diz. “Sinto que a minha mãe, ao fazer o teste, me salvou. Ela não teve escolha, mas eu tenho.” *Mônica Manir é jornalista e doutora em bioética. Foi editora das revistas 'Nova Escola', 'Crescer' e 'Claudia' e editora do caderno Aliás, do 'Estadão', onde também foi repórter especial. É autora de 'Por um ponto final', coletânea de reportagens que escreveu para o 'Estadão' e para a revista 'piauí', e de 'Diário de uma Fadiga', sobre sequelas da covid longa |
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