terça-feira, 4 de abril de 2023

Wilson Gomes O bolsonarismo cabe na república?, FSP

 Já que se quer falar do futuro do bolsonarismo, deixem-me colocar uma questão normativa: ele cumpre as condições necessárias para ser uma força legítima em uma sociedade de direitos e liberdades, politicamente igualitária e pluralista?

A questão não é se o bolsonarismo tem um lugar democraticamente legítimo na vida pública e no Estado brasileiros. Afinal, à mesa da democracia eleitoral, pelas regras do jogo, sentam-se todos os que ganharem mandatos em eleições livres e limpas, atividade em que os bolsonaristas têm obtido notável êxito.

A mesa republicana exige outras coisas dos seus comensais. O combinado republicano mais elementar é que o Estado não é propriedade de quem o governa, mas de todos, inclusive daqueles de quem o governante não gosta e daqueles que não gostam de quem está ao governo. Para garantir esse fundamento, uma res publica dota-se de um sistema de constrangimentos e obrigações para que os mandatários sejam forçados a respeitar direitos e garantias, a proteger e assegurar a liberdade de todos e a acatar o princípio da igualdade política.

É assim que governantes se dobram ao fato de que todo o poder emana do povo e deve ser exercício em mandatos temporários, sob supervisão de outros poderes e com obrigações de prestação de contas e de responsabilização.

Voltemos à pergunta inicial. Para começo de conversa, precisamos nos entender sobre o que é bolsonarismo.

Ilustração de Ariel Severino para a coluna de Wilson Gomes de 4.abr.23 - Ariel Severino

Antes de tudo, o bolsonarismo é a versão brasileira de um recente movimento internacional iliberal, autoritário e com consistente inclinação fascista. "Fascismo" aqui não é o insulto fácil que a esquerda vulgarizou, mas a designação própria de uma ideologia orientada por três dimensões: um fortíssimo nacionalismo, depurado de pluralismo interno, que programaticamente expurga as diferenças e veta o dissenso; a exaltação de uma sociedade baseada na vontade popular expressa e representada pelo líder carismático (il Dulce, der Führer, o Mito), em substituição a uma sociedade feita de leis e liberdades; um redesenho institucional do Estado, que começa pela anulação das instituições intermediárias e dos sistemas de pesos e contrapesos das democracias liberais e se conclui com uma organização hierárquica linear baseada na força em cujo vértice está o líder supremo, de quem a vontade é lei.

Não estou dizendo que o bolsonarismo é um fascismo, e sim que é um movimento que programaticamente ataca todos os obstáculos constitucionais à conversão de um Estado democrático em um fascista: os três Poderes, o dissenso, direitos e liberdades de minorias políticas, tolerância, transparência pública, a impessoalidade, controle de constitucionalidade e revisão judicial, liberdade intelectual, de consciência, de imprensa etc.

Esse bolsonarismo poderia "dar vigor à política brasileira" ou "liderar uma oposição saudável", se abandonasse a violência, o autoritarismo, "a atitude antidemocrática e a polarização irracional", como cravou um editorial desta Folha? Dadas todas as premissas apresentadas, a resposta é certamente não. O bolsonarismo é essencialmente intolerante a uma democracia liberal, aos princípios de um Estado republicano e até às bases de uma sociedade justa.

Pergunta diferente é se é possível desentranhar, da amálgama que é formado o bolsonarismo, alguma coisa democraticamente legítima e não republicanamente imprestável.

Nesse caso, acho que uma resposta positiva pode começar a ser desenhada, embora não caiba nestas linhas. Considero que o maior derrotado pelo bolsonarismo foi uma direita republicana, que faz muita falta em uma democracia e poderia representar de forma legítima interesses de boa parte da sociedade. O mesmo pode ser dito de um conservadorismo que se coloque dentro dos limites da democracia liberal, representando um dos lados de certos desacordos morais legítimos, em substituição ao reacionarismo iliberal, dogmático e fundamentalista sustentado pelo bolsonarismo.

Desentranhar uma direita republicana e um conservadorismo democrático do compósito bolsonarista seria injetar pluralismo e diversidade em um projeto de sociedade e de Estado em que várias partes pudessem acomodar e expressar democraticamente os seus interesses. Mas desentranhar, no caso, significa decompor. Ou seja, talvez só a decomposição do bolsonarismo, extraindo dele o que possa passar por uma reconversão republicana, seja o caminho para reincorporar uma parte importante do país à grande mesa da democracia.


Nenhum comentário: