Foi por pouco. O político mais popular do país obteve pequena margem de votos sobre o pior presidente da história do Brasil.
Na avenida Paulista reconquistada, a sensação na noite da vitória foi de alívio e de "volta ao normal".
Não quero ser estraga-prazeres, mas ainda estamos longe de voltar ao normal —e, se tiver dúvida, leia novamente o primeiro parágrafo.
Escrevo sem saber que fim terá o movimento de protesto dos caminhoneiros, iniciado sob a obstinada recusa de Bolsonaro em admitir a derrota. Seja como for, o problema vai além desse episódio.
Será um erro se as forças democráticas do país resolverem adotar, mais uma vez, a linha da conciliação, da "bola pra frente", do "vamos cuidar do que interessa de fato, emprego, comida na mesa do povo".
A tendência é obviamente essa, a começar pelo desempenho, a meu ver fraquíssimo, de Lula no último debate.
Pode-se dizer que temas como o respeito à Constituição, independência do Ministério Público, separação entre os Poderes são muito distantes do cotidiano da maioria. Mas não custava traduzir isso em lemas de compreensão geral, como aliás aconteceu um pouco no discurso de Lula ao celebrar sua vitória.
Refiro-me à ideia de que é preciso "baixar as armas" e superar a "política do ódio" que caracterizou os últimos quatro anos. Isso todo mundo entende.
Comida, meio ambiente, saúde, educação, cultura, ciência, essas prioridades —que Bolsonaro pisoteou escandalosamente— devem ser respeitadas em qualquer governo "normal".
Uma nova tarefa se impõe: a de justamente garantir essa normalidade, protegendo e aperfeiçoando a democracia. Para isso, apenas a conciliação não basta.
Lula poderá tocar o governo como sempre tocou, recompondo sua base de apoio no centrão, com os métodos habituais. É preciso não querer ver a realidade para ignorar que sua política econômica será, se não de centro, de centro-direita.
O problema —não só dele, mas de todos os democratas— não é o que fazer com o governo, mas o que fazer com o clima que se instituiu na sociedade.
Falar só em "esquecer as divisões" não adianta. É preciso enfrentar de uma vez a causa dessas divisões —e cada dia que se perder nisso tornará mais difícil a tarefa.
Diferenças de opinião e preferência partidária sempre existiram. O que não existia, pelo menos nas últimas décadas, é uma indústria ideológica voltada a criar racismo, homofobia, fanatismo político-religioso, violência e autoritarismo. O mero apoio à liberdade de expressão não dá conta do que acontece.
Se não gostarem da palavra "controle", posso inventar outra. Mas uma clara vigilância e regulação do que se passa nas redes sociais é, a meu ver, incontornável. Não é só durante as eleições que providências como as do TSE são necessárias.
Os estudiosos de redes sociais sabem o quanto cada usuário está exposto a algoritmos que o conduzem, imperceptivelmente, a ideias cada vez mais radicais e viciantes. É uma contaminação deliberada, e talvez fosse possível criar um algoritmo inverso, que, por assim dizer, criasse "anticorpos" para isso.
Há também um investimento social a ser feito na educação, e não digo apenas escolar. Falta organizar os comunicadores de boa vontade para dissolver o que se acumulou de ignorância na mentalidade de tanta gente.
Tudo isso é bonito, mas minha convicção é que uma boa dose de dureza também é necessária.
Será suicídio deixar essa gente —a começar pelo próprio Bolsonaro—sem nenhuma punição.
Já sabemos no que deu a anistia aos torturadores do regime militar. A medida foi necessária, num momento incerto. O resultado, hoje, é a permanência de uma mentalidade militar ainda golpista, autoritária, capaz de comemorar seus crimes como grandes atos de patriotismo, sem nenhuma autocrítica.
É urgente reverter a política de armamentismo liderada por Bolsonaro. Não se trata de "baixar as armas". Trata-se de confiscá-las, a menos que queiramos outras Carlas Zambellis promovendo a desordem e a insegurança pública.
As concessões de canais de TV a igrejas caça-níqueis teriam de ser revertidas. Não está escrito na Bíblia nem na Constituição que emissoras e redes de comunicação possam fugir tão claramente de seus propósitos educativos e culturais.
Nos canais de YouTube e coisas parecidas, alguns influencers foram importantes para se contrapor à treva bolsonarista. Essa luta tem de continuar. Lula não viverá para sempre; sem um combate dispendioso, contínuo e inteligente, a extrema direita vai voltar.
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