segunda-feira, 20 de setembro de 2021

O oceano sem lei, na visão de um jornalista especializado, Mar sem Fim, OESP

 Ian Urbina é um jornalista norte-americano que passou cinco anos, mais de três deles em alto-mar, revelando as histórias que estão no livro Oceano sem lei, que acaba de ser publicado no Brasil. Urbina  começou o trabalho com uma série de artigos para o New York Times. Vencedor do Pulitzer, o mais importante prêmio jornalístico dos Estados Unidos, publicou investigações que cobriram desastres de petróleo e mineração, pesca ilegal combinada com tráfico humano e trabalho forçado, comércio ilícito de frutos do mar, piratas e mercenários, ladrões de naufrágios, e muito mais. Por consequência, o livro explora as entranhas da indústria  da pesca, do petróleo, e da navegação. E elas são mais feias que pensávamos. Para Ian Urbina, o alto-mar é um lugar onde qualquer um pode fazer qualquer coisa porque ninguém está vigiando.

Imagem do livro Oceano sem lei
O autor e sua obra. Imagem, Intrínseca.

Uma visão global do alto-mar

Ian Urbina soube tirar vantagem de um dos poucos jornais que ainda mantém a preocupação, e o poder financeiro, para fazer uma cobertura mundial dos temas que aborda.

Assim, pôde embarcar em diversos navios fosse qual fosse o oceano em que navegavam, durasse quanto tempo fosse necessário, para investigar a fundo os temas citados acima.

Para quem estuda estas questões, o livro de Urbina não traz grandes novidades. Quem acompanha este site sabe dos absurdos da indústria mundial da pesca, ou dos desatinos da indústria da navegação.

As novidades são a forma de agir de cada protagonista neste amplo espaço do globo conhecido como alto-mar. E elas são de arrepiar. Impossível não fazer um paralelo com o documentário que tanto chamou a atenção recentemente, Seaspiracy.

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Infelizmente, apesar do livro ser infinitamente mais completo que o documentário, não fará  sucesso ao menos no Brasil, dado o hábito da leitura ser cada vez menos praticado nestas plagas. Por isso mesmo, tentaremos aqui dar algumas pinceladas no tenebroso quadro que vimos.

Tráfico humano no oceano sem lei

Já no primeiro capítulo Urbina aborda o tema. Atualmente, o tráfico humano que se mistura com a pesca ilegal é praticado sobretudo na Tailândia, mas não apenas. China, Taiwan, Vietnã, são alguns dos outros países onde o flagelo também acontece.

Um pequeno parêntesis

Abrimos um parêntesis para explicar que o que segue abaixo são trechos tirados ipsis litteris do texto de Urbina. Foram apenas selecionados e ordenados por este escriba.

Na costa da Tailândia

A 160 km da costa da Tailândia, três dúzias de meninos e homens cambojanos trabalhavam descalços o dia inteiro e pela noite adentro no convés.

Os turnos de dezoito a vinte horas de trabalho são comuns nos pesqueiros. E a comida, e água potável, muitas vezes é sujeita a um rigoroso racionamento.

A privada era uma tábua de madeira colocada no convés. De noite vermes limpavam os pratos sujos dos garotos. A vira-lata do navio mal levantava a cabeça quando as ratazanas comiam o conteúdo de sua tigela.

As mãos de todos, quase sempre molhadas, tinham feridas abertas, cortes feitos por escamas de peixe e pelo atrito com a rede. Os garotos costuravam sozinhos os ferimentos mais profundos. As infecções eram frequentes.

Os capitães nunca deixavam de ter anfetaminas para ajudar as tripulações a enfrentar períodos mais longos de trabalho, mas raramente guardavam antibióticos para feridas infectadas.

Investigação da ONU em 2009

Em 2009, a ONU conduziu uma pesquisa com cerca de 50 homens e meninos cambojanos vendidos para barcos de pesca tailandeses. Entre os entrevistados pela equipe da ONU, 29 disseram ter visto um trabalhador ser morto pelo capitão ou outros oficiais.

Os meninos e homens que costumavam trabalhar nestas embarcações pareciam invisíveis para as autoridades porque eram, em sua maioria, imigrantes ilegais.

Despachados para o desconhecido, encontravam-se além do alcance da ajuda da sociedade, em geral nos chamados navios-fantasma, embarcações sem registro que o governo tailandês não tinha capacidade de localizar.

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Com frequência, não falavam o idioma dos capitães tailandeses, não sabiam nadar e, por terem vindo de aldeias do interior, nunca tinham visto o mar até estarem cercados por ele.

Quase toda a tripulação tinha uma dívida pendente, parte de sua servidão por contrato, num sistema ‘viaje agora e pague depois’ que exige que trabalhem para pagar o dinheiro que tiverem de pedir emprestado para entrar ilegalmente num novo país.

Os pesqueiros no mar da China Meridional, em especial a frota tailandesa, eram famosos havia anos por empregarem os chamados escravos do mar – na maior parte imigrantes obrigados a sair do país por causa de dívidas ou por coerção.

Oceano, um lugar distópico

Apesar de toda a beleza estonteante, o oceano é também um lugar distópico, lar de práticas tenebrosas e desumanas.

O Estado de Direito – que é tido como consistente em terra, reforçado e esclarecido por séculos sendo cuidadosamente burilado, com as jurisdições estabelecidas e a criação de regimes robustos para garantir seu cumprimento – é fluído no mar, na melhor das hipóteses.

Numa época em que sabemos exponencialmente muito mais sobre o mundo que nos cerca, com tanto conhecimento ao alcance de nossas mãos, temos um conhecimento irrisório sobre o mar.

Metade da população do planeta vive atualmente a menos de 150 km do oceano, e navios mercantes transportam cerca de 90% de todos os produtos mundiais.

Mais de 56 milhões de pessoas em todo o globo trabalham no mar em barcos pesqueiros e outro 1,6 milhão em cargueiros, navios-tanque e outros tipos de embarcações mercantes.

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No entanto, o jornalismo sobre este universo é uma raridade, a não ser por histórias a respeito de piratas da Somália ou de gigantescos vazamentos de óleo.

Comentários do Mar Sem Fim

Este, em resumo, é o primeiro capítulo do Oceano sem lei. Vale destacar que a investigação da ONU sobre o tráfico humano confirma que já se sabia que a atividade é mais ou menos comum na indústria da pesca mundial.

Agora, além dos maus tratos ao ambiente marinho, o desrespeito por santuários marinhos internacionais, ou o desprezo à proibição da pesca de certas espécies em perigo de extinção, a indústria da pesca também está envolvida com tráfico humano, e trabalho escravo.

E só isto já é escandaloso demais para este mundinho que entra no terceiro milênio. Urbina atribui os muitos escândalos que acontecem em alto-mar ao fato de que ‘as águas internacionais estão bastante fora do alcance das burocracias nacionais e não são controladas por tantas regras’.

Para ele, ‘este fato permite que apareça todo tipo de atividade irregular: do desvio de impostos ao armazenamento de armamentos’.

‘Existe, afinal de contas, um motivo para o governo norte-americano, por exemplo, ter escolhido as águas internacionais como local para o desmonte do arsenal de armas químicas da Síria, para a condução de detenções e interrogatórios relacionados ao terrorismo e para se livrar do corpo de Osama bin Laden’.

Comentário do mar sem fim: como se vê pela atitude da mais poderosa nação do mundo, continuamos usando os oceanos como lata de lixo da humanidade. E lixo químico!

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