O cineasta Daniel Filho tinha três filmes prontos quando ocorreram o que ele considera “dois desastres”. “Primeiro, a eleição de Bolsonaro. Segundo, a pandemia de Covid-19”, diz o diretor de “A Partilha” (2001), “Se Eu Fosse Você” (2006) e “Chico Xavier” (2010).
“Nós [brasileiros] estamos sendo testados até onde vai a nossa capacidade de vivermos coisas terríveis”, segue Filho, para quem o presidente da República “termina com a cultura [do país] sem ter ideia do que essa palavra significa”.
“Viramos inimigos da pátria e exploradores do povo”, avalia o carioca sobre críticas de bolsonaristas ao uso de dinheiro captado por leis de incentivo à cultura. “[Na visão dessas pessoas] a gente deixa de ser cultura para ser comunista.”
Na gestão Bolsonaro, o Ministério da Cultura perdeu status e virou uma secretaria, a Lei Rouanet e a Agência Nacional de Cinema entraram em marcha lenta e artistas foram atacados por conservadores. A pandemia, por sua vez, trouxe o fechamento de salas de cinema e outros equipamentos culturais, o que bagunçou os planos de lançamento de dois dos longas que estavam na mão de Filho: “Boca de Ouro” (2020), do qual é diretor, e “Medida Provisória” (previsto para novembro de 2021), que tem Lázaro Ramos na direção e ele como produtor.
No próximo dia 23 ele lança o terceiro desses projetos, o thriller policial “O Silêncio da Chuva”, baseado no livro homônimo escrito em 1996 por Luiz Alfredo Garcia-Roza.
“Eu vejo a estreia desse filme como marcar uma posição de dizer que nós [produtores de cultura] continuamos vivos, respirando. De que não temos a menor ideia do que vai acontecer, mas estamos aí”, defende. “Teremos muitas coisas a serem recuperadas [no Brasil pós-pandemia], mas a gente vai conseguir superar.”
“Ao mesmo tempo [dos dois ‘desastres’]”, lembra ele, “existe a revolução do streaming”. “Quando os filmes ficaram prontos —o ‘Boca’ foi o primeiro— eu fiquei pensando: ‘Mas vai passar onde? Estamos diante de um novo mundo.”
Ele cita como exemplo dessa nova dinâmica de exibições a atriz americana Scarlett Johansson, que processa a Disney por ter lançado o filme “Viúva Negra” no serviço de streaming Disney+. Ela alega que seu contrato foi violado quando o longa-metragem do qual ela é protagonista estreou ao mesmo tempo nos cinemas e na plataforma, já que o seu pagamento se basearia no desempenho nas bilheterias.
“Estamos no meio de uma confusão que ninguém sabe exatamente para onde nós vamos”, avalia o diretor, que ao longo dos seus 83 anos foi também ator e diretor artístico da TV Globo em uma época em que a programação com hora marcada era a realidade televisiva. Na emissora, ele dirigiu novelas como “Dancin’ Days” (1978).
“A televisão da qual eu participei da elaboração cumpriu uma etapa.” Filho usa como metáfora as mortes recentes dos atores Tarcísio Meira e Paulo José, que ele põe como símbolos dessa era do entretenimento brasileiro. “Essa televisão acabou. Agora é só no ‘Viva’, que fica mostrando velhos programas”, diz ele, referindo-se ao canal a cabo que exibe atrações globais antigas.
Mas ele diz não estar achando essa transição ruim. “É muito boa”, afirma Filho. Ele conversou com a coluna do escritório em sua casa no Rio, no qual prateleiras guardam uma coleção de “5.000 filmes e programas antigos de TV”.
O diretor avalia que não há tecnologia que se sobreponha à sensação de se apreciar arte em conjunto. “Não vai haver holograma que substitua o espetáculo ao vivo”, aponta. “Quando a gente sai [desses eventos], comenta, pode dizer coisas fantásticas.”
Ele elenca alguns exemplos de performances que assistiu “e são extraordinárias”. “Eu vi Elvis Presley fazendo um show. Vi Ella Fitzgerald. Vi o Nat King Cole cantando a essa distância de mim [ele estende o braço para mostrar proximidade]. Essa troca é um bem. Eu estive em um teatro e vi a Fernanda Montenegro representando. [A emoção de] ter presenciado isso não vai acabar nunca.”
“A comédia, por exemplo. Só pode ser vista com muita gente junta. O riso é contagiante. Assistindo a uma comédia em um cinema com outras pessoas você vai rir mais do que sozinho. Se você sozinho conseguir rir é porque está bem contigo mesmo —o que é difícil.”
Filho foi criador da série “Malu Mulher”, exibida em 1979 tendo a atriz Regina Duarte como protagonista —a atração abordou preconceitos e tabus da época. Em seu currículo também estão outras atrações sobre o universo feminino, como a série “Confissões de Adolescente” e “As Cariocas”.
Em “O Silêncio da Chuva”, diferente do livro, a dupla do policial principal é uma mulher, vivida pela atriz Thalita Carauta. O protagonista também sofreu mudança das páginas. Na tela, ele é negro —papel de Lázaro Ramos. “Eu estava fazendo o filme e falei: ‘Tenho que subir com as mulheres’”, explica o diretor.
“Sou favorável de a gente entregar o mundo para as mulheres”, diz Filho. “Elas são o centro do planeta. O mundo é maternal. E o homem ficou durante esses séculos no comando porque era supostamente o provedor, quem saía para dar porrada. O que é mentira, porque é a leoa que caça e o leão fica só cercando o peru [risos].”
“No mínimo, somos 50% homem e 50% mulher”, afirma ele, referindo-se à soma dos cromossomos X (gerado por mulheres) e Y (gerado por homens) que formam um ser do sexo masculino. “Está na hora de a mulher tomar o poder, apesar de já ter tido Cleópatra, deusas egípcias e etc. E de nós obedecermos, numa boa.”
Filho foi casado com Regina Duarte na década de 1970. Quando ela foi nomeada secretária especial da Cultura do governo Bolsonaro, ele disse à Folha que não entendia o comportamento da artista. O cineasta não teve contato com a ex-mulher desde então, mas segue incrédulo com a decisão dela de se aliar ao presidente.
“Só lamento. Ela foi usada, pela popularidade, e acabou se prejudicando”, diz. “Uma pena, porque ela vai ficar marcada. Agora que está havendo de as pessoas cancelarem, que não existia antes, é complicado. A Regina é uma das grandes estrelas brasileiras. Mas fez bobagem, o que é uma merda.”
Prestes a completar 84 anos em 30 de setembro, o cineasta se diz mais calmo ao dirigir um trabalho hoje em comparação à sua estreia como diretor, em 1969, com “Pobre Príncipe Encantado”. “Eu não perco mais a emoção de fazer [cinema], mas com a idade você sabe que a coisa será resolvida. Não fica mais muito aflito”, diz ele. “A procura pelo acerto é mais tranquila, afetiva.”
“A minha criação [hoje] está menos ligada ao que os outros querem ver. Confio no que fiz ao longo da vida. [No começo] você sempre está dirigindo para ganhar o Oscar ou concorrer em Cannes”, diz. “Não sonho mais que vou ganhar o Oscar. Já sei que não ganhei [risos]. Só isso já deixa mais tranquilo”, diz Filho. “Não preciso mais me afirmar. O meu objetivo agora é tentar contar uma história que eu quero contar. É uma brincadeira boa.”
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