É comum a ascensão meteórica de figuras políticas que viram prefeitos e, antes do final do mandato, já se candidatam a governador. Outros são entronados nas Câmaras de Vereadores e não pensam duas vezes antes de aceitar assumir cargos mais poderosos, pouco importando o compromisso estabelecido com os eleitores para a representação legislativa municipal.
Se na campanha houver interpelação sobre o compromisso de cumprir todo o mandato, não hesitam em dizer que sim, até mesmo assinando documentos. Mas, se necessário, comportam-se como se não o tivessem, chamando-os não poucas vezes de insignificantes papeizinhos.
Estamos em meio a uma CPI no Senado que investiga a postura do Executivo na gestão da crise da pandemia. Recentemente prestou depoimento o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), destaque na aprovação do projeto que esmaga a Lei de Improbidade Administrativa, defensor do nepotismo.
Menciono-o especificamente porque chama a atenção em sua fala a quantidade espantosa de vezes em que utilizou o termo “narrativa”. Isso demonstra a naturalização das versões e a raridade da verdade pura, onde é difícil chegar. O termo é usado para nos referirmos a algo artificial ou inverdadeiro, criado sobre fatos.
Mas o nosso ordenamento jurídico contribui para esse estado de coisas, pois acusados de crimes que mentem em juízo não são punidos. Considera-se que agiram em autodefesa. Nos EUA, arcam com a pena do crime de perjúrio. Ou seja, o Ministério Público precisa sempre ficar atento para entender qual parte é verdade e qual é mentira.
A mesma lógica do descompromisso com a verdade se nota em relação aos discursos de campanhas políticas. Após a eleição, as coisas mudam de figura, e não existem instrumentos jurídicos que gerem consequências para o político mentiroso que prometeu em campanha e agiu de forma diferente. A única reação possível é a não reeleição, desde que a conscientização cidadã se dê conta disso.
Isso é tão significativo que, em seu último informe anual, o Latinobarómetro, analisando indicadores sociais, políticos e econômicos de 18 países da América Latina, colocou o Brasil em último lugar em matéria de confiança interpessoal, no baixíssimo percentual de 4%. Como não dizemos a verdade, essa questão, infeliz e obviamente, danifica nossos níveis de confiança interpessoal.
Guy Debord, em “A Sociedade do Espetáculo”, sobre o fato de a mentira não mais ser contestada, detecta o desaparecimento da opinião pública, que tinha ficado incapaz de se fazer ouvir —e nem mesmo se forma, com graves consequências para a política, as ciências aplicadas, a Justiça e o conhecimento artístico.
Em poucos dias, o Pacto dos Governos Abertos completará dez anos, tendo o Brasil como um dos fundadores. Mas, em vez de sermos referência mundial em matéria de transparência, temos mostrado ao mundo o vergonhoso apagão dos dados da pandemia e o orçamento secreto.
Roberto Jefferson ameaçou autoridades e o próprio exercício do Poder Judiciário de forma ostensiva, gravou vídeos empunhando armas de fogo e repetidamente se posicionou de forma acintosa contra os valores democráticos. Isso jamais poderá ser relacionado ao direito à liberdade de expressão. Como não caberia se qualquer pessoa viesse a público de forma semelhante, pregando ódio, como ele faz, incitando ataques a políticos, negros, mulheres, promotores, índios ou judeus.
Óbvio que, mesmo que fosse aprovada a emenda do voto impresso, não haveria como concretizar esse modelo já no pleito de 2022, ante a necessidade de aquisição de equipamentos, treinamentos e modificação logística nas eleições de um país continental como o nosso. E o presidente sabe disso, mas bate na tecla que, sem voto impresso, a eleição não é válida. Ele obteve, porém, seus mandatos sequenciais de deputado federal no sistema atual, sem voto impresso e sem questionar a validade das regras quando eleito, quando já encontrou Alexandre de Moraes ministro do Supremo Tribunal Federal e a cujas decisões prometeu cumprir ao tomar posse.
Narrativa, originalmente, é relato ou história narrada por alguém de forma fiel. Mas tem se transformado em verdade paralela, subterfúgio ou reinterpretação para construir uma nova versão: trocamos a verdade pelas narrativas.
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