A reputação como trader não era suficiente, pois Daniel Rossi queria deixar um legado. Assim, decidiu que a sua Capitale, que compra e vende energia para diversas empresas do Brasil, iria passar também a gerá-la. Mas teria de ser limpa.
Propósito. Causa. Legado. Essas palavras são tão comuns no discurso de empresários e CEOs atualmente que se um sujeito desembarcasse na Terra hoje em dia para ser apresentado ao sistema capitalista, ele talvez não ficasse sabendo que o motor da engrenagem é o lucro e a distribuição de dividendos. Mas nem sempre falar de propósito ou de um certo legado para a sociedade significa servir-se hipocritamente do vocabulário corporativo da hora para tornar mais palatável à opinião pública um negócio que muitas vezes só beneficia os pouquíssimos acionistas. Porque há gente que efetivamente toca seus negócios visando deixar um impacto menos pernicioso na sociedade ou uma pegada não tão predatória no meio ambiente. O empresário paulistano Daniel Rossi, 42 anos, é uma dessas pessoas. Ele não tem qualquer problema em usar a palavra “legado” ao justificar porque deixou de atuar apenas como um trader do mercado de energia para tornar-se também gerador. Gerador, é importante ressaltar, de energia limpa – solar, hídrica e biogás –, jamais de origem fóssil, como o petróleo, o GLP ou o carvão.
Apenas comercializar energia, agindo de maneira análoga à atuação da tesouraria de um banco de investimento – gerindo risco, antecipando-se às flutuações de preço naturais do mercado, fazendo hedge –, não deixaria o tal legado, na sua opinião. E assim, a Capitale Energia, que Rossi fundou com o sócio Rafael Mathias, em 2010, incorporou, no ano passado, a startup ZEG Ambiental, que desenvolve tecnologia para soluções de geração de energia limpa. “O encontro com a ZEG fez sentido total para nosso objetivo empresarial, que é levar uma solução sustentável de energia para o consumidor trazendo um benefício para a sociedade”, disse Rossi a PODER na sede da Capitale, no 13º andar de um edifício do Itaim Bibi, em São Paulo.
A Capitale fez R$ 1,7 bilhão em 2018, segundo Rossi, e o empresário projeta faturamento semelhante para a ZEG em três anos. A arma da empresa é sua expertise em desenvolver projetos para clientes que se tornam parceiros comerciais na exploração de fontes de energia limpa. Hoje o grupo possui em seus ativos usinas hidrelétricas na Bahia – sem reservatórios, o que mitiga seu custo ambiental – e desenvolve no Chile um sistema de queima de resíduos sólidos, inclusive hospitalares, a altíssimas temperaturas (processo chamado de pirólise ultrarrápida), com o fito de gerar energia elétrica ou vapor. Um contêiner compacto, que pode ser distribuído para muitos pontos diferentes do país, conterá um reator para transformar lixo em gás e, então, eletricidade. Segundo Rossi, até 97% dos resíduos sólidos de um aterro sanitário podem virar energia elétrica nessa operação – ficam de fora vidro e outros materiais que não tenham carbono em sua composição. É um projeto que resolve dois problemas com uma “caixa d’água” só: além do ganho energético, aqui subsidiário, haveria liberação de espaço nos lixões. Eis um exemplo da chamada “economia circular”, em que resíduos tornam-se insumos para novos produtos. A economia circular rege outro projeto da ZEG, este desenvolvido para uma planta industrial em Juiz de Fora (MG) da empresa Nexa, a antiga Votorantim Metais. Foi com esse projeto, aliás, que a ZEG, então uma startup fundada por André Tchernobilsky e Gabriel Hamuche, tornou-se conhecida do mercado e acabou por ser incubada e depois incorporada pela Capitale. Aqui, os resíduos industriais da exploração do zinco viram biomassa e então vapor, que passa a ser usado na continuidade dos processos fabris. O projeto foi criado dentro de um programa de fomento tecnológico da Nexa, o Mining Lab, em 2016, e envolvia um “take or pay” (modalidade de acordo que obriga o contratante a honrá-lo mesmo que desista do projeto) para produção inicial de 5 toneladas de vapor por hora e capacidade instalada para o dobro disso.
PANACEIA
Se há tecnologia disponível para transformar amplamente resíduos em energia, é de se espantar, ou melhor, de se lastimar, que isso só seja feito em escala muito reduzida. A ambição da ZEG, contudo, não é pequena, especialmente por abarcar diversas fontes energéticas. “Temos a visão e o desejo de entrar no mercado de combustíveis deslocando o uso do diesel”, diz Rossi. Para isso, a empresa também desenvolve soluções para produção de biogás a partir de matéria orgânica oriunda da agricultura e da pecuária. Parte da energia resultante é elétrica e térmica, mas outro quinhão pode se transformar em biometano, que alimentaria veículos movidos a diesel. Difícil discordar de que o uso de energia limpa no lugar dos combustíveis fósseis é uma panaceia para algumas das dores ambientais do mundo, e isso está bem mais perto de nós do que se supõe, mas a realidade impõe, ao menos no Brasil, obstáculos à consecução dessa substituição. Deve-se lembrar que o Brasil é o mesmíssimo país que desenvolveu o álcool combustível, fomentou seu uso em larga escala pela indústria automobilística e, mais tarde, entrou com os quatro pés no pré-sal.
Rossi, de qualquer forma, acredita que a troca da matriz energética veicular é mera questão de tempo – e o Brasil deve seguir a tendência mundial pró-eletricidade. É sabido que diversos países e cidades pelo mundo já impuseram restrições à fabricação e à circulação de carros movidos a combustíveis fósseis, mas o empresário acha que a troca por aqui tem de ser feita com vagar, pois não há energia que dê conta de uma entrada súbita da frota brasileira no sistema. “Seria necessário usar energia de óleo diesel e carvão”, diz Rossi. Claro que não faz qualquer sentido ligar uma usina termoelétrica, que usa carvão, uma das matrizes energéticas mais sujas que se conhece, para fazer carros elétricos andarem. Que se dê tempo ao tempo então, mas que ele também não dure uma eternidade. Apoiar e patrocinar a equipe brasileira da Jaguar I-Pace eTrophy, fórmula própria da marca Jaguar, cujas corridas acontecem antes das provas da Fórmula E, exclusiva para carros movidos a eletricidade, foi um dos investimentos em publicidade que a ZEG achou por bem realizar (veja box abaixo). A exposição global com a categoria faz sentido quando se sabe que o processo de transformação de energia a partir de resíduos sólidos em teste no Chile tem patente própria e tende a ser exportado de lá mesmo para o mundo, aproveitando os diversos acordos comerciais multilaterais daquele país. Executivos da ZEG viajam para acompanhar o circuito mundial e procuram apresentar suas soluções de energia nas cidades que hospedam as provas.
APAGAR DA LUZ
Rossi começou sua vida profissional como trainee no finado Banco Real e construiu carreira no mercado financeiro até deixá-lo no rumoroso apagar das luzes do Banco Santos – a metáfora é mais do que figura de linguagem aqui, pois ele foi requerido pelos interventores do Banco Central a permanecer na função até o fim para ajudar na liquidação. Aí decidiu levar sua expertise em finanças para a energética EDP, passagem que significou, segundo ele, um downgrade na carreira – “tive de recomeçar do zero”, dramatiza. Foram cinco anos lá até fundar a Capitale. Hoje, a intimidade com movimentações financeiras lhe permite indicar com destreza os caminhos a ser trilhados na produção de energia. “Dominamos na Capitale duas grandes forças, que são a estratégia de preço e acesso ao mercado consumidor.” Eis uma das razões para a empresa não “colocar dinheiro em projetos se há um player fazendo mais barato e com mais eficiência” do que ela. “Sempre tivemos a humildade de enxergar o tamanho do investimento que poderíamos assumir”, diz. Os projetos de “capex” (aporte de bens de capital) não tão vultosos que ele persegue são também desdobramentos de sua atuação na Capitale, cujo negócio, afinal, é gerenciar as aquisições de energia elétrica de seus clientes. Para comprar bem, ele ensina, um dos pilares é não estar muito distante de onde a energia é gerada. “Gerar energia no norte e consumir no sul tem limites.” A filosofia o levou a abdicar da produção de energia eólica, cujas plantas industriais são custosas. De qualquer forma, os investimentos em geração de energia sempre contarão com parceiros estratégicos. “Não somos nem seremos uma empresa de engenharia. Não temos necessariamente 100% dos ativos em nossos negócios.” É natural, mas não deixa de ser curioso constatar que a Capitale tenha feito seu movimento “pró-legado” após readquirir os 50% de participação acionária vendida em 2012 para o Pátria Investimentos. Quando o fundo de equity entrou no negócio, a Capitale, segundo Rossi, buscava não só “musculatura financeira”, mas um parceiro para ajudar na governança. “Eu nunca tinha sido empresário, e com tantos problemas para ser empresário no Brasil, precisava me concentrar no negócio. O sócio tinha ‘skill’ para cuidar da governança.” Quatro anos depois, nas conversas com o Pátria para recuperar os 100%, Rossi converteu-se enfim ao propósito.
Aparentemente não se tratou de uma conversão ideológica, sólida, com ideias claras e distintas como no caminho do cogito cartesiano, mas se o resultado é, afinal, o que importa, tratou-se de uma conversão digna da de Paulo na estrada de Damasco. “A ficha caiu na hora em que eu percebi que não conseguia encontrar um modelo de ‘valuation’ e com ele determinar o valor da Capitale. Estava claro que éramos só um negócio de trading, em que um ano é bom, o outro não é tanto”, diz. “Vi, então, que não estávamos construindo uma empresa, mas um negócio.”
VELOCIDADE SEM BARULHO
Não há nada mais íntimo para o fã de automobilismo do que o ronco dos motores. Por isso o campeonato de Fórmula E, que surgiu em 2014, parecia fadado ao fracasso. É que motor elétrico, o propulsor obrigatório dos 22 carros das 11 equipes que disputam o torneio, não faz barulho. A fórmula, contudo, vingou, e está em sua quinta temporada, agora com uma novidade. Dez das 13 provas da temporada 2018/2019 contam com uma bateria preliminar, a Jaguar eTrophy, disputada apenas por carros I-Pace, SUV com motorização elétrica fabricado pela mítica marca inglesa Jaguar – hoje controlada pela montadora indiana Tata Motors — e disponível nas lojas a qualquer mortal disposto a desembolsar cerca de US$ 70 mil pelo carro. A equipe brasileira, que tem o campeão de stock car Cacá Bueno como um de seus pilotos, leva o logotipo da ZEG em espaço nobre da fuselagem. “Com o patrocínio sinalizamos que o fenômeno do carro elétrico veio para ficar e que o Brasil não precisa temer a nova revolução energética. Precisamos competir, se possível liderá-la. Temos recursos naturais e um povo que adota rapidamente as novas tecnologias”, diz Daniel Rossi, que não quis revelar o valor do contrato, cuja duração é de dois anos.
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