Precisei vomitar no meio do caminho de volta para Monte Santo. Pedi que parassem um instante, apeei e procurei uma pedra atrás da qual me contorci de joelhos. E enquanto vomitava ouvi uma voz atrás de mim. Não era nem meu ordenança nem o órfão que decidi trazer comigo. Era a voz de um desconhecido, um soldado com a farda ensanguentada e esfarrapada da batalha. Devia estar entre os que receberam baixa e voltavam conosco, mas até então eu não o havia notado.
“Bebeu água com o sangue dos feridos?”, ele perguntou, como se diagnosticasse a fonte do meu mal-estar. “Sofro de dispepsia”, repliquei, irritado com a intromissão.
“Viu prisioneiros sendo degolados, mas decidiu não falar deles? Ninguém vai publicar uma coisa dessas, não é? Quer maior vergonha para o Exército? Eram até capazes de processá-lo por calúnia e difamação.”
Espantava a petulância dele. Éramos só nós dois. E quem era ele para dizer o que eu devia escrever?
“Viu como a tropa degolou os miseráveis, sob as ordens dos comandantes? Viu como obrigaram os prisioneiros a dar vivas à República antes de serem degolados? Ninguém deu viva nenhum, é claro, porque uma república não é isso. Não é assim que se funda uma nação. Não se proclama uma república para aumentar o vencimento dos militares.”
“Do que é que você está falando?”, perguntei, limpando o vômito com a mão.
“Elegemos como inimigo os mais famintos entre os miseráveis. Era a chance de vencer uma guerra, mostrar a que viemos. Mas não, nem a fome nem a miséria deles garantiu a nossa vitória. Raciocinamos com o medo eterno de sermos dissolvidos pela incompetência. E assim condenamos a nação à tragédia da nossa defesa. Não adianta chamar. Eles não vão ouvi-lo. Tudo bem um correspondente enviado da capital não ver nada, mas admira um engenheiro aspirante a geólogo, geógrafo e historiador não perceber nem para onde sopra o vento.”
Tentei reagir.
“Precisam ser degolados, porque guardam a consciência da nossa inutilidade. Os prisioneiros são testemunhas. Sabe o que é viver à sombra dessa ameaça, com o olhar dessa gente e a consciência de não prestar pra nada? Quer maior inimigo?”
“Também sou militar”, rebati, já em pé.
“A estupidez e a ignorância podem ser o remédio dos irresponsáveis, mas é impossível erradicar toda inteligência do mundo.”
Ele me obrigava, me constrangia.
“É o problema das corporações que passam a se mirar na escória. O poder de contaminação é devastador. Os piores estão à espreita e à espera, não podem perder nenhuma oportunidade. Constrangidos pela própria inépcia, dirigem sua brutalidade contra quem os reconhece. Precisam calar toda voz capaz de os denunciar.”
Perguntei o que ele queria comigo. Por que não me deixava em paz?
“Minha noiva me espera de branco”, ele disse. “Como é que vou encará-la? Não há pior defeito no homem do que a incapacidade de assumir seus atos, de arcar com a responsabilidade pelo que faz. Inútil a ponto de pôr sempre a culpa nos outros, de não ter força nem colhão pra se desculpar, aí está o mais vil dos vermes. Ponha esse verme no comando e ele sairá atirando contra a verdade, contra a justiça, em nome de sua honra, é claro, cercado de um punhado de oportunistas que lhe darão cobertura como se defendessem a si mesmos.”
Senti uma nova golfada. Aquele soldado queria me forçar a escrever sobre o horror, sobre a nossa mediocridade, sobre a tragédia deste país.
“Que é que você quer?”, perguntei.
“Estão chamando.”
Meu ordenança vinha à minha procura.
“Uma última coisa é que, embora tenhamos vindo até aqui, ao fundo deste sertão, com o pretexto de livrar o país de um falso messias, um doido, na verdade é só disso que precisamos. Esperamos um messias que nos represente, que galvanize a nossa disfunção, que rebaixe o país à nossa mediocridade e assim nos justifique, acabando com os termos de comparação. A educação nos ameaça. Sabe o que é não ser bom em nada? Estamos condenados à fantasia dos mitos, a inventar fantasmas. Confrontados com a nossa inutilidade, só nos resta a violência para garantir nosso soldo à força. Só a estupidez de uma alucinação coletiva será capaz de esconder quem de fato somos. Unidos pela ignorância comum, poderemos enfim reivindicar a mesma ganância dos coronéis aos quais servimos.”
Eu quis saber aonde ele queria chegar, mas ouvi o ordenança ao meu lado e quando me voltei o soldado já não estava lá. Também não o vi depois entre os feridos que seguiam conosco. Entre tanto fantasma, tinha de ser o da vergonha que ninguém vê.
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