segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Silêncio e solidão, José Renato Nalini OESP

 José Renato Nalini*

20 de setembro de 2021 | 12h00

José Renato Nalini. FOTO: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

Mortes prematuras sempre chocam. A inversão da ordem natural é um atestado de nossa fragilidade e lembra a todos que somos efêmeros. Deveria também fazer com que todos fossem um pouco mais humildes e valorizassem de forma adequada a dádiva da existência.

Não é a regra. Prevalece o compreensível lamento, a revolta contra quem teria permitido a ocorrência da desgraça. Quanta gente não renega o Criador, indignado com uma perda precoce.

Talvez conhecer episódios reais de superação possa fazer com que a sensibilidade aflore e se adote uma postura resiliente, rumo à resignação e à retomada de um curso natural nesta peregrinação.

Imagine-se uma garota cujo pai falece aos vinte e seis anos de idade, três meses antes de seu nascimento. A mãe, também morreu quando a garota atingia os seus três anos.

Foi entregue à avó materna, que se devotou a cria-la e a compensá-la pela perda dos pais. Boa aluna, chegou a receber de Olavo Bilac, Inspetor de ensino à época, medalha de ouro com seu nome gravado, por haver feito o curso primário – hoje ensino fundamental – com distinção e louvor.

Contudo, a morte dos pais a impactou. Suas palavras textuais: “Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas ao mesmo tempo, me deram desde pequenina, uma tal intimidade com a morte que docemente aprendi essas relações entre o efêmero e o eterno que, para outros, constituem aprendizagem dolorosa e, por vezes, cheia de violência. Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento de transitoriedade de tudo é fundamento mesmo da minha personalidade. Creio que isso explica tudo quanto tenho feito, em literatura, jornalismo, educação e mesmo folclore. Acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação – mas por uma contemplação poética afetuosa e participante”.

Essa órfã era uma leitora voraz. Encantou-se com as letras. Estas a fizeram uma criança feliz. Segundo ela, “se há uma pessoa que possa, a qualquer momento, arrancar da sua infância uma recordação maravilhosa, essa pessoa sou eu. Já principiei a narrativa dessa infância num pequeno livro de memórias, aparecido numa revista portuguesa, com o título “Olhinhos de gato”. Mas há muito para contar. Tudo quanto, naquele tempo, vi, ouvi, toquei, senti, perdura em mim com uma intimidade poética inextinguível. Não saberia dizer quais foram as minhas impressões maiores. Seria a que recebi dos adultos tão variados em suas ocupações e em seus aspectos? Das outras crianças? Dos objetos? Do ambiente? Da natureza?”

Na época ainda não se falava em ecologia ou tutela ambiental. Ainda assim, a garota evidenciava uma sensibilidade singular em relação àquilo que a Terra oferece de forma gratuita, para que os homens não só se sirvam de tais recursos, mas persistam em exterminá-los.

Perfeita amante da natureza, deixa esse amor bastante claro quando continua a rememorar sua infância: “Recordo céus estrelados, chuva nas flores, frutas maduras, casas fechadas, estátuas, negros, aleijados, bichos, suínos, realejos, cores de tapete, bacia de anil, nervuras de tábuas, vidros de remédio, o limo dos tanques, a noite em cima das árvores, o mundo visto através de um prisma de lustre, o encontro com o eco, essa música matinal dos sabiás, lagartixas pelos muros, enterros, borboletas, o Carnaval, retratos de álbum, o uivo dos cães, o cheiro do doce de goiaba, todos os tipos populares, a pajem que me contava com a maior convicção histórias do Saci e da mula-sem-cabeça (que ela conhecia pessoalmente); minha avó que me cantava rimances e me ensinava pariendas”.

A falta dos pais não impediu que ela vivenciasse tudo o que qualquer garota daqueles anos experimentava. Tornou-se uma personalidade ímpar, criativa e pioneira em tantas missões às quais se entregou com a alma repleta de intenção de tornar o mundo mais belo e poético.

Diz qual foi a receita para a sua obra: “Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área da minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo de seu olhar”.

Essa garota veio a se tornar uma respeitada escritora, educadora, jornalista, folclorista, ensaísta e poeta, chamada Cecilia Meireles. Nasceu no Rio de Janeiro, em 7.11.1901 e ali faleceu em 9.11.1964.

Os 120 anos de nascimento dessa grande brasileira precisa ser celebrado. Lygia Fagundes Telles sempre recorda a visita que Cecília fez aos acadêmicos do Largo de São Francisco. Ela foi recebida pela grande dama da literatura pátria, então jovem idealista que estudava Direito, após formar-se em Educação Física.

Ambas comprovam que há mulheres brasileiras que já deveriam ter recebido, há muito tempo, o Nobel de Literatura.

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022

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