Esse negócio de bar chegou relativamente tarde para mim. Eu era foca na redação de um jornal em Porto Alegre e, com 22 anos recém-feitos, passei a bater ponto no boteco perto do trabalho com a turma das antigas. Antes disso, eu sobretudo frequentava as danceterias arrumadinhas: pagava a consumação e bebia Natu Nobilis ou tequila. Tentava empurrar a timidez para longe da pista. Mas bar mesmo, aquele ritual de sentar, puxar conversa e beber direitinho (ou seja, até quase desmaiar ou pelo menos fechar o estabelecimento), foi a partir dessa experiência jornalística.
Não se bebia na minha casa. Meus pais mantinham um pequeno bar destinado apenas às visitas: Passport, uma garrafa de vinho do Porto que em mais de vinte anos eu jamais vi ter sido aberta e geralmente um saco de amendoim japonês ou outro tira-gosto crocante. Era o paradigma do lar de classe-média judaica de pais sem diploma universitário que passaram incólumes (porque já entrados nos 30) por 1968. Fumavam à beça, contudo. Carlton e LS nunca faltavam, assim como as dezenas de cinzeiro espalhados pelo apartamento.
Não se bebia na minha casa. Meus pais mantinham um pequeno bar destinado apenas às visitas: Passport, uma garrafa de vinho do Porto que eu jamais vi ter sido aberta
Beber para ficar bêbado era, para eles, anátema. Bebiam “socialmente” em casamentos e festividades, voltando para casa muito mais relaxados e divertidos. Isso eu percebi desde muito cedo, embora não tenha associado diretamente às libações. O habitual repertório matrimonial de discussões, culpas, remorsos e acusações mútuas desaparecia como que magicamente nesses momentos de leve embriaguez. O fato é que eles pareciam não perceber isso. Se o tivessem, a vida na família S. teria sido um tantinho mais suportável. Para todos.
Era feio sentar-se num bar para passar as horas seguintes enchendo a cara. Era coisa de “sheigetz”, termo que, sinto informar, é alguns quilômetros ainda mais depreciativo que “goy”, ou não-judeu. Somente pessoas descuidadas poderiam ter alguma satisfação nisso, comentavam. Adoravam lembrar da história do filho do amigo médico, um geniozinho na matemática (tirou primeiro lugar na faculdade de Engenharia) que se gabava de nunca ter sentado num bar ao longo da vida universitária.
Pobre coitado.
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A vida não precisa estar dura – e nem tão abundante demais — para nos conduzir ao bar. Basta ela ainda estar pulsante em nós. O grande desiludido e o nababo, reparem, costumam beber no beco escuro ou no palácio de cristal. Sozinhos na desgraça ou reservados na afluência. No bar, não: a alegre malta que se acotovela num Ugues (evito usar o pretérito, pois logo estaremos todos de volta), em Santa Cecília, tem, como você e eu, sua dose diária de angústias, sua cota mensal de altos e baixos, sua anuidade incontornável de vida real. Os boletos emocionais que todos, mesmo com certo atraso, haveremos de quitar um dia. Conosco e com aqueles do nosso círculo íntimo. Juros que no bar serão amortizados conforme o grau alcoólico de cada bebedor.
No seu bar ideal a conversa flui e muitas questões certamente estarão a um copo de serem resolvidas – ou de melarem inapelavelmente
Um bar em que você se sente perfeitamente em casa é como deslizar suavemente entre idiomas. Você se torna bilíngue, mas não pelo método de imersão da Berlitz — embora não deixe de ser uma imersão. Porque há a língua da vida e aquela do seu bar. Na vida, com dolorosa frequência, nossas conversas costumam ser pinterescas: a frase entrecortada, o não-dito, o buraco fundo da incompreensão mútua. Há certo grau inerente de incomunicabilidade entre duas pessoas sobre o qual parecemos esquecer às vezes, afinal somos bípedes, lemos Ana Martins Marques e – pelo menos para alguns — sempre haverá Paris. Não lembramos de que somos bicho, besta-fera, e fazemos nossos ruídos ininteligíveis enquanto afiamos os dentes. Mas no seu bar ideal a conversa flui e, se não é o caso de armar um psicodrama ali, entre mesas, garçom passando e o alarido generalizado, muitas questões certamente estarão a um copo de serem resolvidas – ou de melarem inapelavelmente. Porque o bar tem esse quê de ONU presidida por terapeutas.
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Minha filha frequenta o bar desde os 4 meses de idade. Com 5 anos em casa, dirigindo-se à varanda e verificando o calor da noite de São Paulo, costumava propor: “Vamos num barzinho? Vocês tomam drinque e eu tomo um suco”. Agora aos 10 segue sendo uma deliciosa companhia enquanto sorve seu suco de melancia e belisca uma porção de fritas. Reparo que gosta da noite e se diverte com as conversas que nascem e morrem na mesa de bar. Na minha precária (porque sem método) paideia há espaço para poesia, Tom Jobim, filmes e muitas visitas às livrarias. E a hora e a vez do bar. É aquilo que poderia ser chamado de “formação ampla”. Tentamos dar aos filhos aquilo que não foi ofertado por nossos pais.
Bebi – bebemos – muito em casa ao longo da pandemia. Nas últimas semanas voltei às caminhadas, estou cuidando mais do corpo, cortei o consumo diário de álcool. Quero estar pronto para o novo mundo que surgir depois de todo esse horror a que fomos submetidos. E quero mais ainda estar saudável e bem-disposto para voltar ao meu intimíssimo pátio de milagres, ele mesmo, o meu bar.
LEANDRO SARMATZ é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia
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